Osman Lins e Felisberto Hernández: o escritor e o seu outro – Silviana Deluchi
Osman Lins e Felisberto Hernández: o escritor e o seu outro[1]
Silviana Deluchi[2]
El encuentro fue real, pero el otro conversó conmigo en un sueño y fue así que pudo olvidarme; yo conversé con él en la vigilia y todavía me atormenta el encuentro.
El otro me soñó, pero no me soñó rigurosamente. Soñó, ahora lo entiendo, la imposible fecha en el dólar.
(“El Otro”,Jorge Luis Borges)
Em 1969 Osman Lins publica “Guerra sem testemunhas: o escritor, sua condição social e a realidade social”, um texto que podemos chamar de ensaio-ficcional. Pois, neste texto, mesmo Osman Lins tendo a necessidade de problematizar várias questões ligadas ao escritor, tais como: a obra, sua vocação, a relação com leitor, a crítica e o próprio ato de escrever, pensando criticamente a situação dos escritores, ele cria, de forma magistral, um personagem ficcional que será seu parceiro nesta empreitada: Willy Mompou.
Segundo o escritor, Willy Mompou é: “O parceiro inventado por mim – recurso banal, mas com a função de tornar menos árido o escrito, tanto para o leitor assim para o autor, que, afeito a exercícios de imaginação e aqui sofrendo a ascendência das ideias, quer, com o artifício, amenizar sua tarefa – terá uma presença mal definida no livro. Não é um sósia que destaquei de mim mesmo e pus à minha frente, sempre com a função de interrogar-me ou de corrigir minhas afirmativas. Também não será um personagem constante; pode ausentar-se e, mesmo quando presente, é provável que varie de grau e natureza. ” (LINS, 1974b, p. 24).
Talvez Osman Lins não tenha percebido o grau de complexidade de sua obra quando nos fala que este personagem torna o escrito menos árido ao leitor, porque é preciso que o leitor seja extremamente atento (principalmente os iniciantes) para que consiga compreender quando é Willy Mompou quem assume a voz narrativa e quando é o próprio narrador (ou o escritor Osman Lins?). Apesar de ele utilizar ao início de cada capítulo símbolos que mostram quando é que um ou outro que assume o posto. Mas, ainda assim, sua nota de rodapé número 06 na página 18, pode confundir um pouco o leitor: “Acode-nos encimar com um determinado sinal, (▲▼) por exemplo, nos próximos capítulos, as partes do texto atribuídas ficticiamente a um de nós, o parceiro; quanto ao escritor Willy Mompou, também ele não é de todo real, será anunciado singelamente pela indicação WM, quem dominará os passos de suas responsabilidades. Conquanto sejamos, um e outro, imaginados, tomar-se-á ao pé da letra o que houver de confessional no livro, bem como as posições e ideias nele expostas. ” (LINS, 1974b, p.18).
Mesmo que o escritor diga que o uso dos sinais ajuda a identificar quem fala, a leitura exige muito do leitor, e acredito que esta estratégia deva ter exigido ainda mais do próprio Osman Lins. Ainda me referindo a Willy Mompou, pode que alguns digam que não é um personagem criado por Osman Lins, e de fato não é. Willy Mompou é personagem de um ciclo de dezenove poemas do livro “Poesias”, do escritor Deolindo Tavares, e do qual Osman Lins se apropria para lhe fazer “companhia” em sua empreitada em “Guerra sem Testemunhas”. No entanto, Willy Mompou ainda é um personagem ficcional, e no momento em que Osman Lins “chama-o, convida-o” para a sua obra, agora ele passa a ser companheiro e personagem de Osman Lins.
Muitas vezes, buscar esta ajuda nem sempre é a melhor escolha, como é o caso do narrador de “El caballo perdido”, publicado em 1942, do escritor uruguaio Felisberto Hernández. Pode-se dizer que este texto contenha, assim como no caso de Osman Lins, dois textos e dois narradores. Na primeira parte temos uma voz narrativa que parece ser a de um menino falando sobre as suas aulas de piano na casa da professora Celina, da sua relação com os objetos, e tudo que envolve a professora, por quem mantém uma paixão secreta e a quem julga “dominar”. Mas, há uma ruptura neste texto, causada no momento em que a professora castiga o menino, com um objeto que ele admirava demais: um lindo lápis vermelho. E o que vemos deste momento em diante é um adulto que tenta recordar este tempo em que teve aulas com a professora para poder transcrevê-lo.
A tarefa de recordar e escrever as lembranças também não é uma muito fácil, já que exige um grande esforço do narrador. E eis que aí surge um “sócio”, vindo não se sabe de onde e por quem evocado. Mas, os personagens não param de chegar, de repente, em meio às lembranças, surge uma sentinela, responsável por não deixar o sócio interferir nas lembranças do narrador. E também ainda temos o menino narrador, que na segunda etapa do texto é evocado pelo narrador adulto e obrigado a olhar a contrapelo da história e lançar as lembranças ao futuro, para que assim o ajude a lembrar com claridade dos momentos da infância.
Tanto em Osman Lins, como em Felisberto Hernández, o que vemos é a cisão dos narradores. Como já dito por Osman Lins não é um sósia, nem alguém que se desprendeu totalmente do narrador, mas poderíamos dizer que é uma outra faceta do narrador, a qual é responsável por ajudá-los no trabalho da escrita. No texto de Felisberto Hernández, o narrador é aquele que lembra os acontecimentos, e o sócio é quem os escreve. E existe nesta relação uma divergência de ideias (se pode dizer), pois enquanto o narrador busca o seu passado na tentativa de sua ressignificação, o sócio quer somente escrever, e acaba deturpando, escondendo, modificando alguns fatos e seres do passado: “Yo sentía la angustia del que descubre que sin saberlo ha estado trabajando a medias con otro y que ha sido el otro quien se ha encargado de todo. […] fue él quien escribió la narración. ¡Con razón yo desconfiaba de la precisión que había en el relato cuando aparecía Celina! A mí, realmente a mí, me ocurría otra cosa. Entonces traté de estar solo, de ser yo solo, de saber como recordaba yo.” (HERNÁNDEZ, 2010, p.32).
O que difere os dois escritores no relacionamento com o seu sócio, este outro “eu”, é que para Osman Lins este outro é seu parceiro e o ajuda a organizar seu texto, poderíamos dizer que é bem recebido e o trabalho é realizado conjuntamente. Já para Felisberto Hernández, o seu sócio é alguém que, na tentativa de ajudar, acaba deturpando suas recordações, assim sendo, o texto não seria exatamente o que idealizou inicialmente e o relacionamento é conturbado.
No entanto, o elemento convergente nos dois escritores é o fato de transformarem-se em personagens dos seus próprios textos. E, além disso, os dois buscam maneiras de falar sobre o próprio ato da escrita. Eles assumem a posição mesma do escritor dentro do texto. Ángel Rama, em seu texto “Felisberto Hernández: humorismo y fantasia”, afirma que esta estratégia narrativa (se assim podemos denominar) provém da vanguarda do primeiro pós-guerra mundial, onde: “[…] la inserción del escritor dentro de la obra y su cuestionamiento como un esfuerzo para disolver la comedia de la literatura. No se trataba ya del confesionalismo romántico, donde el autor devenía personaje tan acicalado teatralmente como las criaturas imaginarias, sino de la explícita renuncia del escritor a la categoría del dios animador de un universo autónomo, incluyéndose como uno de los elementos del relato y debatiendo sin cesar su versión de la realidad, analizándola y recomponiéndola en los sucesivos planos o trampas que iba teniendo, a la vez que recogía los datos que le ofrecía el mundo exterior.” (RAMA, 1969, p. 20).
Isto, Rama escreve em um texto sobre Felisberto Hernández, mas acredito que se aplica muito bem em relação a Osman Lins, já que, segundo Rama, este “novo” escritor incluindo-se como um elemento do relato debate a sua versão da realidade, o que o mundo exterior oferece. E é exatamente o que os dois autores fazem em seus textos. Osman Lins busca de forma crítica retratar a posição social que acredita que um escritor deva manter, utiliza-se destes elementos do mundo externo, da realidade, para demonstrar que o escritor não deve manter-se alheio ao seu entorno. Segundo Ana Luiza Andrade, em “Osman Lins: crítica e criação”: “Crítica social e criação artística são indissociáveis em Guerra [sem testemunhas], a medida em que descrevem a missão cultural do escritor e procedem como uma aprendizagem dessa missão […] No caso de Lins, a função crítica é também uma resposta à necessidade social de seu país, que se amplia na função criativa em Guerra [sem testemunhas], como uma resposta à necessidade de mudança da imagem do mundo. ” (ANDRADE, 2014, p. 66 e 71).
E ainda que Felisberto Hernández não demonstre de maneira explícita em seus textos, de certa forma ele também atua como Osman Lins, já que a grande maioria dos seus textos tem como pano de fundo o seu entorno e o cotidiano. Há uma posição crítica em Felisberto Hernández? Acredito que sim, pois ele escreve sobre a “realidade”, esses dados que o mundo exterior oferece, como diz Rama, e sobre as classes menos abastadas, ele se coloca nesse mesmo lugar do povo, falando sobre o cotidiano, principalmente o do escritor. E não é uma escrita pautada na pura representação da realidade, é sempre uma escrita que busca tratar de como esta realidade se manifesta em seu interior. Porém, não é somente sobre isso. Coloca-se como Osman Lins em relação ao escritor e ao ato da escrita. Em muitos dos seus textos podemos encontrar o escritor perante a angústia de escrever, que rumo deve seguir, quais as melhores escolhas, prezando sempre pela liberdade do ato criativo, sem deixar que os “estrangeiros” (os representantes do mundo, e o próprio sócio) dêem palpites em sua escrita (lembranças, no caso de “El caballo perdido”: “He tenido que hacer la guardia alrededor de mí mismo para que él, mi socio, no entre en el instante de los recuerdos. Ya he dicho que quiero ser yo solo. Sin embargo, para evitar que él venga tengo que pensar siempre en él; con un pedazo de mí mismo he formado el centinela que hace la guardia a mis recuerdos y a mis pensamientos; pero al mismo tiempo yo debo vigilar al centinela para que no se entretenga con el relato de los recuerdos y se duerma. Y todavía tengo que prestarle mis propios ojos, mis ojos de ahora.” (HERNÁNDEZ, 2010, p. 35).
E Willy Mompou (já que encontramos no início do capítulo a indicação das letras WM, indicando que agora quem “fala” é este escritor) nos diz: “Urge […] criar em seu espírito um núcleo invulnerável, onde a obra haverá de prosseguir, dia a dia, alheia a quaisquer vicissitudes. […] Tudo isso (as mais variadas situações cotidianas), por certo, atingirá o autor, inoculando-se na obra: nada, se ele franqueou determinado estágio perante o mundo e a palavra, virá desviar ou perturbar sua concepção. […] a criação prossegue, atravessando os dias claros e os sombrios, do mesmo modo concentrado e tenso com que uma ave de rapina vara claridade e sombra rumo à presa. ” (LINS, 1974b, p. 27).
Ainda que seja em contextos narrativos um pouco diferentes, Osman Lins em um texto ensaístico-ficcional, e Felisberto Hernández em um texto ficcional, os dois tratam de temas similares, e de formas similares. Nos dois há um duplo do escritor, ou uma cisão, onde um coloca-se frente ao outro no intuito de trabalhar a escrita, a estética e a crítica. Willy Mompou é um personagem, uma criação do escritor, mas para outra personagem escritor de Osman Lins, Abel, de “Avalovara”, “a verdade tem sempre um fundo falso onde se esconde uma palavra ou evento essencial” (LINS, 1974a, p. 224). Então, pergunto-me: Por que o falso também não poderia ter um fundo de verdade onde se esconde uma palavra ou evento essencial?
No entanto, não são somente os personagens escritores que se duplicam tanto nos textos de Osman Lins como nos de Felisberto Hernández. Em “Avalovara”, que é “a manifestação ficcional da estética e da poética de Osman Lins [um] romance sobre o romance” (ANDRADE, 2014, p. 77), encontramos vários personagens e seus duplos, como é o caso de , Cecília e as irmãs Hermelinda e Hermenilda. No caso das irmãs, partindo já dos nomes, extremamente parecidos, quase beirando uma confusão, elas “trespassam-se entre si” (LINS, 1974a, p. 100) e por viverem sempre juntas “as suas lembranças assemelham-se” (LINS, 1974a, p. 267). Cecília é outro caso curioso do romance de Osman Lins, encontra-se nela o duplo sexo, o “duplo ser de Cecília” (LINS, 1974a, p. 231) e que é: “[…] povoada de seres tão reais quanto nós. Na substância da sua carne mortal, conduz Cecília o íntegro e absoluto de cada figura que atravessa a Praça, e não só dos homens e mulheres que agora povoam a Praça e os arredores, mas também dos que ontem a povoaram, dos que em maio ou junho a povoaram, dos que no ano findo a povoaram, dos que hão de a povoar ainda amanhã, destes e dos que em outras partes existem ou existiram, sim, nenhum está ausente em definitivo do corpo de Cecília. Cecília, deste modo, é ela e outros. ” (LINS, 1974a, p. 158).
Outro caso é de que é Nascida e Nascida. Personagem que é nascida duas vezes, a primeira seria seu nascimento biológico, e a segunda o nascimento ocorrido no dia em que se precipita com seu velocípede de três rodas no fosso do elevador, quando é parida pela segunda vez (LINS, 1974a, p. 29). Mas, além de ser nascida duas vezes, possui duas idades e sente ser uma mulher e duas: “[…] dos meus trinta e dois e dos meus vinte e três anos. Dúplice, em meus pés, o hálito da boca: eu, uma mulher e duas, dois corpos unos que só eu conheço verdadeiramente e que de dois pontos distintos, de duas idades, agem, contemplam e fruem. ” (LINS, 1974a, p. 34). Estas passagens, sobre os personagens e seus duplos, são somente algumas das inúmeras que podemos encontrar neste texto de Osman Lins. Texto intrigante e desafiador para o leitor, principalmente aqueles que não são acostumados ao seu modo de narrar, como já disse ao início deste trabalho.
Já em Felisberto Hernández também encontramos outros personagens duplos, como é o caso do narrador-personagem de “La mujer parecida a mí”. Este é um personagem curioso, pois não se trata de um personagem “humano”, mas sim de um cavalo que pensa ter sido homem e carrega suas memórias do tempo em que foi “cavalo”. Sim, esta confusão do personagem também deixa o leitor intrigado. Afinal, é um cavalo que pensa que foi homem, ou um homem que pensa ter sido um cavalo? O que dá título a este conto é a lembrança de algo ocorrido na infância de Tomasa (uma professora muito gentil que acolhe e trata o cavalo) quando uma amiga “le había dicho que tenía cara de caballo” (HERNÁNDEZ, 2010, p. 115), palavras que são novamente ditas por esta amiga no momento em que o cavalo é encontrado, e são repetidas em sua presença o que lhe causa certa surpresa: “Yo miré sorprendido, pues la maestra se me parecía. ” (HERNÁNDEZ, 2010, p. 115). Um cavalo que pensa ter sido homem, que tem as lembranças desta época em que achava que era homem e que pensava ter sido cavalo, e sendo cavalo era parecido com uma mulher. Complicado? Sim, mas vê-se assim a proximidade entre a literatura de Felisberto Hernández e Osman Lins, pois quando falamos em duplo, e de como os dois escritores conseguem colocar estes duplos em ação e o grau de criatividade e trabalho implicado nas narrativas e ensaio-ficção. Não é qualquer leitor que se enleve facilmente na leitura destes escritores, lhe é exigido muita atenção e comprometimento com a leitura. Exatamente como pensa Osman Lins em relação ao escritor, que não deve descansar até que o livro não esteja completamente claro para o leitor imaginário. No entanto, não é só papel do escritor, Osman Lins também tece variadas considerações quanto ao papel do leitor, que: “Se considera as letras coisa viva, não restringe suas às obras do passado, associando o conhecimento dos antigos mestres e o prazer de descobrir os que, por sua vez, aspiram à maestria. Suas variadas leituras, não forçosamente numerosas nem organizadas – neste e em muitos outros pontos o leitor se distingue do erudito –, levam-no a observar que as regras, sendo úteis, têm por isto mesmo de mudar, uma vez que se deslocam, com o passar do tempo e a transformação do mundo, os objetivos a que servem. Mostra-se aberto, então, às novas experiências, sem, no entanto, considerá-las a suprema virtude do escritor. […] Demais, haverá de ser disciplinado, tendo-se por evidente que a leitura ocasional é inútil, supondo antes continuidade, enlace com a experiência da mesma natureza, fidelidade ao universo da escrita. Tal leitor não é apenas o correlativo dialético do ato de escrever: ele confirma e amplia o significado intrínseco da obra. ” (LINS, 1974b, p. 155)
Porém, não é somente Osman Lins que vê na figura do leitor alguém de extrema relevância para a literatura, já que sem leitores não haveria a necessidade de nenhum escritor, Felisberto Hernández também chama, literalmente, o leitor para os seus textos, como é o caso do parágrafo inicial de “El taxi”: “Estimado colega: sí, sí, me refiero a ti, lector, que te miro por los ojos, agujeros, cuerpos y desde los ángulos de estas letras. Tú pretenderás hacer lo mismo, y aparentaremos el inocente juego de la ‘piedra libre’, si al movernos entre letras, escondemos armas. Y ¡guarda con el que tropiece primero! ¡Si vieras con qué sonrisa cargué esta madrugada mi Parker! ¡Si supieras, si yo te pudiera decir, si yo supiera, lo que hay detrás de esa sonrisa! Porque sabrás que yo quiero trabajar con el que está detrás de la sonrisa. (Para mis adentros:) Qué sé yo con quién ni con qué ni por qué quiero trabajar. ¡Ah, sí, sé! es decir quién sabe. Bueno, si no echo mano a la cintura y agarro una seguridad, estoy perdido. Tengo la última palabra en seguridades: ¡qué linda forma de arma! Es celosa, repetidora y va lejos; pega en un punto solamente y puede matar.” (HERNÁNDEZ, 1983, p. 98-9).
Tanto para Felisberto Hernández como para Osman Lins, o leitor é uma espécie de companheiro (assim como os seus duplos), o qual, de certa, forma é uma das partes que fazem com que seus escritos tenham significado, como deixa claro o escritor pernambucano na citação acima. Assim como o escritor torna-se personagem participante nos textos dos dois escritores, o leitor também é parte integrante do texto, com o qual o escritor mantém uma espécie de diálogo, seja ela direta, como no caso de Felisberto Hernández, ou mais indiretamente como no caso de Osman Lins.
Voltemos ao duplo escritor. As incursões duplas de Felisberto Hernández não se restringem a duplicidade de um personagem ter um sócio ou de um cavalo que pensa ter seu duplo em um homem. Em “Diario del sinvergüenza”, texto póstumo[3], o duplo aparece na figura do próprio corpo que se desprende de si mesmo. Cito as linhas que abrem o texto: “Una noche el autor de este trabajo descubre que su cuerpo, al cual llama ‘el sinvergüenza’, no es de él; que su cabeza, a quién llama ‘ella’, lleva, además, una vida a parte: casi siempre está llena de pensamientos ajenos y suele entenderse con el sinvergüenza y con qualquiera. Desde entonces el autor busca su verdadero yo. ” (HERNÁNDEZ, 2008, p. 245-6).
Além do duplo, nos deparamos com mais um personagem que é comum tanto a Felisberto Hernández como a Osman Lins, o escritor. No entanto, outra vez nos deparamos com um escritor que possui um duplo, neste caso o próprio corpo, com o qual não se entende, pois este corpo e sua cabeça trabalham separados dele, como se, de certa forma, estivessem conspirando contra o próprio “dono”: […] sentí todo mi cuerpo como si fuera de otro. Y depués algo peor: descobrí que mi cuerpo ya había sido ajeno desde hacía muchos años. Él había estado pensando y escribiendo en mi nombre y ahora hasta mi propio nombre tiene otro sentido y parece de él, de este cuerpo con el que fui teniendo tan larga complicidad y al que he terminado por llamarle ‘el sinvergüenza’.” (HERNÁNDEZ, 2008, p. 247, grifos meus).
Penso que esta seja a grande diferença entre os personagens de Osman Lins e de Felisberto Hernández, enquanto o primeiro encontra em seu duplo um companheiro de trabalho, para o segundo o que se apresenta é quase um inimigo que trabalha contra ele, como deixa claro em outra passagem: “sentí que [el cuerpo] venía conmigo y que yo tenía la incomodidad de andar junto a un enemigo, de no sentirme libre. ” (HERNÁNDEZ, 2008, p. 251). Para Osman Lins o sentido de escrever se encontra na “laboriosa conquista do real” no jogo entre mente e escrita: “Do mesmo modo que em geral não resolvemos, mentalmente operações aritméticas, mesmo simples, sendo obrigados a alinhar, na lousa ou no papel, os números, para efetuarmos nossos cálculos, num jogo belo e raro entre a mente e a escrita – jogo de que nunca nos apercebemos –, só escrevendo sou capaz de aferir conceitos, revisar valores, pesar o imponderável, desfiar enfim o tecido das ideias e avançar um pouco na obscuridade das coisas.” (LINS, 1974b, p. 21, grifos meus).
Neste ponto do livro a voz, ou vozes, que se ouve já é a de Osman Lins (escritor ou personagem) e seu duplo Willy Mompou discorrendo sobre os vários motivos que o levaram a escrevê-lo, e também da maneira como se apresenta a obra. No entanto, o que mais chama a atenção nesta passagem é o jogo entre a mente e a escrita, o que me leva de volta ao personagem de “Diario del sivergüenza”. Como já dito várias vezes, diferentemente da relação de Willy Mompou e o escritor-narrador de “Guerra sem testemunhas”, o personagem-escritor de “Diario del sivergüenza” trava uma verdadeira batalha contra sua cabeça e seu corpo – responsáveis pelo que ele vinha escrevendo sem que se desse conta – na busca incessante de seu verdadeiro “eu”. O narrador-escritor de Osman Lins tem a possibilidade de poder colocar-se a escrever tendo consciência de que o faz por vontade própria, colocando no papel o resultado do jogo entre mente e escrita, e por outro lado, o personagem-escritor de Felisberto Hernández vive a angústia de saber que não tem esta mesma liberdade, tal qual o narrador de “El caballo perdido”. O duplo do narrador de “El caballo perdido” é visto por ele como um “representante de las personas que habitan el mundo” (HERNÁNDEZ, 2010, p. 45) e, como tal, traz informações desnecessárias e especula com as suas lembranças. Em outros momentos vê o sócio como um amigo que ajuda a escrever suas lembranças, lhe dá conselhos e desperta sua vaidade. Em outras ocasiões o vê como uma mãe, que previne, mas também o reprime. E, por fim, algumas vezes não quer a presença do sócio de nenhuma maneira e para nenhuma ajuda.
Porém, quase ao final da narrativa, eles reconciliam-se, e o narrador aceita que seu sócio “fue un camarada infatigable que [le] ayudó a convertir los recuerdos […] en una cosa escrita”. (HERNÁNDEZ, 2010, p. 48). Já o escritor-personagem de “Diario del sivergüenza” não logra um entendimento com o corpo e a cabeça: “En una etapa de optimismo, y casi de cura, el autor buscó cierta unidad de lucha, por lo menos, entre el cuerpo, la cabeza y él, para poder tener una actitud leal ante el mundo. Pero después cayó en una gran desilusión. Su yo, además de fantasma inaprensible, era solitario. Ni el cuerpo, con sus múltiples codicias, pudo hacer de él un ‘yo’ social; ni la cabeza, con su astucia y con una inmensa fuerza de pensamientos ajenos, pudo atraparlo. Aún no sabe, mi yo, cómo vive con ello y con todos.” (HERNÁNDEZ, 2008, p. 262).
Em Osman Lins o narrador-escritor e Willy Mompou são um duplo, são cúmplices na empreitada da escrita: “Outra voz ressoa em minha boca, a voz das perguntas, das retificações, a voz de outro, de outros, mas invocada por mim. Se existe outra voz, outra boca existe, e havendo outra boca, outra cabeça haverá, outros pés, outras mãos, outra figura, um cúmplice. Para que nenhum de nós pareça conduzir a obra, o que seria contrário aos meus projetos e à minha tendência, dividiremos ambos a plenitude e o peso do pronome ‘eu’. A partir desta frase, serei então dual, bifronte, duplo, dois, inquiridor e inquirido, um par, o que procura e o que é observado. ” (LINS, 1974b, p. 17-8, grifos meus).
O narrado-escritor de “Guerra sem testemunhas” está completamente consciente, desde o início, de que ouvindo o ressoar dessas vozes, sente a necessidade de dar voz e vez a todos estes questionamentos que chegam de outro lugar, mas invocados por ele. Diferente do narrador dos dois textos de Felisberto Hernández – que não sabem de onde vem seus duplos e que são obrigados a de certa forma, lutar contra eles –, o narrador-escritor de Osman Lins entrega-se conscientemente ao apelo do seu duplo, e tornando-se cúmplices aventuram-se na criação do livro, cada qual desempenhando o seu papel.
Por outro lado, nos textos de Felisberto Hernández, os narradores se deparam com alguém que lhes é desconhecido, estranho, seus duplos simplesmente aparecem sem dar sinal, o que faz com que os narradores se sintam, por momentos, perdidos em meio a uma confusão sobre a qual desconhecem todos os fatos. Michel Foucault, em “As palavras e as coisas”, diz que o homem é empírico-transcendental, duplo por natureza, e por conseguinte também lugar do desconhecido (como o duplo dos narradores de Felisberto Hernández). Segundo Foucault: “Porque é duplo empírico-transcendental, o homem é também o lugar do desconhecimento — deste desconhecimento que expõe sempre seu pensamento a ser transbordado por seu ser próprio e que lhe permite, ao mesmo tempo, se interpelar a partir do que lhe escapa. ” (FOUCAULT, 1999, p. 444-5): E adiante segue: “[…] o homem deve reunir-se a si mesmo e se interpelar até sua verdade. É que esse duplo, por próximo que seja, é estranho, e o papel do pensamento, sua iniciativa própria, será aproximá-lo o mais perto possível de si mesmo; todo o pensamento moderno é atravessado pela lei de pensar o impensado — de refletir, na forma do Para-si, os conteúdos do Em-si, de desalienar o homem reconciliando-o com sua própria essência, de explicitar o horizonte que dá às experiências seu pano de fundo de evidência imediata e desarmada, de levantar o véu do Inconsciente, de absorver-se no seu silêncio ou de pôr-se à escuta de seu murmúrio indefinido.” (FOUCAULT, 1999, p. 451).
Seguindo o dito por Foucault, é justamente por este duplo ser estranho é que se deve pensá-lo e tentar aproximá-lo o máximo possível da sua essência de homem. Não pode o homem compreender o desconhecido sem que se aproxime dele, e mesmo afastando-se, gera algum tipo de modificação, já que, de certa forma, este desconhecido o tocou por algum momento. Osman Lins segue o dito por Foucault, deixa que o desconhecido se apresente, e mais do que isso, faz-se cúmplice e lhe dá voz. No caso dos personagens de Felisberto Hernández, o narrador e “El caballo perdido” no início sente-se perdido, porém no decorrer dos fatos, deixa que este estranho se aproxime, decide aceitar sua ajuda e acolhê-lo como parte de si mesmo, dando-lhe voz (como Willy Mompou). O caso do personagem-narrador de “Diario del sinvergüeza” é um pouco diferente, porque a partir do momento em que tomou consciência e tentou a busca do seu verdadeiro “eu” não alcançou os mesmos resultados que o narrador de “El caballo perdido”. Acontece exatamente o contrário, se viu obrigado a conviver com este corpo e esta cabeça que lhe são estranhos, ademais de descobrir que o verdadeiro “eu”, que tanto buscou, é fantasmal e que não se entende com o corpo e a cabeça, dando a impressão de que, ao final do texto, o personagem-escritor se vê ainda mais confuso e perdido do que no início.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Ana Luiza. Osman Lins: crítica e criação. 2 ed. Curitiba: Apriss, 2014.
BORGES, Jorge Luis. El otro. In: Obras Completas III. Buenos Aires: Emecé Editores, 2007. p. 13-20.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ed. Tradução: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
HERNÁNDEZ, FELISBERTO.Diario del sinvergüenza. In: Obras completas. Volume III. 6 ed. México: Siglo Veintiuno Editores, 2008. p. 245-262.
______.El caballo perdido. In:Obras completas. Volume II. 1 ed. 8 reimpressão. México: Siglo Veintiuno Editores, 2010. p. 09-49.
______. El taxi. In: Obras completas. Volume I. 1 ed. México: Siglo Veintiuno Editores, 1983. p. 98-102.
LINS, Osman. Avalovara. 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1974a.
______. Guerra sem testemunhas: o escritor, sua condição social e a realidade social. 1ed. São Paulo: Ática, 1974b.
RAMA, Ángel. Felisberto Hernández: humorismo y fantasia. Actual Investigación: Revista de la Universidad de los Andes, Bogotá, ano II, n. 3-4, p. 17-29, set-abr. 1968-1969.
Disponível em: http://erevistas.saber.ula.ve/index.php/actualinvestigacion/article/view/1627/1591. Acesso em: 28 jul. 2016.
[1]O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
[2]Doutoranda em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. Email: deluchi.silvi@gmail.com .
[3]“Diario del sinvergüenza” não é propriamente um texto, pelo menos não nas formas que convencionou-se chamar de texto. Esta publicação póstuma caracteriza-se por uma série de pequenos fragmentos que Felisberto Hernándezvinha escrevendo para o texto final. Além destes fragmentos se publicou juntamente notas sobre o texto com o título “Anotaciones de trabajo para Diario del sinvergüenza”.