Poemas de “O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas” – Jussara Salazar

Poemas de “O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas”, de Jussara Salazar

per no haver escrit el poema el lector es queda sense saber en què podia consistir aquest peix de cera

Joan Brossa

noli me tangere

para construir um céu

para tingir um vestido

para cantar o morto

derrubar um obelisco

enquanto escrevo o poema

o céu desaparece e eu

desapareço

ao meio-dia

entre valas e ratazanas

da rua 48

 

para o poema

que nunca foi escrito

que venham os espíritos

e os cães vadios

ditem palavras

bebam do veneno

roam o osso

e depois cantem

sobre o meu velho corpo

para costurar a mortalha

agulha sombra e silêncio

ir do fim ao princípio

e alinhavar cada parte

unindo o algodão branco

ao visgo do barro negro

e à sombra do verso torto

 

para desmanchar o poema

dobrar o sudário

porque amanheceu

e as luzes se apagaram

e não há mais dor

nem palavras

para o velho amigo morto

agulha sombra e silêncio

para as cruzes de agosto

 

para esquecer o poema

às 5 enquanto lavo o rosto

e visto o casaco

e o século acaba

sem velas acesas

sigo o cortejo

pés descalços

oh jardins destruídos

cadeiras ensolaradas

caminho pela cidade

entre os desastres

da tua guerra e

um último raio de luz

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sumi-e

aos vinte descobri

a palavra indelével. Pintei

dois olhos de coruja

com tinta da china

sobre papel de arroz

 

o desenho sumiu

os laços se romperam

o tempo foi do tempo

 

escuto a máquina

lavando os lençóis

modo suave-duplo-enxágue

 

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corpo inconsútil

a linha do rio costura

o céu e a terra

a linha da terra costura

o céu e o mar

a linha do céu dobra

o inferno ao meio

 

contornamos o sol

 

a linha do tempo

não se dobra

mas fia teia de si mesma

acalenta o vento

e costura

a linha dos dias

 

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o gato de porcelana

maria helena galindo ria de tudo porque

antigamente se chorava de tanto rir sem uma

lágrima sequer Era muito discreta quando ia à

missa de domingo e não usava decotes largos

como hilda e elvira que apareciam vestidas de

noiva como andorinhas Maria helena galindo ria

enquanto guardava o gato e biscuits de

porcelana na cristaleira laqueada Levava a vida

entre fitas e sianinhas ziguezagues ondulados

entre anjos de açúcar confeitado e o dia corria

maria helena galindo era criança era moça velha

pianoforte rezava chorava e ria

 

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rito

o lençol abre-se

a luz sangra a manhã

através do vidro e ainda

que não houvesse céu Verônica gira e abre os

braços em círculo e cada mão como asa segura

as duas pontas para uni-las na dobra como uma

dança e depois novamente juntá-las quando

abaixa o corpo que se dobra e apanha o tecido

macio elástico e flexível que vai se dividindo em

mais dobras cada vez menores como uma folha

de papel vai ao infinito e se decompõe em

movimentos brandos brancos como uma ária

Verônica é um corpo curvo Verônica é um

pássaro que desentranha o espaço que se repete

à luz do sudário todas as manhãs

 

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