Vida dentro da vida, narrativas em abismo: exercícios críticos a partir de Névoa e assobio – Gustavo Silveira Ribeiro

Vida dentro da vida, narrativas em abismo: exercícios críticos a partir de Névoa e assobio  

 

Gustavo Silveira Ribeiro*

 

Névoa e Assobia

Para Rita

 

 

 

1. Uma vida inteira em cinco dias

É difícil definir o fascínio despertado pelo livro de Bianca Dias, Névoa e assobio (Relicário Edições, 2015). Um misto de diário de luto, poema e narrativa testemunhal formam a matéria dúctil e frágil que lhe dá substância. A fluidez do texto, a facilidade com que transita por esses registros sem deixar-se prender por nenhum deles é uma de suas forças. O saber analítico que o atravessa também, na medida em que o leitor interessado assiste a uma conversa solitária que tem muito de terapêutica e de prospecção teórica. Ao contrário do que se poderia imaginar, mesmo nos momentos de mais intensa aproximação do real, de aparente e esperada falência da razão, a potência do pensamento parece se infiltrar por entre as palavras, dando a elas um peso e uma solidez inesperadas, indicando os indícios de uma consciência (da escrita, da intensidade do vivido) angustiada e angustiante. É curioso notar que um texto em que há tanto risco e auto-exposição, em que verdadeiramente se contempla o abismo, às vezes parece dobrado metalinguisticamente sobre si mesmo, mise-en-abyme, voltado para os próprios movimentos e atento a cada passo que dá. Esse evento paradoxal de entrega e contenção, deslimite e cálculo, certamente pode ser visto como um desdobramento, no plano formal do texto, da ambiguidade que constitui a própria experiência fundadora do livro: escrever é, para a autora, uma forma de encontrar a “língua secreta” (DIAS, 2015, p. 45) legada para si, dentro de si, pelo filho morto, ao mesmo tempo em que tratava de a inventar a cada linha traçada, a cada caractere digitado ou impresso. Inventar o que já existe, mas é mistério e medo; deixar vir à tona o que se traz dentro do corpo, ainda que isso rompa a pele das ficções que inventamos para viver: eis a coragem do texto, que não se dá, pensamos, apenas como enfrentamento e salto no escuro, mas também como exercício da inteligência e esforço da lucidez.

Mais do que qualquer outra coisa, Névoa e assobio é um relicário: uma pequena peça de recordação composta (escrita, montada, costurada) por alguém que, mesmo presa de uma dor atroz, quer se lembrar, deseja encher de memórias o coração e jamais esvazia-lo: “Não quero me dissipar em banalidades, não preciso esquecer nada” (DIAS, 2015, p. 55). A morte prematura de Caetano, o silenciamento de uma voz que não chegou a se formar, funcionam como o mote e o motor dessa aventura de escrita: a mãe-narradora escreve pelo filho, falando por ele em certas passagens, e escreve também para ele, para estabelecer uma ‘conversa infinita’ (para dizer com Blanchot, uma das referências fundamentais da autora) que durou apenas alguns instantes, uns poucos momentos que vão se desdobrando no livro em cenas circulares, idas e vindas dos gestos e acontecimentos que marcaram a vida breve da criança. Um desses gestos, apresentado mais de uma vez – e por assim dizer por ângulos diferentes – pareceu-nos profundamente tocante: bastante frágil dentro de uma encubadora, ligado ao mundo e à vida pelos fios dos aparelhos hospitalares, a criança renova, uma vez mais, os vínculos indissolúveis que tem (todos têm) com a Mãe, que a tudo assistia impotente, esvaziada:

Meu filho me abrigou em suas pequenas mãos, depositadas na minha. Num esforço de herói, ao escutar minha voz, levou-as a mim, salvando-me do desespero e instalando um afeto descomunal (DIAS, 2015, p. 24)

Impressionou-nos a construção espelhada da cena e a inversão final que ela propõe, numa viravolta significativa: mãe e filho evidentemente são aqui, como tantas outras passagens do livro, imagens um do outro, reflexos que se multiplicam sem se confundirem jamais. Ela, a voz que nos fala, olha para a criança e agoniza diante da falta de sentido, da impotência absoluta em que se encontra diante do seu sofrimento; ele, por sua vez, agarrado a um resto imponderável de vida, igualmente despojado de qualquer controle sobre si ou o ambiente que o rodeia, contempla a mãe, devolvendo a ela o olhar que recebe. O desejo consciente que a mulher tem de toca-lo é respondido pelo menino com o desejo – puro instinto, ânsia de carinho, vontade de asserção e pertencimento? – de também tocá-la, sentindo a sua presença presumivelmente reconfortante. O que deveria ser, no entanto, segundo a ordem natural das coisas, consolo para o bebê que mal respirava, tornou-se carícia e suporte para a mãe, àquela altura muito mais frágil – apesar da solidez do seu corpo adulto e bem-formado – que o corpinho leve e adoentado do filho. O mistério que envolve essa cena é completo, e explicá-la em toda a sua complexidade seria o mesmo que explicar o absurdo das coisas, a (des)razão completa que atravessa tudo o que é vivo e movente. Impossível. Entretanto, o seu significado aparece às vezes claro, e não é em vão que essa cena ocupa posição central no livro, retornando sub-repticiamente ao longo da sequência do texto. Ocorre-nos também que o ato de Caetano, a sua força e esforço imensos em erguer as mãos e entrega-las à mãe, protegendo-a, invertem um gesto comum, banal e belíssimo que todas as mães, quando grávidas, repetem na relação que vão construindo com os filhos (e há uma cena assim no Retrato da mãe quando jovem, narrativa de Friedrich C. Delius, sobre a qual ainda falaremos): sentindo-os agitados, inquietos dentro do ventre, as mulheres (e é comum assistir a uma cena assim, talvez sem se dar conta da sua dimensão) acariciam os filhos tocando em si mesmas, na própria barriga, como que a transmitir, através do tênue da pele e dos órgãos expandidos, o calor das suas mãos, a delicadeza do afeto, a calma da carícia que o bebê reconhecerá, já ali, como única e inconfundível. O que a autora nos apresenta é da mesma ordem, embora o vetor seja outro: por entre os fios incompreensíveis, através da abertura estreita (só podemos imaginar) da encubadora e das máquinas vitais, mas hostis, do hospital, Caetano faz a mãe sentir, pelo simples toque de suas mãozinhas, a sua presença de filho, a sua inserção no mundo dos vivos, a tranquilidade, enfim, de que ali havia uma relação filial apesar de tudo o que a parecia negar. A “escuridão dos dias” (DIAS, 2015, p. 51) que obviamente se instalará com o luto é menor e menos densa, é o que o texto sugere, depois disso:

(E, não por acaso, sonhava com minha cabeça deitada num campo verde, com o coração batendo no compasso do som que vinha do fundo da terra. No sonho, o barulho do fundo da terra era o som do coração do meu filho, presença pura que esteve em minhas mãos na eternidade de alguns dias). (DIAS, 2015, p. 69, grifos do autor)

A questão do testemunho, que atravessa e condiciona todo o projeto de escrita de Névoa e assobio, ganha um desdobramento singular no livro, uma espécie de suplemento fundamental, sem o qual a sua leitura, a multiplicação quase infinita dos seus significados não ocorreria da forma tão intensa como ocorre. Referimo-nos, claro está, aos desenhos da artista Julia Panadés que acompanham e também escrevem o livro. O motivo central das imagens, habilmente escolhido e muito conscientemente levado a termo é o do fio (mais que da linha, se poderia acrescentar). O fio vermelho, principalmente, que se espalha e dissemina pelo livro desde a capa até as imagens finais é muitas coisas ao mesmo tempo, sem deixar de ser, em nenhum momento, simples exercício do traço, pura materialidade da forma e da cor. Falamos aqui do fio que une mãe e filho, o cordão umbilical, mas falamos também de veias e artérias que atravessam o corpo de ambos e dão substrato à vida, “essa decisão escrita com sangue” (DIAS, 2015, p. 56); falamos ainda do útero, da trama de fios e trompas e vasos que o cercam e o formam, e de onde, segundo Bianca Dias (e também, embora num outro registro, segundo a Angélica Freitas de Um útero é do tamanho de um punho) nasce a escrita; falamos, por fim, e igualmente, dos fios multicoloridos que ligaram Caetano ao mundo nos cinco dias em que esteve vivo, fios que se transformaram, todos eles, pelas mãos de Panadés, em cicatrizes, em pontos cirúrgicos, em bordados, formas abstratas e letras – como se vê, uma rede intrincada de outros fios que são também signos e referências que nascem umas das outras, que puxam umas às outras numa circularidade infindável de inscrições. Palavras e imagens, imagens e palavras, trocando de lugar e se misturando, apontando ambas para os significantes fundamentais do livro, elementos – aos pares – que retornam poeticamente como numa canção, um estribilho: vida e morte, ferida e sutura, ligação e corte, Letra e escrita. Tudo vem (parece vir) daí, tudo devém para esse espaço específico: do fio da escrita que se estende e abarca múltiplos e indecidíveis gestos: a rendição total, a entrega à dor, e também a cura, a aceitação amorosa do destino e suas tragédias – ‘amor fati’, uma tatuagem gravada a ferro na carne, por dentro:

De vez em quando choro até me afogar. Sinto meu corpo atravessado por um punhal, reviro minhas vísceras em perguntas estranhas e encontro somente respostas enigmáticas. Retorno para a superfície, costuro as bordas do corpo que estavam abertas junto com meu espanto. (DIAS, 2015, p. 58, grifos do autor)

 

2. Ficções do enamoramento

Toda a relação entre mãe e filho, toda a teia espessa de afetos que se forma em torno deles, do ventre aos primeiros anos, é uma relação de reconhecimento. É evidente, não se trata da conhecida premissa platônica sobre o amor – ou a impossibilidade dele – segundo a qual amar é descobrir, reconhecer o outro como uma parte (perdida) de si, finalmente encontrada. O reconhecimento de aqui falamos tem a ver com outras categorias, e foi elaborado fundamentalmente pela Psicanálise e pela moderna Estética: estranhamento e familiaridade. Grande parte da poesia de Sylvia Plath (“Stillborn”, “Morning song”, “Child”, o conhecidíssimo “The arrival of the bee box”), o mais importante romance de Clarice Lispector (A paixão segundo G. H.[1]) e também Névoa e assobio vão dar a ver essa sensação ambígua, ambivalente, de inquietude e fascínio que se elabora de modo secreto desde a concepção – e que se faz presente, segundo esses textos, entre tantos outros – de modo especial no período da gravidez. Uma série de textos e realizações no campo da arte podem ser descritos a partir desses dois termos, alguns pendendo mais para um deles do que para o outro, mas quase sempre (pelo menos nos casos mais interessantes, como os já citados) misturando-os de modo indecidível. Tanto para a mãe quanto para a criança, trata-se de um jogo impronunciável, complexo, entre, de um lado, o horror do desconhecido e do que não se pode explicar, e de outro o encontro com o que parece natural, com o que sempre pareceu estar ali, palpável e perfeitamente integrado à ordem cotidiana das coisas. O segredo da gravidez comporta, às vezes de modo perene, e em toda a sua extensão, essa duplicidade: como compreender e suportar a ideia de carregar em si um outro ser, que habita as suas entranhas e é parte do seu próprio corpo, sendo ao mesmo tempo um corpo autônomo e pleno? E como, ao mesmo tempo, recusar a fortíssima ligação que daí vem quase sempre, mesmo quando a nova vida é breve, cabendo inteira em cinco dias (ou cinco minutos)? Os negaceios, as idas e vindas em torno dessa ideia vão construindo o período de sobressaltos e maravilhamentos que caracteriza tanto o tempo suspenso da espera quanto a irrupção violenta do nascimento. Falar de estranhamento e familiaridade, no contexto em tela, é falar da questão geral, jamais resolvida e às vezes impensável da individuação: é esse fenômeno intrincado, em torno do qual dançam, há já milênios, a filosofia, a religião e a arte, que aqui se toma como referência.

Conceber e portar, como um estojo de sangue e vísceras, uma ou mais pessoas é vertiginoso porque põe em xeque justamente os limites do eu; a mulher transforma-se, mesmo sem o saber, no líquido primitivo, no pântano profundo do qual, supõem-se, tudo o que é vivo um dia emergiu. Pelo seu corpo o mistério do mundo, o mistério das coisas (que não têm começo ou fim) volta a se manifestar: é a matéria “neutra que vive e se move” (LISPECTOR, 1998, p. 87) o que provoca o estranhamento, o sentimento de invasão que a metáfora algo militar (porque territorial) de Bianca Dias denuncia: “Lembro do dia em que descobri uma habitação estrangeira em mim. Fiquei perplexa.” (DIAS, 2015, p. 32) Para o próprio bebê, o nascimento e o novo universo que nesse instante se descortina para ele, tudo é estranhamento: o ar dentro de seus pulmões, a luz crua, não filtrada pelas camadas do corpo materno, a aridez de um ambiente não-líquido, a separação, enfim, do corpo que também era seu, e que de agora em diante será sempre familiar mas principalmente estranho, posto que outro. Tudo é hostil, ainda que logo, aos poucos, vá deixando de o ser. O mesmo processo de familiarização, a mesma passagem de um polo a outro se dá com a mãe, que vai a cada dia tornando comum e reconhecível – vai amando – aquele ser que, passo a passo, passará a acompanha-la para resto da vida, como um pedaço de si solto no espaço ou uma ausência, algo que a memória tratará, em vão, de tentar preencher.

Se perseguirmos o impulso comparatista que nos assalta desde a primeira leitura de Névoa e assobio, e nos aproximarmos do filme Otto (Belo Horizonte, 2012, 71’), de Cao Guimarães, tendo como fio condutor o par conceitual que até agora vimos explorando, veremos que se trata de dois trabalhos a um só tempo muito próximos e muito distantes. Ambos são um mergulho quase literal na intimidade da vida privada, na exposição sem limites do corpo e da dor, com a diferença fundamental de que um explora e desnuda a si (Névoa e assobio); o outro, a pessoa amada, num certo sentido próxima e distante (Otto). Enquanto para Bianca Dias trata-se de uma travessia pelo inferno, uma separação sobretudo, um passeio pela morte do próprio filho e por todas os sentimentos terríveis que daí emergiram, para Cao Guimarães trata-se de celebrar um encontro, do qual o nascimento (anunciado desde o título da película) do filho é um desdobramento e um dom. O artista encontra Florencia Martínez, uma mulher por quem se apaixonará e a quem o filme é verdadeiramente consagrado. Se em Névoa e assobio acompanhamos o duro processo de desfamiliarização, de estranhamento absoluto (que se transforma em escrita) com a ausência insuportável do filho falecido.

Nesse nada que se faz presente, escrevo. Escrevo para não me perder no excesso vazio do falatório, quando o que se impõe é da ordem do indizível. Escrevo num exercício de redução e para que as palavras – tão sagradas – não percam sua espessura e poder. Escrevo e crio um pequeno altar onde posso depositar minha marca, aquilo que me restou de esperança. Esse ponto preservado de alegria, mesmo diante de tanta dor. Um pequeno relicário de uma fé no absurdo e no intangível que sempre carregarei comigo. (DIAS, 2015, p. 27) em Otto estamos diante de uma ficção do enamoramento, isto é, de um procedimento discursivo que procura atualizar a cada cena, a cada palavra dita ou imagem capturada a passagem do estranho – o outro, o ser amado e ainda desconhecido – ao familiar, rotineiro e natural. O andamento do filme nos ajuda a compreender o movimento empreendido: as primeiras cenas e narrações em off, as paisagens iniciais, remetem todas ao estrangeiro; à cidade de Montevidéu e ao Uruguai, onde o casal se conheceu, e à viagem que fazem juntos, logo a seguir (para ver o mundo desconhecido e para ver a si mesmos) a Istambul, Turquia, onde entram em contato com uma cultura antiquíssima e viva, ligada ao Oriente, essa projeção imaginária, construída ao longo de séculos, de tudo o que é desconhecido e perigoso e sedutor. Um dos momentos mais significativos do texto que acompanha o filme surge nesse lugar, em meio às filmagens da noite turca. Trata-se de algo que, em teoria da literatura, se poderia chamar, na esteira de Leo Spitzer, enumeração caótica: um amontoado de predicados sem muita ordem aparente, que mais reúne elementos díspares do que os organiza sob a dureza de uma sintaxe e de um sentido:

Ela tem vinte e cinco anos e seus olhos querem ver. Gosta de gatos e deuses, carinho no pescoço e bife à milanesa; de rádio AM e de ficar pulando na cama pela manhã, de agarrar as coisas com os dedos dos pés, ruas planas e reuniões de velhos comunistas. Gosta de palavras inusitadas e de grifar frases em livros difíceis. Falar bobagens com o amigo Vik e fazer massa pascoalina. (GUIMARÃES, 2012)

A estrutura do texto diz muito sobre o que está em processo: ainda descobrindo a mulher, encantado e encantando-se com cada detalhe seu que vai surgindo com a convivência, o artista vai construindo um arquivo de referências e afetos que procura tornar familiar, minimamente assimilável, aquilo que era desconhecimento e fascinação. A descoberta da gravidez, anunciada pelo narrador logo depois do trânsito pelo Bósforo – signo grandioso e histórico do caminho aberto ao não-familiar, ao extra-europeu – virá acompanhada de um retorno ao Brasil e à Belo Horizonte, cidade do artista e território íntimo em meio ao qual o filme será rodado e os personagens passarão a transitar. Os movimentos sutis da câmera, que irá acompanhar a partir daí, cada vez mais de perto, Flor Martínez, como que desejando penetrar-lhe a pele, devassar o seu interior, sugerem uma vez mais como o deslocamento em direção ao conhecido e ao reconhecível passa a ser a tônica do filme, diferente do que ocorre com Névoa e assobio. Ali, o horror e o indevassável nunca deixam de o ser, mesmo que o livro caminhe sempre em direção a um processo de cura e de aceitação. O testemunho da mãe-escritora permanece mudo diante do absurdo, ainda que o texto (e a autora) pareçam encontrar, em meio à escuridão dos dias um “litoral, ponto pacífico de hospedagem da dor” (DIAS, 2015, p. 51)

em Otto tudo indica a pacificação, a celebração do amor revelado e do novo ser que se forma recolhido ao ventre da mãe. Os motivos da água e da duplicação, recorrentes como metáforas conceituais do filme, se alternam para projetar no mundo exterior, na materialidade das coisas, a vitalidade e a beleza do um que se faz dois, do dois que se faz um, incessantemente. Células, sementes, bolhas, reflexos, luzes, gotas de chuva, rios – tudo se torna mais de um, tudo vai se tornando múltiplo (e infinito). Das mãos da mãe exala fecundidade: não é gratuito que ela apareça no filme trabalhando num pequeno jardim caseiro, dando vida às florezinhas, e na restauração de peças de madeira antiga, que renascem (é o que se sugere) ao seu toque paciente e habilidoso. O próprio tempo angustiado da espera, os meses da gestação tantas vezes sobrecarregados de expectativas e medos, torna-se doce em Otto, traduzido numa contagem de um a cem feita por Florencia, que ri despreocupada diante da câmera, seduzindo-a uma vez mais, ao recitar os números em espanhol.

Um elemento evocado em comum nas duas obras parece-nos indicar a beleza singular de cada uma delas, bem como a imagem de vetores invertidos que ambas projetam quando colocadas frente a frente. Referimo-nos à questão do destino. No livro de Bianca Dias a tragédia ocupa um lugar especial, como parecerá óbvio a cada um de seus leitores. A surpresa, a morte, a falta total de sentido indicam um universo fechado e aparentemente sem saída. No entanto, o movimento da escrita e o esforço ético empreendido pela narradora vão transformar o panorama e anunciar a sua consigna decisiva: ‘amor fati’, a alegria (de matriz nietzschiana? lacaniana?) que transforma – luta por transformar – o luto em potência, a ferida em força, a repetição estéril em diferença criadora. No filme de Cao Guimarães (que não sairá diminuído por isso), por sua vez, o destino também é evocado pelo que ele tem de circular, mas o elemento principal aqui é o acaso e o reencontro, afinal: no monólogo que encerra o filme, quando enfim o espectador contempla em primeiro plano, de modo direto, a criança que nasceu, Otto, o artista conta de uma viagem de navio feita ao Uruguai vinte e cinco anos atrás, justo quando nascia, muito provavelmente, Flor Martínez; ao se dar conta da coincidência – ele e ela habitaram, sem saber, a mesma cidade, partilharam das mesmas águas – Cao faz um aceno ao imponderável do fado, que lhe preparava secretamente, naquela época, o amor e o filho que depois viriam. O destino aqui é também alegria e aceitação, mas a perspectiva envolvida não poderia ser mais diferente de Névoa e assobio, uma vez que o sofrimento parece não ter morada em Otto.

 

  1.  Songs of innocence

Uma jovem alemã, recém-casada e em estado adiantado de gravidez, caminha por Roma fascinada e amedrontada pela cidade, por seu caótico esplendor, pela mistura vertiginosa de tempos e referências que a caracteriza. O passeio não é longo, mas o passo lento permite contemplação detalhada do espaço circundante, que entra pelos sentidos da mulher e a inunda de informações e sons e cheiros novos, nem sempre completamente assimiláveis. Plena de lembranças (da infância, do marido ausente, da vila interiorana em que viveu) e habitada por um outro corpo – que a essa altura ainda não sabe ser o menino a quem chamará Friedrich –, ela penetra naquele mundo obscuro, que era também o mundo da Segunda Guerra Mundial e da ocupação estrangeira, de modo algo leve e alheado. Como quem não conhece um segredo por todos partilhado, ela observa com olhos desprevenidos o ambiente violento e hostil da metrópole sitiada, mais atenta, aparentemente, aos movimentos que o filho faz dentro de si do que aos dados do universo exterior em que deambula. Ternura e horror, alienação e ameaça combinam-se no seu percurso, muito embora ela pareça perceber com distanciamento e surpresa os aspectos negativos do trajeto que faz e da vida que leva. Em linhas gerais, esse é o traçado amplo que estrutura o romance Retrato da mãe quando jovem (2006), de Friedrich Christian Delius [cuja edição brasileira, traduzida por Luís Krausz, saiu em 2012 pela Tordesilhas]. Sua energia e originalidade residem aí, precisamente: o ponto de vista deslocado, ao mesmo tempo interno e externo à guerra, e a abordagem da brutalidade nazista a partir de uma perspectiva amorosa, ligada menos à morte do que à promessa de um nascimento, não servem para encobrir ou justificar a trama histórica terrível que se apresenta, mas antes a expõe com delicadeza e cuidado ao erguer a máquina ficcional do relato em torno de uma personagem e de um conjunto de fatos banais, mas que, naquele tempo de exceção, vão parecer extraordinários: a doçura da gestação, as pequenas angústias de uma jovem que espera pelo marido, as caminhadas diárias (e algo turísticas) por uma cidade antiga e bela – tudo isso, enquadrado por aquela moldura específica, os anos finais do Terceiro Reich, é inquietante e forte.

Voltada para si, ela percebe cada uma das contradições daquele muito particular contexto conflagrado de modo único, microscópico e afetivo, longe dos esquemas mentais já codificados que costumam acompanhar o entendimento de épocas e situações como aquela, no campo da ficção e fora dele. Desconectada de conceitos estáveis a respeito das nações estrangeiras, das leis raciais e do papel exercido pela Alemanha nos combates desiguais que então se davam, a jovem mãe percebe, sem propriamente entender, a fome, a revolta, o absurdo que se movem ao seu redor. A notação da paisagem humana complicada é interrompida, aqui e ali, pela presença física da criança, uma espécie de contraponto à violência e à incompreensibilidade que a envolvem. Veja-se, sobre isso, o trecho a seguir: nele, referindo-se ao marido, um oficial nazista de baixa patente que se dedica a trabalhos administrativos, ela pensa (o que não deixa de ser significativo) em ‘ilhas’ e ‘refúgios’, sem considerar, claro está, as ressonâncias que têm esses termos no horizonte da Europa de então:

seu amado marido não poderia ter-lhe encontrado um refúgio melhor, ela não teria sido capaz de encontrar uma ilha alemã mais bonita do que aquela, a criança dentro dela se agitava com esses pensamentos, ela parou, sentiu os golpes das perninhas e dos bracinhos considerando-os como sinais de concordância, aos quais respondeu colocando a mão direita dentro do casaco e passando-a devagar pelo vestido e pela barriga,

e quando os socos e pontapés se acalmaram, pôs-se a caminho da outra ilha alemã, da igreja da Via Sicília, onde o concerto deveria começar às dezesseis horas, era o caminho conhecido de um ilha à outra, uma vez que o resto, a gigantesca cidade de Roma, ainda lhe parecia

um mar que ela tinha de atravessar oprimida pelo medo do desconhecido, das profundezas que se erguiam no subsolo dessa cidade […]

(DELIUS, 2012, p. 17-18)

O episódio servirá, quem sabe?, como síntese das muitas questões que estão implicadas na narrativa. A referência às profundezas desconhecidas e assustadoras da cidade, às ruínas por sobre as quais se assentam todos os monumentos de Roma (a “terrível pobreza” que serve de base para “todo o esplendor” [DELIUS, 2012, p. 67], conforme benjaminianamente propõe o autor) traz uma ambiguidade interessante: ela é, a um só tempo, indício de uma consciência histórica problemática – que percebe no presente os destroços do passado como alegoria e prefiguração do futuro – e metáfora para a condição da personagem principal: grávida, escondendo no próprio ventre a criança que a encanta e assusta, ela se reconhece um pequeno mistério, um ser muito mais complexo (dono de “profundezas”) antes inteiramente insuspeitadas. A unidade de si, antes não questionada – é o que o texto indica ao caracterizá-la a partir da retidão moral e do senso de integridade dos luteranos alemães –, vê-se abalada pela presença natural, mas ainda assim estranha, do corpo do filho. Os socos e pontapés que que dá a criança, a conversa silenciosa e cordata que a mulher mantém com ele, entretanto, são desdobramentos dessa relação interior/exterior, superfície/profundidade que o livro apresenta a partir da imagem da cidade. Se Roma tem seus subterrâneos, e é preciso intui-los com cautela, também a jovem mãe, qualquer mãe, os vai possuir, sabendo-se, assim, o refúgio de uma nova vida e necessitando, igualmente, da proteção imaginária de um outro refúgio, ‘safe house’ que pode ser, como no contexto do romance, uma colônia alemã na Itália ocupada, ou qualquer outra morada (certeza, garantia, ‘demeure’, lugar da demora, se pensamos com Derrida) em que seja possível abrigar-se. Um último detalhe, quase despercebido, parece importante na cena destacada acima: a personagem caminha pela capital indo em direção a um concerto. Em meio à guerra, ou talvez mesmo por causa da guerra, como uma distração imprescindível, ela vai ao encontro da arte, entreter-se com um programa religioso no qual a música ocupa lugar decisivo.

Canção e catástrofe, curiosa associação: a música atravessa, com significados simetricamente opostos, os textos de Friedrich Christian Delius e Bianca Dias. Ambos, Bildnis der Mutter als junge FrauNévoa e assobio, são peças ao mesmo tempo (e paradoxalmente) graves e ligeiras, dramáticas e fugazes. Ainda que um elemento visual atravesse, desde o título, cada um desses textos – a referência à pintura, à fixação de um instante da vida de uma mulher, no primeiro; a presença rarefeita e impregnante da névoa e dos desenhos, no segundo –, o ponto nevrálgico de cada um deles repousa na presença e nos significados que a música (sua sugestão formal, sua incidência material como canto e performance) vai assumir. O romance de Delius, já se pôde anotar rapidamente, tem um concerto como ponto de chegada e sentido de percurso. Armado como narrativa lírica, portanto musical, literalmente construído sobre uma única frase (que se prolonga pelas 137 páginas da edição brasileira, entremeando os pensamentos da personagem à voz discreta do narrador), o texto tem o canto coral como seu horizonte formal e como fim (‘télos’ – endereçamento e sentido). A jovem gestante marcha em direção à música, e é no instante irrepetível de sua performance que a visão de mundo ingênua e desarmada da mulher ganha densidade e parece esclarecer-se:

sob uma cúpula de sons, que culminava com o coro Vem, ó morte, irmã do sono, na qual, com espantosa ousadia, a morte era cantada tão abertamente, louvada e desejada, Vem e leva-me daqui, e graças às notas lentas e penetrantes da música, o terror da morte se afastava e se perdia, e como até mesmo

as sirenes eram sobrepujadas, o rugido dos bombardeiros que se intensificavam, as bombas caindo e explodindo, as casas que desabavam, os gritos e os gemidos dos feridos, o som sinistro dos relatos do exército era sobrepujado, assim como todo o clamor da guerra,

assim ela desejava mais corais, ainda muito mais altos, contra a morte, dia e noite os corais e os órgãos haveriam de ressoar, tocar com todas as notas até que a guerra acabasse, desde já todos deveriam cantar junto, a irmã Ruth, a irmã Luise, elas só tinham de começar, todos os espectadores em seus assentos, todos os que estavam na igreja, a Via Sicília inteira, a cidade de Roma inteira, a Europa inteira tinha de cantar junto e, sem intervalo, entoar um coral depois do outro […]

(DELIUS, 2012, p. 135-136)

Postada ao final do relato, a música amplia e explica algumas das opções do autor. Sua preferência pelo olhar inculto, quase infantil, da personagem aqui ressoam como ‘princípio-esperança’ (para falar com o filósofo – também alemão – Ernst Bloch), como elogio da ingenuidade num tempo e num espaço cínicos, destituídos de qualquer transcendência ou redenção. A escolha pela prosa ritmada, virtualmente interminável, de uma oração que se espraia por todo o romance, parece querer indicar também o desejo desse canto “sem intervalo”, sucessão contínua de sons que se sobrepõem uns aos outros e desfazendo, em perspectiva órfica, quase mágica, os horrores da carnificina e da morte. São ‘canções da inocência’ o que ouvimos, quase é possível dizer, da primeira à última página do Retrato da mãe quando jovem, mesmo que nem todas possuam o aspecto catártico e totalizante que o trecho citado apresenta.

Muito diferente, como ficou dito, será o caso da relação de Névoa e assobio com o tema. Ali, ao contrário do que ocorre no texto de Delius, a música não está no fim, não figura como destinação e ponto de convergência da narrativa. Ela é o início de tudo, a palavra ofertada, o gesto que dispara a escrita do livro. Paradoxalmente, a música não abafa ou sobrepuja a morte, mas nasce dela, se forma a partir de sua inexorabilidade. Após perder o filho da maneira que perdeu, a mãe-narradora diz – recordando a canção “Cajuína”, de Caetano Veloso, que por sua vez rememora outra morte traumática, sem sentido, o suicídio do poeta Torquato Neto:

No funeral, cantei rouca a pergunta que sempre me acompanhou. Cantei todos os mistérios da minha infância: a primeira vez em que escutei o barulho do mar aprisionado na concha, o momento em que enxerguei o risco de uma estrela cadente e a memória do canto de um sabiá nos fundos da casa de meus avós. Existimos, a que será que se destina? (DIAS, 2015, p. 30; grifo nosso)

Música lutuosa, receptáculo da dor, o próprio texto de Névoa e assobio se confunde com esse ato de desespero e de recomposição, esse rito iniciático – cantar, embalar pela última vez o filho morto – no qual a sombra do passado e os mitos de origem (e não é sem razão que a passagem que se apresenta evoca o mar, o cosmos e a memória) se encontram e se misturam. Se a pergunta cantada não tem resposta, sua própria existência é já resposta, isto é, interpelação e chamado, a escrita que nasce dessa música possível também não se reduz ou deixa aprisionar, permanecendo como desafio e reverberação. O filho perdido, Caetano, em torno de quem tudo gira e para onde todas as palavras, afinal, retornam (o livro é um relicário para ele, conforme antes já se disse), é, ele também, uma música inassimilável, da qual sempre restará algo na lembrança de desconhecido e impossível de apreender completamente. O filho, para a mãe que o enterra assim, quase sem tocá-lo ou conhecê-lo, restará sempre como mistério, como (de acordo com as imagens do título) “névoa branca de onde não se avistava seis metros” ou ainda “canção indecifrável” (cf. DIAS, 2015, p. 73), melodia assobiada fugazmente por um desconhecido, na rua, de relance.

Passagem do indizível que no entanto se diz, visitação do inferno e vislumbre da sua superação, a música (e o texto) para Bianca Dias são ‘canções da experiência’ arrancadas ao silêncio imposto pelo sofrimento; são, para com a autora falar novamente a partir de Lacan, pequenas mortes “em que aquilo que triunfou foi a vida e a invenção” (DIAS, 2015, p. 20).

 

BIBLIOGRAFIA

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BLAKE, William. Canções da Inocência e da Experiência. Trad. Leonardo Gonçalves & Mário Alves Coutinho. Belo Horizonte: Crisálida, 2005.

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DELIUS, Friedrich Christian. Retrato da mãe quando jovem. Trad. Luís Krausz. São Paulo: Tordesilhas, 2012.

DERRIDA, Jacques. Morada. Trad. Silvina Rodrigues Lopes. Lisboa: Vendaval, 2004.

DIAS, Bianca. Névoa e assobio. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2015.

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FREUD, Sigmund. O inquietante. In: Obras completas (vol. 14). Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 328-376.

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LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PLATH, Sylvia. Collected poems. New York: HarperPerennial, 1992.

SPITZER, Leo.La enumeración caótica en la poesía moderna. Trad. Raimundo Lida. Buenos Aires: Instituto de Filología, 1945.

 

[1] Onde se poderá ler, por exemplo, esses bastante significativos trechos: […] “Eu seria obrigada a continuar a reconhecer. E reconhecia na barata o insosso da vez em que eu estivera grávida.” (LISPECTOR, 1998, p. 81) […] – Lembrei-me de mim mesma andando pelas ruas ao saber que faria o aborto, doutor, eu que de filho só conhecia e só conheceria que ia fazer um aborto. Mas eu pelo menos estava conhecendo a gravidez. Pelas ruas sentia dentro de mim o filho que ainda não se mexia, enquanto parava olhando nas vitrines os manequins de cera sorridentes. E quando entrara no restaurante e comera, os poros de um filho devoravam como uma boca de peixe à espera. […] Gravidez: eu fora lançada no alegre horror da vida neutra que vive e se move.” (LISPECTOR, 1998, p. 86-90).

 

*Professor Adjunto de Literatura Brasileira junto à FaLe – Faculdade de Letras da UFMG. Doutor em Literatura Comparada (UFMG). Belo Horizonte, Brasil. E-mail: gutosr1@hotmail.com