Entre outros – Entrem, outros! – Mariana Cristine Hilgert

Entre outros – Entrem, outros!

 

Mariana Cristine Hilgert*

 

Daru morava num pedaço da Algéria situado em meio a um deserto de pedras. A escola onde ensinava, e que também lhe servia como casa, ficava no alto de uma colina. Daru dava de comer às galinhas que ficavam no alpendre, guardava um fuzil de caça num baú e sabia preparar galletes. Preparou-as, certa vez, para um homem que recebeu em sua casa, trazido pelo já conhecido policial Balducci. Tudo o que sabia do homem é que era árabe, não falava francês e cometera um assassinato. Daru ofereceu ao homem galettes, chá quente e cobertas, além de uma cama de campanha, que dispôs ao lado da sua, para passar aquela noite.

Esse homem sem nome, referido apenas por epítetos que evocam sua alteridade, é, junto de Daru e Balducci, personagem do conto “O Hóspede” (2010), de Albert Camus. Ele encarna, ao mesmo tempo, três figuras aparentemente distantes e sem nenhuma relação entre si: a do estrangeiro, a do prisioneiro e a do hóspede. No entanto, o texto de Camus abre espaço para questionar o real distanciamento entre essas figuras, e não só entre elas, mas também entre esse homem, tão outro e estrangeiro, e Daru, que apesar de assumir, na perspectiva do conto, a figura do próprio (por estar em contraposição ao outro explícito), aparece por vezes também como estrangeiro, prisioneiro e hóspede na e da sua própria condição. Dois trechos do conto revelam essa perspectiva:

 

A região era assim, cruel de se viver, mesmo sem os homens que, no entanto, não resolviam nada. Mas Daru nascera lá. Em qualquer outro lugar, sentia-se exilado (CAMUS, 2010, p.77).

(…)

Nesse deserto, nem ele nem seu hóspede, era nada. E, no entanto, fora desse deserto, Daru bem o sabia, nem um nem outro teriam conseguido realmente viver (CAMUS, 2010, p.88).

 

Essa percepção do outro que não é apenas aquele que está fora de mim; do hóspede, do estrangeiro e do prisioneiro que também sou eu e que também me é, pode ser relacionada à palavra francesa hôte e à ambiguidade que lhe é inerente. O ensaísta brasileiro Manuel da Costa Pinto, que se debruça de maneira exaustiva sobre a obra de Camus, como atestam os ensaios reunidos em Paisagens Interiores e outros ensaios (2012), faz a seguinte reflexão sobre o termo que dá título ao conto em questão:

 

De algum modo esse último conto sintetiza as mutações da figura do estrangeiro em Camus: ele lança mão aqui da ambiguidade (inexistente em português) do termo hôte, que em francês significa simultaneamente “hóspede” e “hospedeiro”, remetendo à raiz etimológica latina de hospes e hostis (“inimigo”), à qual se soma o termo grego xénos (“estrangeiro”, mas também aquele que é “hospedado”. O estrangeiro de Camus: hóspede inimigo de si mesmo (PINTO, 2012, p.70).

 

Manuel da Costa Pinto amplia o alcance do termo, conferindo a ele novas possibilidades de sentido.  Assim, se a compreensão de hôte como hóspede é inevitável, todas as outras compreensões, emergentes da dilatação dessa palavra, são inexauríveis. Está-se, assim, diante de uma multiplicidade de sentidos possíveis, que torna possível citar o termo hôte, no contexto do conto de Camus, como exemplo de uma equivocação.

Etimologicamente, o termo “equivocação”, do latim aequivocatĭo,ōnis, indica frase ou palavra que “pode ser entendida de dois ou mais modos diferentes” (Houaiss Online). Num artigo publicado em 2004 na revista “Tipit”, o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro delineia essa ideia de equivocação nos termos da antropologia, perpassando também a tradução. Para tanto, ele vê como fundamental desfazer um mal-entendido recorrente: aqui, equivocação não quer dizer erro, não encontrando nem no acerto nem na verdade o seu antônimo. A equivocação é, antes, um elemento que constitui e justifica os processos de compreensão. Sem a equivocação não seria nem mesmo possível comparar, pois se compara apenas o que é incomensurável, isto é, “que não tem medida comum com outro” (Houaiss Online). Como diz Viveiros de Castro, “comparar o comensurável é tarefa de contadores, e não de antropólogos” (CASTRO, 2004, p.10).

É na dimensão da equivocação que se dá o trabalho do antropólogo – e também do tradutor. Afinal, “traduzir é se situar no espaço da equivocação e habitá-lo. Não é desfazer a equivocação (dado que isso faria supor, em primeiro lugar, que ela nunca existiu), mas é justamente o contrário que é verdade. Traduzir é enfatizar ou potencializar a equivocação” (CASTRO, 2004, p.10). Tanto antropólogos quanto tradutores trabalham nessa esfera onde nunca se fala do que se vê, mas de como se vê – e aqui incorremos, quase sem querer, na imagem ambígua do gato e da lebre analisada por Wittgenstein. É justamente pelo fato de não se poder ver algo que seja, verdadeiramente, um “o quê”, isto é, que esteja cristalizado numa compreensão única e objetiva, que a equivocação se constitui como um processo que justifica constantes retraduções, ou novos trabalhos etnográficos. No fundo, todos eles estão em busca da utópica equivocação. Mas, assumindo a perspectiva de uma dimensão menos transcendental e mais pragmática, pode-se falar da equivocação “não como uma falha subjetiva, mas como uma ferramenta de objetivação” (CASTRO, 2004, p.11), isto é, que impulsiona tradutores e antropólogos a tentar chegar sempre mais perto de uma espécie de verdade comum.

A palavra hôte, nas suas diversas possibilidades de sentido, isto é, na perspectiva de sua equivocação, implica numa relação plena de novas equivocações entre Daru e o outro, entre o Outro de Daru e o Outro daquele outro. Pois se Daru enxerga em seu hóspede um prisioneiro, da mesma forma ele próprio pode igualmente ser visto pelo seu hóspede, ou pelos leitores do conto, como hóspede e prisioneiro de sua condição.

Ora, é possível observar diferentes aspectos dessa relação de equivocações entre Daru e seu hóspede. Por um lado, tem-se a alteridade daquele homem estranho sendo constantemente reafirmada ao longo do conto, seja 1) pela disparidade de papeis assumidos por ele e por Daru na situação em que se encontram e, logo, pela inevitável relação de dominação que se emerge daí – Daru, o dominador, havia sido incumbido de levar esse homem até outra localidade e entregá-lo; o homem, dominado, dependia de Daru, das galletes, da cama e do chá quente dele para sobreviver; 2) seja pelo próprio sentimento de ameaça do qual Daru se torna refém em sua casa. Por outro lado, este mesmo Daru, intrigado e assustado pela diferença, parece querer reduzir as fronteiras que o separam desse outro. Vejamos o seguinte trecho:

 

O outro pegou um pedaço de galette, levou-o avidamente à boca e deteve-se.

– E você? – perguntou.

– Depois de você. Vou comer também.

Os lábios grossos se abriram um pouco, o árabe hesitou, depois de uma mordida decidida na galette.

Terminada a refeição, o árabe olhava para o professor.

– Você é o juiz?

– Não, só fico com você até amanhã.

– Por que está comendo comigo?

– Estou com fome.

O outro se calou. Daru se levantou e saiu. Trouxe de volta uma cama de campanha, estendeu-a entre a mesa e o fogão, perpendicular à sua própria cama. De uma grande mala que, de pé num canto, servia de estante, retirou dois cobertores que arrumou sobre a cama de campanha. Depois deteve-se, sentiu-se ocioso, sentou-se na cama. Não havia mais nada a fazer ou preparar. Era preciso olhar para esse homem.

(…)

No quarto em que, há mais de um ano, dormia sozinho, essa presença o incomodava. Mas incomodava-o também porque lhe impunha uma espécie de fraternidade, que ele recusava nas atuais circunstâncias e que conhecia bem: os homens que compartilham os mesmo quartos, soldados ou prisioneiros, adquirem um estranho vínculo como se, tendo deixado as armaduras com as roupas, se unissem todas as noites, acima de suas diferenças, na velha comunidade do sonho e do cansaço (CAMUS, 2010, p.87).

 

Daru, mesmo que à revelia de seu próprio instinto, tenta trazer esse outro para perto de si. Não extingue sua alteridade, mas suspende-a, enfraquece-a provisoriamente. Essa condição de aproximação vale até o próximo momento em que Daru, tomado novamente pelo medo da ameaça, se afasta.

Tem-se, assim, hóspede e hospedeiro que, no espaço de tempo de uma noite, se aproximam e se afastam de forma irregular, inconstante. No âmbito deste primeiro movimento, eles vão juntos no sentido de uma homogeneização – que, como aponta Ricœur (1999), é o que constitui o princípio da hospitalidade. Ora, se a hospitalidade homogeneíza, ela inevitavelmente horizontaliza a relação entre o que é próprio e o que é outro, contrapondo-se à dominação, que hierarquiza. Porém, o fato de, também segundo Ricœur, não conhecermos um “modo de funcionamento da humanidade que tenha eliminado as relações de dominação”(1999, p.19), faz com que a hierarquização esteja inevitavelmente inserida na hospitalidade, mesmo que de forma oscilante. Temos aí o segundo movimento que se dá na relação entre Daru e o outro, em que as diferenças entre eles apenas os afastam.

A partir da relação entre Daru e seu hóspede, é possível, analogamente, relacionar o que se convenciona denominar “obra original” e “tradução”, a partir dos seguintes questionamentos: é possível estabelecer uma relação entre original e tradução que seja menos hierarquizada e mais homogênea, em que o primeiro não se encontre necessariamente acima do segundo, mas ao lado, tal qual Daru quando dispõe a cama do hóspede ao lado da sua? Até que ponto língua e cultura de chegada podem, por meio da tradução, hospedar em seu seio esse estrangeiro? Até que ponto a alteridade desse não representa uma ameaça? Ou como saber até onde é possível permitir a entrada desse estranho – como saber, enfim, quantas galletes podem ser preparadas, quantos chás quentes e cobertas podem lhe ser ofertados, sem deixar que esse estrangeiro assuma essa casa como sua e a domine? Até que ponto uma alteridade, quando suspensa ou quando enfraquecida, não representa um risco? Qual o limite da hospitalidade? Existe, ele, de fato?

O devir dessas perguntas é o que, aqui, parece haver de mais interessante. Elas servem como fio – e não como fim –, evocam respostas renováveis e nos levam a novas perguntas. E uma dessas novas perguntas perpassa, inevitavelmente, todas as que fizemos anteriormente: esse estranho, que se hospeda em nossa casa, em nossa língua, é uma ameaça para quem e para o quê? O pensador alemão Schleiermacher, no ensaio “Sobre os diferentes métodos da tradução” (2010 [1813]), sugere que o estrangeiro, quando abrigado na língua materna, poderia ameaçar “o bom estado natural da língua” bem como“a pureza da língua e seu tranquilo desenvolvimento” (2010 [1813], p.73). Contudo, o que se entende do ensaio de Scheleiermacher é que nem esse estado da língua nem a referida pureza existem como tais – são, nas palavras de Berman, apenas mitos. “Pois o que existe não é um tal desenvolvimento separado, mas relações de dominação entre as línguas que devem ser substituídas por relações de liberdade” (BERMAN, 2002, p.268).

Então seria de liberdade que fala Ricœur, ao preconizar uma relação de hospitalidade homogeneizante, como vimos previamente? Incorporando essa ideia à tradução, podemos supor que, se assim for, essa liberdade estaria condicionada por uma maturidade da língua e cultura de chegada como um todo. Assim preconizavam os românticos alemães durante “Bildung”. E é isto que, com base nas reflexões daquele período, Berman postula: enfrentar os riscos de uma tradução desse gênero, que aproxima o estranho do nativo, “supõe uma cultura que já tenha confiança em si, em sua capacidade de assimilação” (BERMAN, 2002, p.286). E, ouso acrescentar, supõe ainda um tradutor que saiba que, ao privar a sua língua e o seu leitor da relação com o estrangeiro, impões-lhes outro risco: o de deixá-los acreditar que o estranho, o outro, é só aquele que habita fora do meu próprio eu, ignorando que a cada de um nós e à nossa própria língua, cabe uma alteridade.

Há outro mito (questionável, naturalmente) que pode emergir aqui: o de que é possível estabelecer limites claros para a entrada do estrangeiro na tradução. No ensaio “Introdução a Agamêmnon”, Wilhelm von Humboldt (2010 [1816]) tenta tornar essa fronteira mais concreta. Nesse sentido, ele distingue entre a presença imprescindível do estranho e a indesejável entrada da estranheza na tradução, sem, no entanto, ir além.

É neste mesmo sentido que o jornalista Jean Daniel parece ir ao perguntar ao pensador francês Paul Ricœur se a palavra “limite” lhe seria insuportável quando relacionada à entrada do estrangeiro numa cultura. Ricœur traz uma resposta-reflexão interessante:

Não, mas percebo que quanto mais se é culto e mais se esteve misturado a culturas estrangeiras, menos se é sensível a isso. Entendo também que boa parte de nossos concidadãos, que se sentem eles próprios ameaçados em sua vida cotidiana, em sua moradia, no trabalho, têm uma taxa de tolerância baixa. É preciso admiti-lo. Lembro-me que, durante a eleição em Toulon, o candidato socialista me telefonou e disse: “Vivo junto de pessoas que voltam a questão da exclusão contra si mesmas. Querem expulsar os estrangeiros, pois sentem-se elas mesmas excluídas da discussão políticas, são elas que se sentem marginalizadas.” Então, é preciso admiti-lo, temos entre nossos concidadãos pessoas que pensam que foram marginalizadas. É muito importante simplesmente reconhecer isso, para analisa-lo, a fim de compreender esse fenômeno que revela uma grande fragilidade individual e coletiva (RICœUR, 1999, p.21).

Ora, seria a fragilidade individual e coletiva, ou, pelo outro lado, sua força e autoconfiança, a fronteira limítrofe para a entrada do estrangeiro numa cultura ou, por que não, na tradução? Uma cultura mais alicerçada em si está apta a melhor a aceitar o outro – era o que assumiam os românticos alemães e o que parece razoável continuar afirmando. O próprio fato de uma cultura conviver com esse outro, em alguma esfera, ou mesmo traduzi-lo, como afirma Berman, já indica um caminho que vai no sentido do romper com uma relação de dominação. “Mas o risco de passar brutalmente de um extremo a outro e, portanto, de desequilibrar a relação com a língua materna existe”, pondera Berman, em relação à tradução. Esse risco se torna mais evidente tão mais a tradução aproxima o estrangeiro de sua língua de chegada. Assim, como sugere Schleiermacher,

 

se não se quer colocar no mesmo nível o mais perfeito e o mais pobre e defeituoso, terá que se admitir que este método de tradução exige inevitavelmente da língua uma atitude que não somente não é cotidiana, senão que, além disso, abre o flanco para a censura de não ser espontânea e acomodar-se mais a uma semelhança exótica. E é preciso confessar que fazer isto com arte e com medida, sem prejuízo próprio e sem dano à língua, talvez seja a maior dificuldade que tem que vencer nosso tradutor (2010 [1813], p.71).

 

É preciso aprender a lidar com a exoticidade e a alteridade do outro. É preciso permitir que o estrangeiro veja a tradução e a língua de chegada como sua casa, que se sinta à vontade, não apesar de sua alteridade, mas justamente por causa dela. É a alteridade que aproxima, isto é, a possibilidade de comparação, de se estabelecer relações, como sugere o conceito de equivocação de Viveiros de Castro. Dessa relação emerge ou pode emergir um sentimento de fraternidade, isto é, apesar de eu não ser o outro, o outro está, inevitavelmente, relacionado a mim.

Voltando ao excerto do conto de Camus citado previamente, percebe-se que Daru fala justamente sobre esse sentimento de fraternidade, o qual ele mesmo hostiliza, mas que, não obstante, o toma. Este sentimento evoca, aqui, uma outra história, que tem por figuras centrais não mais Daru e seu hóspede, mas os índios Cashinahua, habitantes da região amazônica. Quem relata a história é o antropólogo Viveiros de Castro, no mesmo artigo onde fala sobre o conceito da equivocação.

O antropólogo conta que, certa feita, o cantor brasileiro Milton Nascimento, ao visitar a tribo dos Cashinahua, se sentiu tão tocado pela hospitalidade que decidiu lhes dedicar seu próximo álbum. Esta hospitalidade, percebida e vivenciada por Nascimento, se resumiu, para ele, na palavra txai, empregada pelos nativos para se referir a ele e aos demais “estrangeiros” presentes na expedição. O antropólogo brasileiro foi convidado, tempos depois, a escrever uma nota para o CD que Nascimento lançaria, e cujo título seria, justamente, txai. Viveiros de Castro teria de “explicar aos fãs de Milton o significado do título, e dizer algo sobre o sentido de solidariedade fraternal expressada pelo termo txai e o seu significado de ‘irmão’” (CASTRO, 2004, p.16, tradução nossa). O problema é que esse termo poderia “significar quase que tudo, exceto, precisamente, ‘irmão’” (2004, p.17).

Para explicar o sentido que txai tem para os nativos, ou melhor, o sentido que este termo não tem para eles, Viveiros de Castro estabelece uma comparação com a palavra “cunhado”. Assim, aquele a quem os índios chamam de txai está de alguma forma a eles relacionado, mas não tem o mesmo sangue nem é, necessariamente, um amigo. Na verdade, para ser txai, “basta ser um estranho, ou até mesmo – o que é ainda melhor – um inimigo” (2004, p.17). Por não querer abdicar desse sentido de alteridade que o termo txai implica para os nativos, sentido que, por outro lado, não comungaria com a ideia de fraternidade que Milton Nascimento pretendia levar em seu álbum, o antropólogo refutou o convite e acabou por não escrever a nota.

É curioso, porém, que, ao relatar essa história, Viveiros  de Castro não condena em nenhum momento a compreensão que Milton teve do termo indígena. Ele explica que

 

o problema com o mal-entendido sobre txai não está no fato de Milton Nascimento e meu amigo [amigo de Viveiros de Castro, que entrara em contato para que ele escrevesse a nota do CD] estarem errados em relação ao sentido da palavra Cashinahua. Pelo contrário, o problema é que eles estavam certos – num certo sentido. Em outras palavras, eles estavam equivocados (2004, p.17).

 

Há, assim, uma equivocação em torno do termo txai. Isso quer dizer, conforme vimos antes, que entender txai como irmão também não é um erro. Um dos sentidos que esse termo revela é de pessoas afins, mas não consanguíneas – seria como chamar um estranho de irmão, diz o antropólogo, o que explica por que os Cashinahua muito improvavelmente chamariam seus irmãos dessa forma. O outro sentido do termo é aquele que a situação evoca em Nascimento e nos demais “estrangeiros”: um sentido que, dada a situação, acaba por incorrer na ideia de irmão.

Ora, na base desse mal-entendido está o fato de não só os Cashinahua, mas também outras tribos indígenas da Amazônia empregarem “termos cuja tradução mais direta é ‘cunhado’ ou ‘primo cruzado’ em diversos contextos nos quais brasileiros e outros povos de tradução euro-cristã realmente esperariam algo como ‘irmão’” (2004, p.17). Estabelece-se uma relação entre o outro e o próprio que está vinculada a uma noção prévia sobre a própria ideia de relação. Mas por mais que a compreensão dessa noção seja equivocada, isto é, apresente mais de um sentido, ela pode ser validada pelo denominador comum que as vincula. “Dois parceiros em qualquer tipo de relação são definidos como conectados à medida que eles apresentam algo em comum, isto é, estando numa mesma relação com um terceiro termo. Relacionar é assimilar, unificar, identificar” (2004, p.18).

O relato do antropólogo sobre o termo txai é a singularização de um assunto bem mais universal e central neste ensaio: a relação entre diferenças. Em seu artigo, Viveiros de Castro fala especialmente das relações de tradução entre antropólogo e nativo. Mas da mesma forma que feito anteriormente, é possível relacionar as análises do antropólogo à tradução.

A relação entre dois universos, seja na antropologia, seja na tradução, acontece sempre nas bordas da incompreensão. E é essa incompreensão que impulsiona as traduções, sejam elas entre o antropólogo e o nativo, entre línguas e culturas distintas ou, até mesmo, entre antropólogos e dentro de uma mesma língua. Afinal, “relações intraculturais, ou comparações internas (…), e relações interculturais ou comparações externas são estritamente uma continuidade ontológica” (2004, p.4). Assim, para que se possa compreender, isto é, traduzir, é preciso que os elementos em questão sejam comparáveis, apresentem elementos comuns e relacionáveis entre si. Ser comparável não quer dizer, contudo, ser diretamente traduzível, como afirma Viveiros de Castro. No entanto, é justamente essa possibilidade de comparação que dá sentido a tradução. E comparar quer dizer atestar a diferença.

A diferença é, justamente, também o que aproxima o antropólogo do nativo, ou seja, é o que permite uma relação entre eles. Por isso, Viveiros de Castro atesta que

 

uma relação pode existir apenas entre o que se difere e à medida em que se difere. Nesse caso, a tradução se torna uma operação de diferenciação – uma produção de diferença – que conecta os dois discursos na medida em que eles não estão dizendo o mesmo. (…) A diferença é assim, uma condição de significação e não um obstáculo (2004, p.20).

 

Pensar a diferença como uma condição de significação poderia também nos levar a pensar que a intraduzibilidade, isto é, o conflito insuperável com a diferença, é inerente ao próprio ato tradutório. Seria a intraduzibilidade a conformação com a diferença? Deixo a provocação. Mas essas reflexões levam a pensar que uma, talvez a única, forma de superar qualquer intraduzibilidade seria aceitar a diferença, ao invés de refutá-la. Esta premissa estaria na base da interessante interpretação de Viveiros de Castro sobre o clássico adágio italiano traduttore, traditore. Para o antropólogo, a tradução deve ser traição, sim, mas da língua para a qual se traduz. E para isso, a figura do estrangeiro, que é o outro par excellence, torna-se imprescindível. Como afirma Viveiros de Castro, “uma boa tradução é aquela que permite que o conceito estrangeiro deforme e subverta a caixa de ferramentas conceituais do tradutor, para que o intentio da língua original possa, assim, ser expressada dentro da nova língua” (2004, p.5).

É por meio do outro que podemos transgredir ou transcriar, numa alusão à abordagem tradutória de Haroldo de Campos, a nossa própria língua. É preciso que ela não seja nossa, nem própria – é preciso que ela, seja, também, outra. Parece ser esse um dos sentidos para o qual convergem as reflexões anteriores de Schleiermacher. E é evidente que a permissividade da língua em relação a esse outro do qual falamos, é também o que supõem Ricœur ao defender, dessa vez num texto sobre tradução, a hospitalidade linguística (2011), e Berman (2007), ao postular aquilo que ele chama de albergue do longínquo.

Gostaria de finalizar esse ensaio tangenciando alguns dos pontos levantados ao longo deste texto, mas, agora, pelas letras do autor moçambicano Mia Couto. Num pequeno ensaio intitulado “Línguas que não sabemos que sabíamos” (2011), Couto traz, num formato de prosa poética que lhe é característico, algumas reflexões linguísticas sobre seu país, de independência recente e cujo idioma oficial, o português, é falada por uma parcela ainda pequena da população há menos de 40 anos. Além do português, 25 outras línguas africanas disputam e ocupam espaços, pensamentos, influências no país. Como não poderia deixar de ser, o português moçambicano é tingido pelas cores das culturas africanas.

Essa tensão entre e estrangeiro e nativo, na qual um e outro acabam convivendo, mas jamais se fundem completamente; na qual falar mais de uma língua é fruto de uma condição história e social, e não de um mero desejo ou interesse, seria, potencialmente, uma das grandes riquezas dos povos africanos. Em relação a isso, Couto reflete que “a nossa habilidade de poliglotas nos pode conferir, a nós africanos, um passaporte para algo que hoje se tornou perigosamente raro: a viagem entre identidades diversas e a possibilidade de visitar a intimidades dos outros” (2011, p.23).

Por ter crescido num contexto onde o que é outro e o que é próprio cruzam as fronteiras constantemente, Couto apresenta, em seu ensaio, um pequeno manifesto a favor dessa abertura a línguas, culturas e lógicas distintas, onde a palavra carregue utopias de outros mundos, como ele mesmo diz. O que o escritor propõe é uma língua na qual sejamos, nós mesmos, sonháveis. “Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que faça ser asa e viagem” (2011, p.24).

A diversidade de línguas que nos habitam e a favor da qual Couto abertamente se pronuncia, é o que evidencia o próprio título do ensaio de Couto. As línguas que não sabemos que sabíamos são justamente aquelas envoltas numa alteridade que nos impulsiona a ser um e a ser outro. Aquelas que são fruto de culturas-criaturas: “trocam genes e inventam simbioses como resposta aos desafios do tempo e do ambiente” (2011, p.16). Afinal, as culturas resistem apenas apoiadas nessa condição de troca: elas “sobrevivem enquanto se mantiverem produtivas, enquanto forem sujeito de mudança e elas próprias dialogarem e se mestiçarem com outras culturas” (2011, p.16).

Todas as relações trazidas e abordadas no presente ensaio, seja na Algéria, na Amazônia ou em Moçambique, seja entre hóspede e hospedeiro, antropólogo e nativo, original e a tradução, supõe esse diálogo com o outro para que elas próprias, enquanto relações, continuem a existir e a se transformar. À primeira vista, todas essas relações são dicotômicas. Mas a partir da perspectiva de equivocação, elas tomam outra amplitude, passando a permitir possibilidades infinitas de compreensão para si.

Talvez seja apenas superando essa dicotomia e assumindo a equivocação que seja possível falar de relações de liberdade, onde as noções de próprio e de outro se mesclam, assentados sobre as suas respectivas identidades, mas pressupondo sempre uma inerente flexibilidade. Como os escritores, que não tem à disposição uma língua já existente e constituída, Couto afirma que “todos nós temos de encontrar uma língua própria que nos revele como seres únicos e irrepetíveis” (2011, p.23). Para isso, a pluralidade – seres plurais, idiomas plural – é indispensável, como defende Mia Couto; para isso, é fundamental não só viver entre outros, mas também invocar o chamado: entrem, outros!

 

 

Referências bibliográficas:

 

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BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou, O albergue do longínquo. Tradução do francês: Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro, RJ: 7Letras/PGET, 2007.

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CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocations”.In: Tipiti: Journal of the Society for the Anthropology od Lowland South America. Tradução nossa. 2004.

COUTO, Mia. “Línguas que não sabemos que sabíamos”. In: E se Obama fosse africano?: e outras interivenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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HUMBOLDT, Wilhelm Von. “Introdução à Agamêmnon“. Tradução do alemão: Susana Kampff Lages. In: Heidermann W. (Org). Clássicos da Teoria da Tradução. Vol 1, Alemão-Português. 2ª ed. Revista e ampliada. UFSC, 2010, p.104-127.

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* possui graduação em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009) e mestrado em Ciências da Tradução (Übersetzungswissenschaft) pela Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Bolsista da Konrad Adenauer Stiftung de 2010 a 2013. Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista Capes. Membro da Associação Brasileira de Estudos Germanísticos (ABEG) e da Sociedade Europeia de Estudos da Tradução (EST)