A última coreografia – Sérgio Medeiros

A última coreografia                                                                                                

Sérgio Medeiros*

Coreografia de Trisha Brown

         Trisha Brown disse adeus, mas sua companhia de dança continuará em atividade, pois inicia em breve uma turnê internacional de despedida que durará três anos. Apesar de seus problemas de saúde terem se agravado nos últimos anos, ela continuou coreografando até o outono de 2011 e, nos meses seguintes, manteve contato regular com os bailarinos sob seu comando. Agora, com séria dificuldade de comunicação, tudo acabou: Trisha Brown não é mais a diretora artística da companhia que leva seu nome. Essa decisão foi anunciada em dezembro de 2012, de modo que o público que compareceu à Academia de Música do Brooklyn, no gelado inverno nova-iorquino, entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro, assistiu às duas últimas coreografias assinadas pela artista antes da aposentadoria: “Les Yeux et l’âme” (Os olhos e a alma), de março de 2011, e “I’m going to toss my arms – if you catch them they’re yours” (Lançarei meus braços – se você os pegar são seus), de outubro de 2011.   

       O programa incluiu também duas importantes obras antigas, “Homemade” (Feito em casa), de1966, e “Newark (Niweweorce)”, de 1987. Das duas excelentes coreografias mais recentes, a última foi a que mais me impressionou. Nessa obra longa, os bailarinos (quatro homens e quatro mulheres) dançam usando roupas largas como pijamas diante de grandes ventiladores postados num dos lados do palco. Os aparelhos discretamente ruidosos inflam as roupas que vão se soltando aos poucos dos corpos em movimento e depois deslizam livremente pelo palco vazio, impulsionadas pela brisa. As peças de roupa branca se movem devagar ou com pressa, ou primeiro com pressa e depois devagar (descrevo exatamente o que vi), mas não desaparecem do palco nem caem dele, embora isso obviamente também possa acontecer. As peças vão parando trêmulas aqui e ali, e algumas ainda deslizam um pouco mais para a frente ou para o lado.

       Essa delicada e inesperada “dança” de roupas sem bailarinos que um vento contínuo finalmente arrastou para o centro do palco enquanto ao fundo um músico tocava piano foi um dos momentos mais tocantes da última coreografia de Trisha Brown. Livres dos pijamas, os bailarinos finalmente tomaram o palco e dançaram usando coloridas roupas de banho como se estivessem numa praia tropical. Decididamente, essa obra de despedida não é melancólica (não fala da desmaterialização do performer), mas energética, na qual tudo se move e tudo vibra ao mesmo tempo o tempo todo. Trisha Brown despiu os bailarinos de suas peças de roupa e deu a estas “vida própria” no palco, mas elas não se tornaram assombrações nem substituíram a artista ausente. Tampouco se pode afirmar que os pijamas são casulos de que os bailarinos se livraram para melhor exercer sua arte ou atingir a plena liberdade de movimento, numa passagem do sono à vigília. Isso seria pouco sutil ou elementar demais para os altos padrões criativos da exigente Trisha Brown.

       Tudo ganha autonomia na última coreografia da artista norte-americana, daí o porquê de os bailarinos se moverem independentemente da música, e as roupas, independentemente dos bailarinos. Ninguém estorva ninguém, nessa cena vívida e complexa. Os bailarinos não descartam as roupas, e as roupas tampouco descartam os bailarinos. Essa é, parece-me, a essência da amorosa dialética entre vestir e despir, entre sonhar e despertar, na performance fascinante dessa coreógrafa. As roupas ficaram espalhadas no palco até o final do espetáculo e, ouso afirmar, foram tão ovacionadas quanto os próprios bailarinos.

       No dia 31 de janeiro, a companhia também dançou a mítica “Set and Reset” (Monta e Remonta), de1983, que o jornal “The New York Times” descreveu como “certamente a mais amada e irresistível obra da dança pós-moderna”. As roupas dos performers dançando ao som da música de Laurie Anderson adquiriram grande importância cênica, como registrou o mesmo jornal. Traziam a assinatura de Robert Rauschenberg, que criou toda a elogiada apresentação visual do espetáculo.   

* Tradutor e poeta, autor de “Totens”(Iluminuras, 2012). Texto publicado no jornal “O Estado de São Paulo”.