Finnegans Wake, textualmente – François Van Laere – Tradução: Leide Daiane de Almeida Oliveir

Finnegans Wake, textualmente*

François Van Laere**

Tradução: Leide Daiane de Almeida Oliveira***

Manuscrito de Finnegans Wake

 

Resumo: Esse artigo busca discutir a respeito da última obra de James Joyce, Finnegans Wake (1939), sob uma perspectiva linguística. Para tanto, o autor do artigo busca investigar os elementos linguísticos que estruturam a obra, traçando paralelos entre a obra em questão, a escrita rúnica, as especulações de Saussure sobre os hipogramas, textos védicos, entre outros. Embora a discussão se desenvolva baseada em pressupostos linguísticos, o autor do artigo faz ressalvas quanto à abordagem puramente linguística de um texto dessa natureza. Ele discute brevemente a questão da tradução e finaliza sua reflexão apontando para a inconclusividade de qualquer tentativa de leitura dessa obra e a abertura no campo de possibilidade de novas leituras.

Palavras-chave: Finnegans Wake; James Joyce; Literatura; Linguística; Tradução.

 

 

Transparece ao menos isto: Finnegans Wake celebra um ritual fúnebre. Mas o que, no curso dessa vigília única (o eterno agora), morre em eternidade para se inscrever em verdade? Condenado a morte, dizer – “a grand funferall” (13.15) – ressuscita tropeçando incansavelmente. Quando Bossuet foi exumado, faltava-lhe a faixa para segurar o queixo, tinha a boca aberta, grande, ainda proferindo: entre o corte dos lábios e o “avaro silêncio”, algo como o espaço de um “toast” – “Usqueadbaugham!” (24.14): Compreenda-se “Whisky” – e um “legado na desaparição de alguém ambíguo”.

Ilegível, onde esse livro procura deglutir toda palavra? Mas, sua goela não para de regurgitar sentidos, até emprestou algum a essa farta do não saber que é a física contemporânea, que tomou emprestada de “Muster Mark” (385.01) um “quark” para designar a hipotética partícula universal fundamental. Mas estamos no momento exato onde o “ilegível” se enuncia por trás de toda escrita – no momento exato onde esperamos (ou esperaremos por muito tempo) esse livro que poderemos apenas reler, sem saber, portanto se o lemos. O inferno de Joyce – voi ch’entrate… – não tem outro lugar, não tem outra necessidade (mas de um constrangimento absoluto, igual à sua gratuidade), que a possibilidade do dizer, e sua condição, seu preço irrisório.

De onde é que esse livro tira seu excesso (seu escândalo) que nos transborda sem cessar, nos condenando a nunca sermos dele suficientemente contemporâneos – Ao invés disso, de uma evidência simples: perguntar “o que lemos em F.W.?” é perguntar também “quem, lendo, somos?” Nesse jogo, apenas se ganha o risco e se aumenta a aposta infinitamente. Talvez nunca em outro lugar que não dentro desse texto sem porteiras, que vertiginosamente decepciona o questionamento pela superabundância de sua resposta, a “leitura” aparece nesse ponto senão como uma empreitada desesperada.

Houve um tempo em que a Grande Árvore do Mundo parecia acolher, em sua sombra generosa, qualquer interpretação. Mas, desde que a Yggdrasil Joyceana se livrou, com alegria, de certos frutos dos quais supusemos demasiadamente.  Temos no presente boas razões para crer que “the Strangest Dream that was ever halfdreamt” (307.11-13) não é de maneira alguma um teste de Rorschach: a ninguém é dada a permissão de ler o que lhe agrada traçando à sua guisa um percurso, digamos, pessoal (Mas, claro, uma vez que esse livro nos afugenta, é compreensível a tentação de alguns que escolheram se fechar em si mesmos). E não se pode dizer mais obra aberta, já que o que se abre, na realidade, é sua escrita, onde se reproduz com uma fidelidade “incrível” até aqui o desdobramento, sempre excessivo em comparação a leitura, de todo texto.

O monte de erudição que cresce e que podemos prever que aumentará até se tornar gigantesco – não por uma frutificação, mas em um tipo de esterco de uma leitura demente – chegando já a uma altura que permite mensurar a ambição nutritiva desse solo: recobrir o texto, ofuscar a exigência radical e imediata – “Time: the presente” (221.17) – que nos obriga a nele centrar nosso olhar. Pois: “anyhow, somehow and somewhere, before the bookflood or after her ebb, somebody (…) wrote it, wrote it all, wrote it all down, and there you are, full stop” (118.11-14). Mas onde estamos, onde nos encontramos em relação a esse texto? …

Em Ulysses, a aventura do palavra, igualmente reprimida, permite aos personagens múltiplos, que se situem abaixo do “textual”. Mesmo que polimorfas, eles não são menos investidos de um ser singular, embora herméticos; assim, eles não têm voz em matéria de linguagem. F.W., no entanto, por força de generalizar o princípio da relatividade interna, não propõe nada menos que a linguagem como personagem única.

O dispositivo científico que, hoje, tem a incumbência de configurar essa personagem singular se intromete oportunamente para tornar um discurso apropriado à textualidade (à “tessitura”) verbal da obra. Contudo, mediadora, a ciência se revela também dilatória. Mas como não ceder às solicitações  armadas por nosso olhar atual? Se, por nossa vez, envenenamos a árvore, seus frutos nos denunciarão…

A verdade conhece também os espelhos a serem prestigiados e sofre de miragens (o futuro nos dirá se os nossos não foram principalmente linguísticos). É necessário, então, considera-los até que o olho os perfure. É realmente surpreendente ver o linguista responder tão tarde às complacências que ele mostra ao texto. E, na verdade, qualquer trama que se escolha, a rede linguística parece destinada a recobrir totalmente esta escrita, desvendando o percurso de uma rota ignorada, inspirada no livro de Kells e trazendo os emaranhados verbais a um conjunto de estruturas simples.

Para se autodesignar, a linguagem devolve a luva da palavra e desvela um sistema puro de articulações, que Joyce agencia contrariando as leis da linguagem natural ao operar sobre um material “aberrante”: “Wear anartful of outer nocense!” (378. 32-33). Concebido tanto para o ouvido quanto para a vista, mas segundo dois registros distintos que só se conciliam dentro da singularidade da mensagem emitida, e não em sua recepção, esse material mantém a recepção ambígua, instala-se no mal-entendido, e restitui sua duplicidade originária. Os fenômenos combinatórios, conhecidos há muito tempo, administra os sons articulados, sejam próximos ou distantes, – e até mesmo as grafias se determinam entre si. Quando Joyce finge se subscrever a seus mecanismos – dos quais nenhum nega ao seu chamado: assimilação, expansão, diferenciação, dissimilação, inversão, metátese, aférese, apócope, haplologia, homeoteleuto, etc. –, ele trabalha, na realidade, em subscrevê-los, rubricá-los, ridicularizando a legalidade da ordem fonética para instaurar uma fonologia válida somente no âmbito de certo logos idioletal, o seu, forjado propriamente de todas as peças. Elevando a uma potência violentamente absurda a frequência de aplicação dos fenômenos combinatórios, ele transforma o caos original em espaço sistematizado, de estrita legalidade, onde a ordem, forçada, confessa sua profunda porosidade à desordem. Nessa ordem de virtualidades, ele dispõe, então, do poder demiúrgico de fazer aparecer ao seu querer quaisquer signos, liberados da motivação linguística, gratuitos. Uma gratuidade que lhe possibilita, por um lado, ordenar que os atos da linguagem se percam, que balbuciem em lapsos, trocadilhos, jogos de palavras diversos, para exprimir a zombaria não para com as línguas, mas, indiscriminadamente, a virtualidade de toda língua (a alquimia verbal não é regente: ela manifesta um resultando, um traço da intenção — seu negativo), e, por outro lado, “colorir” com signos, as presenças que ele delega dentro do texto.

Foi possível demonstrar[1], assim, que os pares de marcas pertinentes — “1-s”, “p–q” — atestam por toda parte a epifania de ALP. Os outros signos, igualmente, traçam, uma vez mais: tanto pelo olho quanto pelo ouvido – por convenção no “optophone” (13.16) – a configuração facial de HCE, de Shem e Shaun e de Issy. Para não nos mantermos apenas na página assim desenhada: pensemos em Mallarmé: no sonho de um texto que, entregue a uma candura nativa semeada com sinais de pontuação próprios, conservaria um tipo de “respiração” soberana, essencial, exalando de modo pneumático suas virtudes significantes e significadas. (Assim como as “ponctuation marks” do livro que são delegadas a King Mark, hipóstase de HCE).

É ALP que funda e distribui, do alfa ao ômega, o “alfabeto” de tal escrita. E se Anna Livia pode ser entendida como uma alegoria do “curso da história”, isso implica precisamente que — como tudo que aparece no livro — ela se inscreve como história dentro da linguagem, com, no entanto, o privilégio exclusivo de tomar a própria figura da linguagem corrente (riverrun). Concluamos nossa “alegoria”. HCE é a condição, a possibilidade do ser linguagista, sua escuta inefável: “Earwicker, that patternmind, that paradigmatic ear” (70. 35-36), enquanto que ALP coloca em cena a língua-mãe, fonte e receptáculo de todo enunciado. Agitam-se no seio do líquido amniótico, articulados pelo discurso e aspirando a uma cissiparidade impossível (é necessário “nascer”… – ou não ser?), os dois gêmeos antagônicos, S(h)em, o semantema perpetuamente amputado em busca de sua cauda, ou seja, o significado, e Shaun (shown), o mostrado, o significante visível. Hipóstases precárias de HCE, constantemente suspensos em suas refundições (o rasgo deles) dentro da unidade, eles são proibidos de violar ALP, uma vez que eles se inscrevem em sua substância! Mas tal inscrição não os dispensa de ter que medir a distância paradoxal que os separa, os isola (“penisolate”) dela. Os signos forjados serão reconhecidos como legítimos quando eles se dividem e dobram a unidade dual de Shaun-sound e Shem-sense: “wanamade singsigns to soudsense and yit wanna git all his flesch nuemaid motts truly plural and plusible” (138.7-9). E quem se interroga sobre a diferença entre os irmãos inimigos – “Can you not distinguish the sense, prain, from the sound, bray?” – se encontra reconduzido em direção ao substrato simbólico de toda língua: the sound sense sympol in a weedwayedwold” (612.29).

Para se estar autorizado a esse ponto da linguística, sabe-se bem que espécie de língua constitui F.W? E primeiro — sejamos ingênuos — essa “língua” coresponde às definições linguísticas da língua? Da partida da maquina operam matrizes de signos que propagam as redes de fonemas onde vêm se entrelaçar os monemas. Desta forma, portanto, se verificaria o princípio da dupla articulaçao, fundador necessário de uma língua, de acordo com Martinet. Quanto à sua escrita, essa língua — se existe língua no sentido ordinário — concretizada graças a uma íntima confusão, a coexistência perfeita de um alfabeto do tipo moderno, aparentemente o nosso, cujas unidades têm singificado por si mesmas, com as runas (ruinas também) artificiais que se motivam em verdadeiros ideogramas memorativos de uma época anterior ao pecado de dizer. Não há letra que, em si, não dilate uma esfera significada (dificuldade insuperável para quem pretendesse “traduzir” essa escrita e devesse, logicamente, transportar cada signo); e esses valores literais das unidades alfabéticas reproduzem o entalhe da escrita rúnica (“riverrun” novamente!), que Joyce pressupunha ser a forma de versificação dos Celtas: o “Rann”; tudo isso se originou, no fim das contas, de um desastre primitivo sobriamente resumido pela ideografia de “The Doodles family” e pela representação gráfica central, P. 293, do “Vieus Von “DVbLIn”.

Uma “palavra” plena de F.W., polissêmica por constituição, desdobra virtualmente seus sentidos diferentes (frequentemente “contraditórios” ou “exclusivos”) sob um eixo de qualquer forma “vertical”: desenvolve-se uma pilha de sentidos, um em cima do outro, — mas esta “palavra” toma sentido igualmente em função de palavras que se avizinham, cujas camadas de significados entrarão de diversas formas em comunicação com suas próprias camadas de significação: passarelas, de inclinações variadas, aparecerão jogadas de uma pilha a outra. Ousaremos nomear as pilhas: eixo paradigmático, e as concatenações do eixo horizontal: sintagmas? Ou é demais se deixar obscurecer pelo modelo linguístico? Seja como for, a coerência do modelo conduz diretamente (Jean Pierre Faye não hesitou) a afirmar que os paradigmas vêm se fundir dentro dos sintagmas, o que acaba tornando a língua de F.W. absolutamente singular ( mas, de fato, pode um idioleto se erigir em língua?).

Para se reconstituir o léxico de F.W., convém considerar como palavra toda colagem, voluntariamente talhada, disso que chamamos “monemas” — e chegamos a um total de 60.000 “palavras” distintas.  Essas pseudo-unidades semânticas foram elaboradas a partir de 50 % de um material de base inglesa. Se era justamente com o inglês que Joyce, em seu empreendimento, gostaria principalmente de acabar, não deixando nada além dessa casca de laranja onipresente em seu texto, (o malaio “orang”, ou seja, “homem”, transpassa essa “laranja”, fruta da Yggdrasil), ele não ultrapassa muito seu material de base, para submeter à mesma operação destrutiva, açambarcante, captadora, à mesma atomização sacrílega – “the abnihilisation of the rtym” (353.22) -, os dados verbais incontáveis de outras línguas – e, idealmente, os dados de todas as línguas.

Os especialistas anglo-saxões da obra interpretam a presença, no seio das alquimias lexicais joycianas, de um importante material não inglês como significativo de uma intenção simbólica: seria necessário ver uma imagem da invasão diacrônica da língua inglesa por vocábulos estrangeiros, – invasão que se tornaria, por sua vez, a metáfora de uma situação fundamental do texto: a ocorrência no espaço mítico da ação (a cena se passa em Dublin, isto é, Nulle Part”) de invasores que se implantam e se assimilam. Consideremos a questão com menos insularidade: Joyce escolheu fazer o peixe apodrecer a partir de sua cabeça inglesa, mas com a intenção de espalhar, por contaminação, a peste de suas “fermented words” em todas as línguas do mundo, no corpo inteiro da língua. O homicídio do “pure undefallen engelsk” (233.33) não passa de um exercício preliminar em vista do genocídio de todas as línguas.

Certamente o texto de F.W. parece obedecer a uma “gramática geradora”; capaz de “ se dar conta de toda frase real possível” e de “ dar uma descrição formal que contém todas as instruções previstas no código genético da língua, no tocante ao sentido, ao conteúdo semântico da frase, à forma e sua estrutura fonética”[2]. E poderíamos crer que são as regras desta “gramática” que Joyce, no momento em que ele se desesperava por ter que levar a obra a cabo ele mesmo, se preparava para transmitir aos eventuais colaboradores que participariam da retransmissão. Porém, enxergar F.W. sob um ângulo tão ingenuamente linguístico é chamar o texto à ordem, é  traze-lo para uma ordem que não é a sua, mas sim da própria língua. Todavia, é contra a ordem da língua que se funda a subversão sistemática dessa escrita. Da língua ela imita, ela pantomima o fechamento (“The writing, disse Beckett, is not about something; it is that something itself”), mas é para melhor adstringir as línguas dentro de suas virtualidades simples, ela mesmo, então, subordinada a uma perversão essencial, a uma entropia inversa. Desse modo, justifica-se plenamente a questão de Brian O’Nolan: “What language are you going to translate it from?”

Ainda uma miragem linguística: Temos o costume de repetir que, em F.W., Joyce escolheu se atentar puramente aos elementos lexicais, ao passo que, curiosamente (e ao contrario de Mallarmé), respeitava os moldes sintáticos comuns do inglês. A sintaxe determinante, e integralmente revolucionária, deve se esconder em outro lugar: Destinada não a comunicar, mas a se comunicar pelo interprete impessoal e dócil de um texto que reencarna a si mesmo, ele opera sob a totalidade dos elementos morfológicos e semânticos os quais ele expõe à nudez. Dirigido a essa sintaxe generalizada, propriamente textual, o ostensivo respeito às estruturas do inglês tem por função não somente “fixar” um epitélio estratificado à uma coerência econômica onde as células (as palavras) possam desenvolver seus significados em camadas relativizadas e portanto anárquicas, mas, sobretudo por “mudar” de modo paradoxal, a escrita do texto em relação justamente ao inglês, de maneira que, no momento da leitura, se produz um efeito de persistência da retina: o olho, lendo, não pode não “se lembrar” do inglês – e a decepção dessa lembrança introduz uma intussuscepção de outra leitura, aquela que exige ( em vão) o próprio texto.

A verdadeira sintaxe do livro fornece uma verificação prática das especulações ousadas de Ferdinand de Saussure a respeito do hipograma, termo proposto por ele para designar, por sua vez, o fenômeno do anagrama e o da apophonia[3]. A partir do sandhi, e dos Vedas em particular, Saussure chegou a conceber que o primeiro princípio da poesia indo-europeia poderia ser “o apego à letra”, fazendo com que o poeta se obrigue a utilizar com mais frequência possível, as letras, os sons, as formas dos nomes que ele trata de honrar. Esta hipótese lança Saussure em uma busca ambiciosa pela poesia latina, mas até o final lhe faltaria o argumento definitivo que teria colocado os hipogramas levantados seja por conta de uma vontade consciente ou do acaso. Dentro da suntuosa orquestração hipogramática de F.W., os dispositivos tentam, através de um encontro feliz, inscrever a “ambiguidade” natural constatada por Saussure, Joyce considera, em um desafio Mallarmeriano,  conciliar-se até mesmo ao acaso. Assim, a luminosa coda do livro não se reflete diretamente nos hinos sagrados da Índia, invocada desde sua primeira palavra em sânscrito: “Sandhyas!”?  Arrisquemos então uma presunção: Joyce não se contentou com Isis Unveiled da senhora Blavatsky, ele refletiu pessoalmente sobre os textos védicos e tirou partido dos seus procedimentos de composição — através de um admirável retorno, não às fontes, mas, à fonte; tanto é verdade que “Ana was, Livia is, Plurabelle is to be” (215.24)…

Não é, no entanto, sem perigo a preocupação unicamente com o léxico joyciano: o aparente recorte em “palavras” extravia e traveste a textura verdadeira. As velhas noções de “portmanteau word” ou de “mot-valise” (as duas expressões são igualmente detestáveis) trazem apenas uma aproximação grosseiramente redutora. Um retorno urgente se impõe à letra, a qual é para Joyce pretexto e motivo (em todos os sentidos destes dois termos). Se, todavia, “the penman” parece querer pegar o leitor “abcedminded” na armadinha irônica de seus entrelaces de caligrafia, o jogo e a ironia têm também por objetivo focalizar nossa atenção na carta de Anna Livia (“ditada” por ela, escrita por Shem, comunicada por Shaun) — esta carta que, bem entendida, faz com que o livro se lance no “abismo” e que instrui como ler o livro: “literalmente e em todos os sentidos”.  Leitmotiv principal, ela tem como objetivo final sua própria decifração: não esperemos “ler” outra coisa que não ela. Essa leitura tem por objetivo, por tanto, nunca se concluir, mas também ser capaz de ficar a critério do nosso fracasso ou da nossa complacência.

Permanece a “catástrofe memorável”; o “desastre obscuro”, o milagre monstruoso de um texto absolutamente inalterável em sua substância significante. O que faz, o que “muda” a pretensão eventual de ler? Não há leitura que não espere uma recompensa, ao menos de início, um entendimento inicial do sentido (mesmo que para nos consolar por não alcançar o calcanhar), — mas aqui, qualquer fragmento que possamos destacar, não demonstrará nada além do fracasso do leitor: o muro do “maurer” “Bygmester Finnegan” (4.18) se confirma na medida em que o vazio e o pleno — o pleno-vazio — que, em direção a nós, precipitam-se na língua.

* N. da T.: Artigo originalmente publicado em francês pela revista L’Arc em 1968,  como parte da coletânea intitulada: Joyce et le roman moderne.

** Ensaísta belga que se ocupou em discutir a questão da linguagem em escritores como Mallarmé, Diderot, Rousseau e o próprio James Joyce.

*** Doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: Daiane.deao@gmail.com

[1] Bernard Benstock, Joyce-again’s Wake. An Analysis of Finnegans Wake”, University of Washington Press,1965.

[2] Noam Chomsky, Revue Diogéne, nº 51, p. 34.

[3] Ver os textos de Saussure por Jean Starobinski no Mercure de France, fevereiro de 1964, p. 243-262.