A linguagem cinematográfica como (des)articulador das identidades em A-B-Sudario de Jacinta Escudos – Christy Beatriz NajarroGuzmán

A linguagem cinematográfica como (des)articulador das identidades em A-B-Sudario de Jacinta Escudos[1]

 

Christy Beatriz NajarroGuzmán*

 

Fragmentação da representação do sujeito:

As mudanças sociais ocorridas a partir da segunda metade do século XX, entendidas como parte do processo da pós-modernidade[2], provocaram o abalo das fronteiras delimitadas entre as diferentes expressões artísticas se esfumaçam para dar lugar a criações híbridas, questionando valores como “identidade” e “unidade”. Isso provocou, segundo as reflexões de Stuart Hall, a fragilização dos princípios que propunham o entendimento do sujeito como identidade única e indivisível. Assim:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas (…) Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de “um sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. (HALL, 2006, p. 9)

Assim, para o autor o abalo da unicidade da identidade do sujeito responde a uma “mudança estrutural das sociedades”, radicalizada pela desconfiança nas estruturas hegemônicas de poder, provocada pelo desastre da segunda guerra mundial. Assim, os intelectuais e artistas que apostavam na ideologia revolucionária dos ideais humanistas que perpassavam os valores das vanguardas históricas, enxergaram um espaço destruído que não oferecia nada, ou seja, passa-se por uma experiência “do desencanto e do espanto” (SEVCENKO, 1995, p. 49). Assim, a segunda guerra mundial, a guerra civil espanhola, entre outros eventos políticos propiciaram a migração de artistas e intelectuais para Estados Unidos e para alguns países da América Latina, deslocando o centro da produção artístico-intelectual ocidental. Contudo, deve-se levar em consideração que foi nesse contexto que as ditaduras totalitaristas latino-americanas se fortaleceram com a ajuda militarista dos Estados Unidos.

Dessa forma, é possível afirmar que após a segunda metade do século XX, os valores que sustentavam o arcabouço social foram questionados, visto que foram muitos deles que propiciaram os grandes desastres da época (segunda guerra mundial, ditaduras totalitaristas na América Latina, intervencionismo norte-americano). Dito de outro modo, valores como nação, raça, classe social, que configuraram as sociedades do século XIX e do começo do século XX, começaram a ser questionados, por movimentos como os de Contracultura nos Estados Unidos, diversos movimentos de esquerda no contexto latino-americano, entre outros.

Nesse contexto, a “fragmentação cultural” e dos indivíduos seria consequência de uma falta de homogeneidade sócio-cultural. Visto que a sociedade não oferece uma paisagem homogênea que possa permitir a configuração de uma identidade única e indivisível dos indivíduos, fragmentada a sociedade, o sujeito não tem suportes que o amparem a atribuir sentido aos valores de uma identidade nem social nem individual[3].

Esse processo fragmentador das identidades faz com que o sujeito se desloque de si para ir ao encontro de outras possibilidades de experienciar sua existência no mundo. Ou seja, a sua identidade passa a ser algo móvel e multiplicável, visto que não se fixa numa forma específica de ser. Assim, o sujeito é “deslocado, descentrado, reinscrito (…), é projeto de destinerrância” (DERRIDA, 2005, p. 154). Nessa perspectiva, o sujeito passa a ser considerado como um ser de saída, ou seja, um ser que não se ancora em nenhuma identidade, pelo contrário, exercita a sua multiplicidade identitária. Isso não quer dizer que no contexto atual, não existam identidade ou, que não exista a necessidade de pensar as identidades, pelo contrário, essa perspectiva permite que essas identidades não observadas ou contempladas pelos princípios normativos da sociedade, possam emergir num contexto em que não seja necessário responder apenas uma “chamada” como aponta Derrida. Dito de outro modo, se antes dos movimentos feministas e LGBT´s esperava-se que existissem apenas duas orientações sexuais, na atualidade sabemos que os estudos destes movimentos evidenciaram que a subjetividade da sexualidade não funciona apenas no binarismo homem/mulher. Assim o sujeito da segunda metade do século passado se depara com uma sociedade desarticulada e que multiplica seus “sistemas de significação e representação cultural (…) na qual é confrontado com uma multiplicidade de identidades com as quais poderia se identificar, ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13).

 

Portanto, as identidades, não são mais vistas como essências, mas como “instância”, um não-lugar, o “sem lugar” que também não possui tempo, porque a diversificação de percepção sobre o sujeito ocorre de forma simultânea. Portanto, o sujeito moderno se transforma de unidade para pluralidade de “eus” que convivem entre si, mas não irredutíveis, fazendo com que nenhum prevaleça sobre outro. Desta maneira, segundo Raul Antelo, Derrida considera que:

 

Trata-se de uma relação com o outro na qual eu digo nem sim nem não, digo que quero ter a liberdade não de rebelar-me, de revoltar-me ou de refutar, mas de não responder, firmando enunciados que não dizem nem sim nem não, um nem sim nem não que não é simplesmente uma dupla negação ou uma dialética. “I would prefer not to” (DERRIDA, s/d, apud ANTELO, 2007, p.45).

 

A partir dessa perspectiva, existiria, na sociedade pós-moderna, uma possibilidade de uma relação que não responde nem sim nem não à pergunta que instiga pelo conhecimento de sua identidade ou, pelo menos, a uma exigência de atuaçãona sociedade, mas uma indeterminação que permitiria um espaço de silêncio, o que faz referência àquilo que não é dito, porém existe na sua potência.

Quando me refiro à “potência” do sujeito, aponto para aquilo que o sujeito não é, mas que poderia chegar a ser. Ele não responde concretamente a nenhuma das chamadas que a sociedade lhe envia, no entanto deixa a brecha para uma possível resposta. Este tipo de entendimento do sujeito gera um atrito entre o indivíduo e a sociedade, pois, como apontado por Gayatri Spivak, apesar das lutas dos diferentes movimentos sociais e estéticos, as normais sociais ainda estão pensadas a partir de um sujeito único, ou seja, a sociedade espera que os indivíduos que a conformam correspondam a um tipo de comportamento predeterminado pelas normas éticas, políticas e morais.

Esse tipo de experiência foi registrado ou, pelo menos, refletido nas técnicas experimentalistas das artes, que propunham, entre outras coisas, a diluição das fronteiras que delimitavam cada uma das expressões artísticas, renovando e potencializando a força crítica das artes, valendo-se de “recursos pacíficos, sofisticados e minuciosos, característicos dessa nossa época eletrônica” (CALINESCU, 2003, p. 129), para possibilitar novas perspectivas no campo criativo. Assim, no caso da escrita, houve um interesse por renovar o trabalho já proposto em Un Coup de Dés Jamais N’Abolira Le Hasard de Mallarmé no fim do século XIX, que dizia respeito à materialidade da palavra. Para além da experimentação com o espaço vazio da página, a narrativa da metade do século XX brinca com a criação de imagens, a partir da sua relação com as técnicas da linguagem cinematográfica, descentramento do foco narrativo, a diluição de um personagem tipificado, etc.

Dessa perspectiva, é possível afirmar que a linguagem cinematográfica aparece na literatura como uma forma de revelar a artificialidade da palavra e, por tanto, a falseabilidade dos discursos que sustentam as identidades. Nessa prerrogativa que impugna a legitimidade da palavra, a literatura pós-moderna se caracterizaria por uma “poética da ‘indeterminação’ ou pelo que é ‘indizível’ e que é localizada num anarquismo poético” (CALINESCU, 2003, p. 289). Como é observável no romance A-B-Sudario, de Jacinta Escudos, vemos em Cayetana, personagem principal, um sujeito fragmentado e em conflito que tenta se descobrir no mundo através da palavra, como analisaremos a seguir.

 

Palavra imagem-movimento: uma proposta pela diluição das identidades 

A-B-Sudario trata da vida de uma escritora (La Cayetana) que deixa seu emprego para empreender a tarefa da criação, isto é, a escrita de um livro. Sua vida está dividida entre duas cidades: Karmatown e Sansívar, sendo a primeira o lugar de sua residência e a segunda, a sua cidade natal, aonde ela volta quando se cansa demais de KarmaTown. Ao chegar a Sansívar, reencontra-se com seus quatro amigos (Homero, Pablo Apóstol, El Fariseo e El Trompetista) cujo contato permite que Cayetana explore, no romance do qual ela é suposta autora, o desespero da condição humana de existir, por intermédio dos conflitos latentes a essa relação de amizade e do enfrentamento com as dificuldades da expressão.

O romance se divide em doze capítulos, os quais fazem referência direta a processos cinematográficos, funcionando, hipoteticamente, como um roteiro do próprio romance. Como exemplo disso, o primeiro capítulo é “Panorámica: te pareces a una película que nunca vi”(sublinhado meu).A referência ao universo do cinema fica explícita, visto que este aparece como produto e como técnica de criação, fazendo referência ao movimento circular da câmera, dando uma visão global e abrangente da cena e dos planos da mesma. Neste sentido, a panorâmica, apontada no título deste primeiro capítulo,faz referência ao conceito de premisa, de Lajos Egri, apontado no livro La ventana imposible, que diz respeito a uma “sinopse em miniatura” (EGRI, 1993), ou seja, uma continuidade, isto é, um movimento seqüencial.

No entanto, em A-B-sudario, esta panoramica, não funciona como síntese de nenhuma história, porque a princípio não há história a ser resumida ou sintetizada, dito de outro modo, ao utilizar esta técnica cinematográfica, Jacinta Escudos, problematiza ambas as artes, tanto o cinema como a literatura, visto que se no cinema esta técnica funciona como uma maneira de resumo da história, no romance não produz o mesmo efeito, fragmentando tanto a narrativa como a identidade da personagem principal.

Outro recurso que aparece neste primeiro capítulo é o uso do artifício de montagem, que no cinema é o recurso pelo qual é recopilada a totalidade das cenas do filme que lhe oferecem uma narratividade. Da mesma forma que a panorâmica, a montagem não funciona em favor da linearidade, mas destaca uma fragmentação, evidenciando o que há de artificialidade na narrativa. Assim, é possível perceber, neste primeiro capítulo pelo menos dez momentos diferentes, nos quais a linguagem cinematográfica aparece como estratégia (des)configuradora da narrativa, além de articular Cayetana como personagem, narradora e suposta autora. Para a análise chamarei estes momentos de cenas.

Por outro lado, ao falar de recursos de montagem no cinema, Arheim define este tipo de recursos (como a suspensão da ação, comentada anteriormente) como “inserção”, que é a inclusão de cenas ou “fotogramas numa ação contínua” (ARHEINM, s/d). Isso permite um sentido de profundidade e significação que leva além de uma superficialidade da ação contínua, isto é, nos ajuda a compreender melhor os fatos. No romance de Jacinta Escudos, este tipo de inserção funciona um pouco diferente, porque antes de ser uma explicação dos fatos ou profundidade da história, são episódios da vida da personagem. Com isso, o leitor é levado a um mundo confuso, fragmentado, onde a ficcionalidade da construção da linguagem é evidenciada. Dito de outro modo: é como se a escritora empírica tivesse os acontecimentos brutos da história a ser narrada e faltasse polir e articulá-los numa narrativa fluida e condicionada pela convenção romanesca. O que ela faz é apresentar os fatos, ao fazer isto Jacinta rompe a seqüência da história, desconstrói a idéia de seqüencialidade e fragmenta a narrativa.

Por ser um romance visual, A-B-Sudario, apresenta vários tipos de imagens vistas de diferentes ângulos. Assim, emergem diferentes visualidades: a primeira instância corresponde a imagem de Cayetana como suposta-autora e articuladora da história e da própria identidade, a partir aspectos sensíveis/visuais da palavra que ela descreve. Deste modo a primeira cena é introduzida por uma espécie de rubrica que, como no teatro, funciona como uma explicação do cenário/ambiente.

Música de danzón. Sombras entrelazadas, bailando. Humo acuchillado por una luz que lo atraviesa y que cruza el aire delatando un color gris azulado. (…) Sonido de vasos que chocan, rostros que se miran en la luz mortecina, la noche, la hora, máscaras de payasos, sonrisas extrañas resucitando desde el fondo de una copa. Olores, perfumes revueltos con cigarro y sudor (…) La nota burlona de una trompeta saluda la entrada de 3 hombres al salón “El Egipcio”.(Escudos, 2003, p.11)

Em primeiro lugar é importante ressaltar que as duas formas tipográficas são destacadas no livro, o que demonstra a importância do aspecto formal na obra. As letras em itálico destacam o cenário para o leitor, destacando o tipo de música, as diferentes situações, a iluminação do lugar. Todos estes elementos são organizados e pela suposta-autora de tal forma que o leitor possa suspeitar de que tipo de lugar se trata. Assim quando esta consciência destaca que no lugar tinha música, não só diz “música”, mas especifica que a música é de “danzón”. As frases: “Sombras entrelazadas, bailando. Humo acuchillado por una luz que lo atraviesa y que cruza el aire delatando un color gris azulado”, nos fazem lembrar do cinema noir, pelo clima escuro que caracteriza os filmes deste gênero.

Em contrapartida a letra redonda está relacionada à ação: “La nota burlona de una trompeta saluda la entrada de 3 hombres al salón ‘El Egipcio’”, ou seja, passamos ao campo da narrativa. Portanto, a diferenciação aqui serve para passar a voz da suposta-autora para a segunda instância que corresponde a Cayetana-narradora, além de demarcar as imagens não só mediante descrições e narrações dos fatos, mas também pela materialidade da palavra. É importante ressaltar que nem sempre a tipografia em itálico significará a descrição de um cenário, visto que também para identificar a interferência analítica da suposta-autora, embora ela represente a sua intervenção.

Num outro momento, a mesma estratégia funciona como uma janela que permite ao leitor acessaras impressões ou imagens com as quais o personagem se depara:

Pablo Apóstol toma el menú y lo estudia con meticulosidad:

SALÓN EL EGIPCIO

Bar y baile todos los días desde las 7p.m

Gran variedad de licores nacionales y extranjeros (…)

Atendido gentilmente por supropietaria

doña Florentina BarahúndaEspinozaMeléndez

viuda de Mendoza(ESCUDOS, 2003, p.12)

 

Como mencionado anteriormente, a voz do narrador desaparece, corporificando no texto aquilo que o personagem vê. Este tipo de visualidade permite uma coporificação imagética da cena, porque ao invés de contar no livro o que Pablo Apóstol viu, é introduzida a imagem do cardápio e as informações contidas neste documento. O leitor se encontra frente a uma “presentação porque a imagem apresentada nos aproxima dos traços sensíveis que ela compartilha com o objeto” (GUIMARÃES, 1997, p.62).Por “presentação”, César Guimarães entende a imagem como momento presente, isto é, a imagem é orquestrada a partir do presente da leitura. A imagem não precisa da descrição, apenas de espaço para emergir aos olhos do leitor.

Fazendo um paralelo, no cinema a câmera focaliza um personagem olhando para determinada direção, mas rapidamente muda de plano, focando, nesse novo momento, o objeto observado pelo ator. Para Arnheim a câmera move atribui um efeito de realidade à cena, pois o espectador observa diretamente o que está sendo observado pelo personagem, criando uma relação de sentido entre sujeito e objeto, assim, é “como se os olhos do espectador estivessem dentro da câmera, tornando essa experiência, acessível aos olhos de todos” (ARNHEIM, s/d, p.119). No entanto, no romance este tipo de técnica funciona de maneira diferente. Mesmo que a corporificação do cardápio no corpo textual da narrativa atribua certo realismo, este não funciona como uma forma mimética de representação da realidade, mas oferece um “efeito de real” [4] daquilo que está sendo visto/lido pelo leitor, porque ele vê corporificado o cardápio, mas não é mimético, porque não é da natureza narrativa colocar um cardápio no texto, o que deforma o relato, quebra a seqüência descritiva que a voz do narrador estava fazendo.

A terceira visualidade, correspondente à voz de Cayetana-personagem, aparece em uma cena logo após os dois exemplos mencionados, sem estar necessariamente ligada à anterior. Nesse momento da narrativa, Cayetana narra o episódio do dia em que conheceu Homero para alguém não identificado. A cena começa com um fluxo de consciência de Cayetana que o reproduz o momento, atualizando-o, isto é, o traz para o seu presente:

(…) volvamos a la escena del crimen, la noche de los hechos/ no, no puedo recordar la fecha/entonces, estoy sentada delante de esta copita transparente llena de tequila, pensando en todo lo que voy a sentir al día siguiente/estoy en el Salón “El Egipcio”/ por supuesto que estoy sola, ya sabes que siempre salgo sola/siempre quise conocer ese lugar (…) entonces, estoy velando la copita de tequila cuando miro una mano (que no es la mía), agarrar la copa desde mi flanco izquierdo. sigo con la mirada la copa que termina inclinándose frente a la boca de un perfecto desconocido (ESCUDOS, 2003, p. 15).

Como é possível observar, não aparece nenhuma marcação explicita de passado, no entanto este presenta-se na frase: “volvamos a la escena del crimen, la noche de los hechos/no, no puedo recordar la fecha”, porque ela introduz o leitor no universo do passado, também porque, na idéia de voltar a um acontecimento, encontra-se explícito o fato de que já não se está mais naquele tempo, nem naquele espaço, porém a narração dos fatos é marcada pelo tempo presente dos verbos. Ao utilizar o tempo presente para descrever a cena, a voz narradora cria uma imagem visual, porque as frases estão carregadas de mais força, pois a imagem fica mais clara aos olhos do leitor, isto é, o tempo presente faz com que a imagem descrita se assemelhe a uma imagem “vista” no presente por esse leitor/espectador, desta maneira a imagem se personifica.

Levando isso em consideração, é possível afirmar que a narrativa se configura a partir de uma mistura de cenas sem ligação umas com as outras, são flashes, fragmentos de uma vida, que a narradora e a suposta-autora organizam de tal forma que elas digam respeito ao que está sendo contado. Assim, ambas figuras (narradora e suposta-autora) funcionam como agentes (re)configuradores da identidade de Cayetana a partir da articulação da palavra, que apesar dos esforços é uma identidade movediça.

Dessa forma, no quinto capítulo intitulado “Plano de conjunto: Sanzívarrevisited” (realce meu), aparecem as três instâncias para tentar presentificar a identidade de Cayetana. Este capítulo desde o título já estabelece um diálogo com o cinema, como acontece com o primeiro. “Plano de conjunto” no cinema é “aquele plano em que os objetos estão próximos de nós e sobressaem num plano amplo” (ARNHEIM, s/d, p. 102), o que quer dizer que o espectador consegue enxergar a totalidade dos elementos que compõem uma cena, que depois será esmiuçada em planos menores. Como nos casos anteriores, esta técnica funciona às avessas.

O capítulo inicia com três diálogos, entre Homero, Pablo Apóstol, El Fariseo e El Trompetista (presume-se, pois isso não é especificado no romance). Nesse falatório, os quatro amigos especulam acerca de Cayetana, ou seja, sobre o que ela é ou possa ser ou fazer. Cayetana é um mistério tanto para o leitor como para os próprios personagens, visto que as perguntas giram em torno de quem ela é? Pergunta que se faz latente no primeiro bloco de intervenções onde dois ou mais amigos de Cayetana falam sobre um acontecimento em que Cayetana tenta esconder os seus olhos: “-viste?/-se pusolosanteojos para que no Le vieron sus ojos de caverna roja/-las grutas de la locura” (ESCUDOS, 2003, p.71). É importante ressaltar o uso do símbolo do olho para exprimir a idéia do mistério que Cayetana representa, pois metaforicamente esta parte do corpo tem sido considerada como a janela da alma, aquilo que vai revelar o que o ser humano realmente é. Por isso o fato de Cayetana tentar esconder os seus olhos aqui é importante, pois mediante essa prática ela esconde seu verdadeiro “eu”. O capítulo se fecha com a consciência de Cayetana suposta-autora, que controla ou conhece os pensamentos dos personagens que ela mesma constrói. Assim, na narrativa, após aparecem novos questionamentos sobre as atividades de Cayetana na ausência dos amigos, a suposta-autora complementa “(…) é muito simples: (…) calculo a hora e o dia (…) em que ninguém tenha a ideia do absurdo de visitar-me” (ESCUDOS, 2003, p. 80-810)[5].

Dessa forma, a figura de Cayetana-suposta-autora aponta para o elemento criador, o que significa que as intervenções dos amigos seriam uma projeção elaborada pela própria Cayetana na construção do romance que ela tenta escrever, mas que não consegue. A impossibilidade de escrita é muito mais explícita nas páginas do diário de Cayetana em que ela expõe a sua angústia: “ni siquiera sé si me gusta lo que estoy escribiendo. cumplo función de autómata (…) quiero quemarlo todo” (ESCUDOS, 2003, p. 121).

Levando isso em consideração, é possível afirmar que Cayetana suposta-autora escreve para costurar os fragmentos da persona Cayetana, que mencionávamos anteriormente, para aceitar-se como diferente, e que se evidencia no dia 34 do seu diário: “si no escribiera a diario (…) perdería mi propio hilo (…) estar debajo de mi propia lupa” (ESCUDOS, 2003, p. 111), sendo essa lupa a projeção dela mesma como narradora manipulada pela suposta-autora, que lhe permitiria em algum momento juntar os fragmentos, embora isso não aconteça, gerando desta maneira um estado de angústia permanente que se direciona a morte:

 

¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ ¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ ¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ ¿dejaré algún día de sentir esta angustia?/ DÍA 1/ el día. los espejos. otra vez. otro día./ siempre despierto./ al despertar, regreso a este lado de la realidad./ y al hacerlo, pienso siempre en la muerte. concluyo:/ DORMIR ES UNA MANERA DE MORIR Y SOÑAR OTRA MANERA DE VIVR (ESCUDOS, 2003, p. 105).

Fica patente que Cayetana rejeita sua realidade, preferindo o estado de sono, que por sua vez é proposto como outra maneira de existência. Isso levaria o leitor a formular a seguinte pergunta: por que Cayetana preferiria o mundo dos sonhos como uma forma de existência “melhor” do que a que vive de forma consciente? A resposta a essa pergunta aparece logo em seguida do trecho citado, na leitura do romance: “Acho que é uma realidade mais vivível. Porque tenho a opção do absurdo, onde o ridículo é aceitável” (ESCUDOS, 2003, p. 108)[6], o que resulta da sua “inadaptabilidade” às normas estabelecidas pela sociedade, que exige uma identidade, um nome e, portanto determina um tipo de responsabilidade diante dos outros que determina em alguma medida as ações do ser humano. Desta maneira, a morte resulta ser a saída para estabelecer uma existência distanciada de todas essas características que determinariam uma unicidade do sujeito, no silêncio da morte não é necessário responder às “chamadas” (DERRIDA, 2005) que a sociedade lança para o indivíduo. Assim, Cayetana experimenta a morte como um ritual que lhe permite aceitar a diferença que faz parte do seu ser singular. Assim, a existência seria, para Cayetana, um enigma de existência, ou melhor, um dilema em que “a vida limita você? Ou é você que limita a vida? É o medo de morrer? (…) a morte libera da matéria e a dor termina” (ESCUDOS, 2003, p. 124)[7]. Ou seja, Cayetana aspira a alcançar um estado primitivo da sua própria existência[8], já que esta exige uma resposta diante das constantes “chamadas”, conforme já mencionamos.

Todas essas angústias são articuladas por Cayetana-suposta-autora, que escreve para tentar visualizar um fio condutor da sua existência, para tanto se re-cria na sua própria personagem Cayetana no romance que nunca termina. A figura desta suposta-autora se revela ao leitor quase na parte final do romance, numa espécie de entrevista:

 

¿Cómo comenzó el libro?/ – Fue un ejercicio que me autoimpuse. Una disciplina diaria de escribir. Solamente de escribir, describir sensaciones, anotar diálogos, delinear caracteres. Un día me di cuenta que se repetían estos mismos personajes y cobraron forma, tuvieron nombres. (…) – ¿Y ahora?/ – Y ahora nada se terminó (…) Lee: Música de danzón. Sombras entrelazadas, bailando. Humo acuchillado por una luz que lo atraviesa. (…) No hace falta leerlo todo de nuevo. (ESCUDOS, 2003, p. 259)

 

Sendo uma das únicas partes em que respeita as regras de pontuação, como o início de cada frase com letra maiúscula depois de cada ponto, Cayetana-suposta-autora fala sobre a experiência da escrita e mais especificamente do livro que depois de tantas tentativas conseguiu finalizar. É interessante que, no momento de ler um trecho do seu livro, é a transcrição da primeira página com que A-B-Sudario inicia, propondo, desta maneira, uma leitura circular da fábula de Cayetana.

 

Reconfiguração de uma paisagem e a fabulação dos discursos

 

A pós-modernidade provocou a reconfiguração da sociedade ocidental, decorrente de vários fatores – econômicos, culturais, sociais, simbólicos –, mas principalmente têm significado uma visão de mundo transformada e re-descoberta ao longo da história, onde os princípios que fundamentaram a autonomia do pensamento humano foram re-elaborados. Na esfera artística, isso tem significado uma constante re-elaboração e destruição de conceitos, na perspectiva da ruptura como telos da modernidade, conforme indicaram Octavio Paz ou Frederic Jameson[9].

 

Dentro desse contexto de ruptura com a história e com as convenções sociais, ocorre um redirecionamento do papel do sujeito, este se vê descentrado, sem nenhuma base fixa que determine seu comportamento e sua maneira de ser no mundo. Desta maneira, o sujeito entra em crise, como vimos que, por sua vez, responde a uma prerrogativa do próprio sujeito ao propor novas formas de existência, gerando uma multiplicidade de identidades irredutíveis entre si. Propiciando uma flexibilização das fronteiras artísticas, como o caso da relação entre a linguagem literária e a cinematográfica: a montagem, a decupagem, movimentação da câmera para captar diferentes ângulos, por exemplo, com o intuito de ressignificá-las e potencializar desta maneira a palavra.

 

Assim, A-B-Sudario propõe um diálogo entre as linguagens literária e cinematográfica, possibilitando um trânsito do cinema no fazer literário, que comporta tanto a parte formal como a que se refere ao seu conteúdo. Com isto, Jacinta Escudos não pretende transformar uma linguagem em outra, pois isso seria uma tarefa impossível devido à natureza tão diferente dos regimes sígnicos, porém visa a potencialização da palavra, o que significa levar a construção de sentido para além da sua natureza, permitindo a articulação de referenciais diversificados.

 

Para além da ressignificação da palavra pela linguagem do cinema, através da potencialização da sua materialidade, o diálogo entre as duas expressões artísticas evidencia uma prerrogativa anterior à forma, que é a refletir sobre a fragmentação do sujeito pós-moderno, como Cayetana, uma mulher que não possui uma identidade “nacional”, nem individual ou feminina, e nem pretende possuí-la. Para poder observar esses fragmentos de sua vida, Cayatena suposta-autora ficcionaliza sua própria figura, criando a Cayetana personagem que, por sua vez, é rastreada pela lente da narradora que capta seus movimentos e seus espaços de ação, o que lhe permite sair de si mesma para observar a sua ipseidade e aceitar-se como ser múltiplo.

 

Assim, o romance possui dois planos de análise dependentes entre si: o primeiro responde à fragmentação da narrativa através das técnicas cinematográficas, o segundo diz respeito ao desdobramento da figura de Cayetana (personagem, narradora e suposta-autora). São dependentes entre si, pois a fragmentação do sujeito e a perda da legitimidade da palavra como forma de representação da realidade, enquanto tema da obra, não fariam sentido se o romance apresentasse uma organicidade na sua construção. Assim, seria possível afirmar que a proposta da incompletude da escrita é um elemento que evidenciaria a crise de um sujeito que duvida da rigidez dos discursos.

 

* Aluna doutoranda do programa de Pós-graduação em literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e bolsista CAPES- docência.

 

Bibliografia básica:

ARNHEIM, Rudolf.A arte do cinema. Lisboa: Áster, s/d.

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e política:ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985b. v.1. (Obras escolhidas).

DERRIDA, Jacques. “’Hay que comer’ o el cálculo del sujeto”. Pensamiento de los confines, Buenos Aires, n.17, dez. 2005. Entrevista concedida a Jean Luc Nancy.

ESCUDOS, Jacinta. A-B-Sudario. Guatemala: Alfaguara, 2003.

ESCUDOS, Jacinta. ¿Subversión, moda o discriminación?: sobre el concepto de literatura de gênero. Disponível em http://collaborations.denison.edu/istmo/n02/foro/subversion.html

CALINESCU, Matei. Cinco caras de la modernidad: modernismo, vanguardia, decadência, kitsch, postmodernismo. Trad. Francisco Rodríguez Martín. 2.ed. Madrid: Tecnos/ Alianza, 2003.

CASTILLO, Roberto. El cuerpo como cruento campo de batalla. Disponível em: http://collaborations.denison.edu/istmo/n06/foro/cuerpo.html. Acesso: 24 de agosto de 2009 às 14hrs30min.

CONTRERAS, Sandra. “En torno al realismo”, Pensamiento de los Confines, n° 17, Buenos Aires, dez/2005, p. 19-32.

FERNÁNDEZ MORENO, César (org.) América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.

GUIMARÃES, César. “A imagem, signo da memória & o que é uma imagem em literatura?”. In: Imagens da memória. Entre o legível e o visível. Belo Horizonte: UFMG, 1997.

HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Edditora, 2006

JAMESON, Frederic. Uma modernidad singular: ensayo sobre la ontología del presente. Barcelona: Gedisa, 2004.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.

PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2013

SHADE, Eunice. Cafecito com Jacinta Escudos. El nuevo diario. Managua, Nicaragua, Edición 9606.

 

 

 

[1] Este artigo é resultado do trabalho monográfico Literatura e cinema em A-B-Sudario: uma articulação da crise do sujeito na pós-modernidade, apresentado para a obtenção de bacharel em letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2009.

[2] No livro Poética do pós-modernismo, Linda Hutcheon aponta para uma abordagem crítica do termo “pós-modernismo”, no qual reflete sobre a contradição existente nessa noção pós-moderna. Assim, o pós-moderno é revolucionário em relação ao modernismo, mas também se apresenta como algo conservador, estando “dentro e fora” dos discursos dominantes. O pós-modernismo, nas considerações da autora, é a própria contradição do mundo estético-cultural atual. Cf. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991

[3] Aqui é importante ressaltar que o que está sendo colocado aqui não é a afirmação que sustentaria a hipótese de uma sociedade homogênea e ideal existente antes da segunda guerra mundial e dos governos totalitaristas latino-americanos, pelo contrário, é constatar que os discursos que estruturavam uma sociedade homogênea são falseáveis e que foram justamente eles que provocaram os desastres humanitários da época.

[4] Como compreendido por Sandra Contreras que diz, ao falar do realismo de César Aira, “el realismo de Aira quiere funcionar como um dispositivo orientado a la producción de un efecto de real. Efecto que resulta de una inmediata conexión con la realidad (…) que da como resultado una deformación del relato”. Cf. CONTRERAS, Sandra. “En torno al realismo”, Pensamiento de los Confines, n° 17, Buenos Aires, dez/2005, p. 19-32.

[5] Traduzido de “es muy sencillo: (..) calculo la hora y el día (…) en que a nadie se le vaya a ocurrir semejante disparate como el de venir a verme” Cf. ESCUDOS, Jacinta. A-B-Sudario. Guatemala: Alfaguara, 2003

[6]Traduzido de: “me parece una realidad más vivible. porque tengolaopcióndel absurdo donde lo ridículo esaceptable” Cf. Cf. ESCUDOS, Jacinta. A-B-Sudario. Guatemala: Alfaguara, 2003

[7] Traduzido de “¿te limita la vida? ¿o la limitas tú? (…) ¿te limita el miedo a morir? (…) la muerte te libera de la materia y el dolor termina”. Cf. ESCUDOS, Jacinta. A-B-Sudario. Guatemala: Alfaguara, 2003

[8] O termo primitivo faz alusão ao estado inicial dos objetos, se fazemos um desdobramento deste significado, encontramos que a existência inicial do sujeito seria concebida como aquela que se encontra antes das “chamadas” que a sociedade lhe lança. Cf. HOUAISS, Antônio, et al. Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003

[9] No capítulo “tradição de ruptura” do livro Os filhos do barro, Octavio Paz aponta para uma tradição em que a ruptura com o passado se torna uma constante nas artes. Cf. PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

Por outro lado Frederic Jameson, afirma que no contexto do pós- segunda guerra mundial existe uma ruptura com as “histórias mestras” que sustentavam a sociedade ocidental. Cf. JAMESON, Frederic. Uma modernidad singular: ensayo sobre la ontología del presente. Barcelona: Gedisa, 2004.