O poeta no romance “Il fuoco” e em outros romances – Sérgio Medeiros

O poeta no romance Il fuoco e em outros romances

Sérgio Medeiros*

Gabriele D’Annunzio

 

       Num ensaio intitulado Resistência da poesia (2005), o filósofo Jean Luc-Nancy afirma que a “poesia não coincide consigo mesma” (NANCY, 2005, p. 11). Isso porque a poesia pode encontrar-se onde não existe de fato poesia, e também porque a poesia pode rejeitar toda a poesia, apresentando-se como o seu contrário.

       Aqui talvez valha a pena lembrar o comentário de Jacques Rancière à ideia de que o poema resiste ao conhecimento, implícita no parágrafo anterior. Seria ela, o poesia, mais do que a poesia e algo sempre diferente dela, como aprendemos lendo Nancy? Rancière afirma que o poema resiste, sim, ao conhecimento, mas essa resistência é a primeira palavra, e não a última, da pesquisa sobre a poesia (RANCIÈRE, 1992).

       Vejamos agora como um professor de literatura, um crítico literário renomado, define a poesia levando em conta essa “desorientação” do pensamento que o texto poético provoca, e que dois filósofos, Nancy e Rancière, nos apresentaram como resistência. Alfonso Berardinelli, o crítico em questão, afirma:

 

Não estou convencido se sei o que podemos entender essencialmente por      poesia. Mesmo porque definir “essencialmente” algo requer uma fé nas “essências” que eu não tenho. Quando falamos de poesia, entendemos um espaço que se define continuamente no interior do sistema dos gêneros literários. Assim, parafraseando e invertendo um dito de Pasolini (segundo o qual “a prosa é a poesia que a poesia não é”), eu poderia dizer que a poesia é também aquele tipo de prosa que a prosa não consegue ser. As fronteiras da poesia como gênero literário se dilatam e se restringem de acordo com a atitude de cada autor (nas diversas situações ou contingências históricas), que inclui ou exclui da linguagem poética aquilo que também pode ser dito (e é dito) em outros gêneros literários (BERARDINELLI, 2007, p. 175).

 

       Não pretendo discutir neste ensaio como a prosa – e aqui levo em conta tanto o conto quanto o romance — define a poesia, nas numerosas vezes em que a elegeu como tema. O meu tema será menos a poesia e mais o poeta, enquanto protagonista do romance. É por isso que selecionarei, um pouco ao acaso, alguns romancistas modernos e contemporâneos que, a meu ver, quiseram mostrar em suas obras o poeta em operação, porém nem todos necessariamente definiram a poesia ou pretenderam fazer uma pesquisa sobre a sua essência, noção, como vimos, bastante desacreditada no campo dos estudos literários atuais. Começarei falando do romance mais desconhecido no Brasil, dentre os que compõem hoje o meu corpus. Trata-se de Il fuoco, O fogo, de Gabriele D’Annunzio. Escrito em 1898 e publicado em 1900, esse romance teve, entre seus leitores mais ilustre, ninguém menos que James Joyce. Na sua primeira parte, que se chama “A epifania do fogo” (a segunda parte se chama “O império do silêncio”), o romance descreve os êxtases estéticos do poeta Stelio Èffrena, o protagonista de O fogo. Não pretendo comentar o romance, mas apenas alguns dos referidos êxtases da primeira parte.

       A epifania é uma iluminação profana, e é um conceito ainda usado pela crítica literária de hoje. Assim, no livro de ensaios Formas breves, o escritor argentino Ricardo Piglia afirma que “a trama de um relato esconde sempre a esperança de uma epifania”, que ele define como “algo inesperado” (PIGLIA,  2004, p.105). A ideia de epifania como chama era, como se sabe, cara a Joyce, um dos autores comentados por Piglia. Umberto Eco analisa isso num artigo em que ele busca as semelhanças entre o poeta inventado por D’Annunzio e Stephen, o poeta de O retrato do artista quando jovem e de Stephen Hero:

 

Em D’Annunzio, o êxtase estético apresenta-se imediata e simultaneamente como “epifania” e como “chama”. No que diz respeito a Joyce, o que caracteriza a epifania é a sensação que o artista nota quando sua imaginação começa a conceber a imagem poética; Joyce, servindo-se das palavras de Shelley, compara-a a uma “fading coal”, a uma “brasa que se apaga”. […]. Nesse sentido, a influência do texto de D’Annunzio sobre o jovem Joyce, se –     como parece – é real, diz respeito unicamente ao empréstimo de termos, de temas, de situações visuais, de metáforas que a seguir Joyce iria reutilizar de uma maneira pessoal. Mas sobre um ponto não há dúvida alguma: é que a leitura de Il fuoco reforçou as convicções teóricas do jovem artista no tocante à função do poeta e da poesia.

Certas afirmações de Stephen Hero que definem o poeta como o centro vital de sua época, como o único capaz de assimilar a vida que o cerca e de a seguir espalhá-la rejuvenescida ao redor dele, o único capaz de contemplar a verdade do mundo visível e restituí-la como verdade, esplendor do verdadeiro – essas afirmações e outras definições da missão do poeta são encontradas em passagens de D’Annunzio […] (ECO, 1969, p.55-56 e p. 61-62).  

 

       Enquanto súbita manifestação, as epifanias são, como queria Joyce, os instantes mais delicados e fugidios da vida. Se a epifania é o momento de uma aparição, o momento em que a realidade aparece como imagem poética, então a passagem do romance de D’Annunzio que citarei abaixo é emblemática e esclarecedora, por associar a epifania com a chama. A chama é a imagem que brilha, a imagem estética, justamente. O poeta  Stelio expõe à sua musa, tratando-a carinhosamente como Perdita, a sua concepção de correspondência poética, centrada no mistério dos signos (citarei a antiga tradução brasileira de Marina Guaspari; existe, é bom lembrar, uma tradução portuguesa recente):

 

— Não acredita, Perdita, — disse Stelio, ao termo duma pausa, entregando-se ao curso lúcido e tortuosos do seu pensamento que, assim como os meandros do rio, formam, abrangem e nutrem as ilhas no vale, lhe deixava no espírito lacunas escuras e isoladas onde tinha certeza de encontrar, em hora oportuna, novos tesouros – não acredita no privilégio misterioso dos signos? Não me refiro à ciência astral nem a signos horoscopais (sic). Entendo que, à semelhança dos que se julgam sujeitos à virtude duma estrela, podemos criar uma correspondência ideal entre a nossa alma e alguma cousa terrestre, de maneira que, impregnando-se aos poucos da nossa essência, engrandecendo-se na nossa ilusão, essa cousa nos pareça por assim dizer representativa das nossas fatalidades obscuras e assuma quase feição de mistério, aparecendo em determinadas conjunturas da nossa vida. Eis o segredo, Perdita, para restituir uma parte da frescura primitiva à nossa alma um tanto árida. Sei por experiência que benefício nos vem de comunicar intensamente com uma cousa terrestre. De quando em quando, convém que a nossa alma se assemelhe a uma hamadríade, para sentir circular em si a fresca energia da árvore conveniente (D’ANNUNZIO, s/d, p. 13). 

 

       Nesse trecho, gostaria de destacar, em primeiro lugar, o caráter totêmico dessa identificação  da “alma” do poeta com “uma cousa terrestre”, proposta pelo artista pagão italiano. Num sentido muito lato, definiria o totemismo como um contato íntimo, e até sexual, do homem com o meio, a ponto de poder-se falar, levando a coisa para um animismo exuberante, de sex-appeal da natureza, o que nos permitiria conceber os mais disparatados intercursos sexuais entre humanos e inumanos, como sucede, aliás, nos mitos indígenas. O totemismo, segundo Claude Lévi-Strauss, não se configura exatamente como essa orgia que estou sugerindo aqui, pois ele nada mais é do que um sistema de classificação como outro qualquer, na medida em que, por intermédio dele, usam-se, por exemplo, nomes de animais e de plantas, ou de quaisquer objetos naturais ou fabricados pelo homem, para ordenar logicamente o universo social ou cultural. Grosso modo, para ficarmos no reino dos bichos e das plantas, devemos concluir então que o “pretenso totemismo”, para usarmos a expressão irônica do antropólogo, nada mais é do que a busca sistemática de uma homologia entre as diferenças naturais e as diferenças culturais. A tese de Lévi-Strauss é muito clara:

 

Dito de outra forma, os sistemas de denominação e classificação comumente chamados totêmicos retiram seu valor operatório de seu caráter formal, são códigos aptos a veicular mensagens transponíveis nos termos de outros códigos e a exprimir em seu próprio as mensagens recebidas pelo canal de códigos diferentes. O erro dos etnólogos clássicos foi querer reificar essa forma, ligando-a a um conteúdo determinado, enquanto ela se apresenta ao observador como um método para assimilar toda espécie de conteúdo. Longe de ser uma instituição autônoma, definível por caracteres intrínsecos, o totemismo ou o que como tal se apresenta corresponde a certas modalidades arbitrariamente isoladas de uma sistema formal, cuja função é garantir a convertibilidade ideal dos diferentes níveis da realidade social (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.93-93).     

  

       Lido do ponto de vista estético ou literário, o sistema formal de Lévi-Strauss é árido, pois, a meu ver, ele excluiria toda a afetividade entre o poeta e o seu totem, o que, como mostrarei, é algo de essencial quando se fala de totem “pessoal” num livro como Il fuoco. O poeta Stelio Èffrena busca e encontra o seu símbolo natural, o seu totem, que é uma imagem que arde e não um simples elemento neutro de um sistema de classificação qualquer dentro do cânone literário. Vejamos o que ele diz de sua associação emocional e estética com uma fruta, no caso a emblemática romã, ao dirigir-se à sua musa:

 

Para você, para eles, a ideia da minha pessoa liga-se indissoluvelmente ao fruto que escolhi para emblema e que sobrecarreguei de significações ideais mais numerosas do que os seus grãos. Se eu vivesse na época em que, desenterrando os mármores gregos, os homens encontravam, na terra, as raízes ainda úmidas das fábulas antigas, pintor algum poderia representar-me numa tela, sem me colocar na mão o pomo púnico. Desligar desse símbolo a minha personalidade parecia ao artífice ingênuo o mesmo que cortar uma parte viva do meu “eu”, pois na sua imaginação paganizante o fruto estaria por assim dizer preso ao braço humano, como ao seu ramo natural. Em suma, ele não teria do meu ser ideia diferente da que faria de Jacinto, de Narciso, de Ciparisso, os quais por certo lhe apareceriam sucessivamente em figura de plantas e com aspecto juvenil. […] Portanto, para você e para os que me estimam, renovei de fato um velho mito, transfundindo-me de maneira ideal e significativa, numa forma da natureza eterna. Assim, quando eu morrer… conceda-me a natureza o poder de me manifestar inteiramente na minha obra antes de morrer!… os meus discípulos me honrarão sob a forma de romã; na folha pontiaguda, na cor chamejante, na polpa cintilante do fruto coroado, timbrarão em reconhecer alguma qualidade da minha arte; e por essa folha, essa flor, esse fruto, como se fossem advertências póstumas do mestre, serão levados àquela sutileza, àquela chama, àquela opulência interior” (D’Annunzio, s/d, p. 14).

 

       A efígie vegetal serve tanto para descrever o poeta quanto para classificá-lo entre os seus pares. Podemos não apenas afirmar, olhando para a romã ideal, que Stelio Èffrena é um poeta ardente e opulento, como também que ele possui, ou possuirá, uma larga descendência na Itália, pois haverá artistas depois dele que certamente se considerarão legítimos filhos da romã. Stelio ainda é jovem e espera, conforme ele diz, desenvolver as suas forças criativas segunda a natureza, ou seja, espera que a homologia entre a fruta e o homem garanta, para este, no final, a plenitude estética e, por conseguinte, a glória literária, a imortalidade do mito.

       A romã nos leva de volta à noção de epifania do fogo, pois é uma fruta coroada cujas folhas ardem. Não poderei discutir, neste momento, de onde Joyce apanhou o termo epifania, nem é essa a intenção deste ensaio, pois isso implicaria, entre outras coisas, adentrar pela estética tomística e me debruçar sobre as páginas de Stephen Hero e de A Portrait of the Artista as a Young Man, onde o autor irlandês definiu inicialmente o seu sentido como “revelação” e “iluminação”. O que gostaria de destacar é tão somente o elemento pagão ou animista presente desde o começo em Joyce. A sua imaginação paganizante, em se tratando de epifanias, pode estar bastante próxima da de D’Annunzio, ainda que ela não se desenvolva num totemismo pessoal e afetivo, como o que vimos acima. Sem me remeter agora aos romances Retrato do artista quando jovem e Estevão herói, que apresentam, como disse, a teoria da epifania segundo Joyce, vou me deter brevemente no volume Epifanias, que contém as 40 epifanias de Joyce hoje disponíveis, organizadas em ordem cronológica, dentre elas esta:

 

Um pequeno campo de rígidas ervas e vivos cardos com confusas formas, meio-homens, meio-cabras. Arrastando suas caudas grandes movem-se aqui e acolá, agressivamente. Seus rostos são levemente barbados, pontiagudos e grises como borracha-da-índia. Um secreto pecado pessoal os direciona, os segura agora, como em reação, à constante malevolência. Um está apertando em seu corpo uma jaqueta de flanela rasgada; outro se queixa monotonamente por sua barba alcançar as rígidas ervas. Eles se movem em torno de mim, envolvendo-me, esse velho pecado aguçando seus olhos para a crueldade, zunindo através dos campos em lentos círculos, empurrando para cima suas terríficas faces. Socorro! (JOYCE, 2012, p. 37).

 

       Aqui, o tom é de pesadelo, e o artista, no final, pede socorro, como querendo despertar da imaginação totêmica. A noção de pecado como deformação física também chama a atenção, representada pelos cardos medonhos que o cercam e hostilizam. Não há brilho, chama, antes os cardos são velhos e grises, embora o que revelam possa ser chamado, metaforicamente, de seu conteúdo “radiante”, antes invisível ou não percebido. Eis o poder da iluminação estética. De certa maneira, a natureza é infernal desde o começo, e nada tem de paradisíaca nessa cena, e por isso, talvez, a sua superfície inquietante seja cinzenta. Ora, é o contrário disso o que vemos em Il fuoco, onde o contato com a natureza é benéfico e libertador, pois permite ao artista propor e externar magnificamente (com brilho intenso) um retrato ideal da sua alma, ou daquela parte da sua alma que ele julga essencial e deseja expressar miticamente em sua obra a fim de instruir os discípulos, sugerindo nesse momento a iniciação totêmica deles, conforme vimos há pouco.

       Talvez se possa concluir, voltando ao pesadelo de Joyce, que o fragmento epifânico em questão, não atribuído a uma personagem em particular, também representa a alma do artista, a alma atormentada de alguém sofrendo de aguda crise de consciência, o que, obviamente, remete ao alter ego do poeta e escritor irlandês, o jovem Stephen, que não cumpriu o último desejo da mãe moribunda. Talvez o cardo medonho possa ser considerado aqui a única “planta consanguínea” de Joyce e de Stephen.  

       A presença do poeta no romance moderno e contemporâneo, um assunto que ousarei levar avante agora, talvez possa servir para, retrospectivamente, valorizar o romance totêmico de Gabriele D’Annunzio, um autor pouco lido hoje no Brasil, e talvez também na Itália, um autor que traçou o retrato do poeta como um super-homem que, graças à sua eloquência profunda, conseguiu comunicar a quem o ouviu a sua visão da beleza e do júbilo. É assim que se concretiza a apoteose de Stelio Èffrena ante a nobreza de Veneza, reunida especialmente para ouvi-lo junto com os discípulos do poeta, que o acompanham com entusiasmo nessa noite de triunfo estético. Pergunto-me se esse triunfo do poeta não seria justamente o elemento “fora de moda” do romance d’annunziano, embebido que está no conceito de oratória espetacular.

       Caberia porém relembrar — já mencionei isso antes — que também para o Joyce de Stephen Hero o poeta era o centro vital da sua época, “o único capaz de assimilar a vida que o cerca e de a seguir espalhá-la rejuvenescida ao redor dele, o único capaz de contemplar a verdade do mundo visível e de restituí-la como verdade, esplendor do verdadeiro” (ECO, 1969, p. 62).  Outros romances, escritos depois de Il fuoco, mostraram exatamente o outro lado da moeda: a impotência e o silêncio do poeta, de Virgílio ao autor contemporâneo. Nenhum deles se sente mais o centro vital da sua época.

       São romances que falam muito mais das cinzas e do escuro, e pouco ou nada da chama e do seu brilho fascinante. Poderia citar, entre outros, o romance conciso Juventude, de J. M. Coetzee, publicado em 2002 e ambientado nos inícios dos anos 1960, cujo protagonista é um jovem aspirante a poeta sul-africano que sonha com a irrequieta Londres vanguardista de Ezra Pound e T.S. Eliot, mas que termina escrevendo medíocres “poemas de computador” numa empresa chamada International Computers, que o envia para o seu escritório no cinzento interior da Inglaterra; ou Neve, de Orhan Pamuk, também publicado em 2002, um romance de mais de 600 páginas que descreve os últimos anos de um poeta turco que acabou assassinado, provavelmente por radicais islâmicos, numa calçada de Frankfurt, e que deixou apenas um caderno de poemas, que seria a sua obra-prima, o qual jamais foi encontrado. Curiosamente, o perturbado poeta turco não se considerava o verdadeiro autor de nenhum desses poemas: considerava-se antes um médium, o copista que os havia transcrito em meio a uma guerra civil. Como bem afirmou Umberto Eco, “o tema da impersonalidade do artista (e com esse o da objetividade da linguagem poética que vive independentemente do artista que, como o Deus da criação, mantém-se à parte ‘cuidando da própria pele’) é um dos temas da estética do Retrato”(ECO, 1969, p.57). Essa questão merece desenvolvimento, e espero voltar a ela no futuro.  

       Citando um terceiro romance, o qual se passa também na Itália, mas situado em época bem remota, ou seja, em pleno paganismo clássico, diria que, em suas páginas, escritas na era moderna, a chama começa a extinguir-se e nenhum júbilo no estilo de D’Annunzio vêm à tona nesse final dilacerante. A busca não é mais pelo vegetal consanguíneo, o qual deu origem ao totemismo literário de D’Annunzio, um totemismo festivo e pré-freudiano, em que o pai é glorificado e não sacrificado. Em A morte de Virgílio, de Herman Broch, publicado em 1945, o grande cantor do Império Romano adoece na Grécia e é trazido moribundo de volta à sua pátria pelo Imperador Octaviano Augusto em pessoa. Quando avista finalmente o porto de Brundísio, conclui que:

 

O poeta não tem nenhum poder, não pode remediar mal algum, somente é ouvido quando encomia o mundo, não, porém, quando o apresenta como ele é na realidade. Unicamente a mentira produz a glória, a percepção não o consegue! Em face disso, seria então concebível que a Eneida pudesse obter melhor efeito? (BROCH, 2013, p. 17).

 

       Quando Públio Virgílio Marão passa na sua liteira no meio de uma multidão pouco reverente, aparentemente ninguém ali sabe quem ele é. Vemos apenas um doente solitário que geme e se lamenta. O menino que assume a função de guia desse amigo do César que alguns escravos agora carregam põe-se então a gritar, a fim de abrir-lhes caminho: “– Um Mago! O mago de César! […] Tu nunca viste em tua vida tola um mago como este! Ele é nosso maior mago, o maior de todos os magos!” (BROCH, 2013, p. 36). Então uma meretriz avança na sua direção e pede ao poeta um filtro para o amor, enquanto outros levantam as mãos com os dedos distendidos, para protegerem as pessoas contra o mau-olhado. Nada aqui lembra nem remotamente a atmosfera vibrante da experiência totêmica que apenas o poeta saudável de D’Annunzio está apto a vivenciar, conforme vimos acima.        Se aqui, neste romance, “o aparato colossal da vida afogava-se no mero nada” (BROCH, 2013, p.75), então essa cena é em tudo oposta àquela descrita por D’Annunzio, que é o mergulho do poeta na plenitude da vida e da arte.

       Gostaria de citar, à guisa de conclusão, uma situação de aparente equilíbrio e/ou de reconciliação dos extremos, durante a qual dois poetas, um consagrado e outro jovem e obscuro, quase por acaso, passeiam por um parque da Cidade do México, levados pelos caminhos de um labirinto que faz com que ambos se cruzem anulando talvez as diferenças que opõem o pai a ser sacrificado ao discípulo rebelde. Um “idílio totêmico” contemporâneo parece esboçar-se no parque degradado, anunciando uma cena (ou convivência) futura que, parece-me, estaria mais próximo de D’Annunzio do que de Freud. Refiro-me ao encontro do poeta Ulises Lima, que não é mencionado em nenhuma antologia de poesia contemporânea mexicana, com o prêmio Nobel Octavio Paz. O romance em que isso acontece se chama Os detetives selvagens, e foi publicado por Roberto Bolaño em 1998. A cena se passa num parque mal cuidado e levemente sinistro, talvez com pouco sex-appeal vegetal e, diria, por isso mesmo, semelhante ao infernal campo de cardos frequentado por Joyce. A hilária secretária de Octavio Paz é quem descreve o encontro inusitado:

 

Foi então que vi aquele homem. Ele também caminhava em círculos, e seus passos seguiam a mesma trilha, só que em sentido contrário, de modo que forçosamente iria cruzar com dom Octavio. Para mim, foi como um alarme soando em meu peito. […]. Mas não foi necessário: quando o homem cruzou com dom Octavio, nem sequer levantou a cabeça. Assim sendo, fiquei imóvel e vi o seguinte: dom Octavio, ao cruzar com o homem, parou e ficou como que pensativo, depois fez menção de continuar andando, mas desta vez não ia mais tão ao acaso ou tão despreocupado como minutos antes, ia como que calculando o momento em que ambas as trajetórias, a dele e a do desconhecido, voltariam a se cruzar. E, quando novamente o desconhecido passou ao lado de dom Octavio, este se virou e ficou olhando para ele com verdadeira curiosidade. O desconhecido também olhou para dom Octávio, e eu diria que o reconheceu, o que aliás não tem nada de extraordinário, todo mundo, e quando digo todo mundo digo literalmente todo mundo, conhece Dom Octavio (BOLAÑO, 2006, p. 518-519).   

 

       Depois de falar do poeta como super-homem, encerro mostrando o poeta como um desconhecido, alguém que anda em círculos – como o seu próprio pai totêmico? — no parque Hundido, “um lugar que […] não tem o menor interesse, ou vai ver que tem, hoje se transformou numa selva onde campeiam os ladrões e os estupradores, os bêbados e as mulheres de vida fácil” (BOLAÑO, 2006, p. 517), segundo o parecer definitivo da secretária de Octavio Paz.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

BROCH, Hermann. A morte de Virgílio. São Paulo: Benvirá, 2013.

COETZEE, J. M. Juventude. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

D’ANNUNZIO, Gabriele. Il fuoco. Milão: Oscar Mondadori, 1989. (Edição brasileira: O fogo. Rio de Janeiro: Casa Editora Vecchi LTDA, s/d.)

ECO, Umberto. “Sobre uma noção joyceana”. In: BUTOR, Michel et al. Joyce e o romance moderno. São Paulo: Editora Documentos, 1969.

JOYCE, James. Epifanias. São Paulo: Iluminuras, 2012.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus Editora, 1989

NANCY, Jean-Luc. Resistência da poesia. Lisboa: Edições Vendaval, 2005

PAMUK, Orhan. Neve. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

RANCIÈRE, Jacques. “Préface”. In: BADIOU, Alain et al. La politique des poètes: porquoi des poètes em temps de détresse. Paris: Albin Michel, 1992.

*Sérgio Medeiros é poeta, contista e professor de literatura da UFSC.