A CARROÇA DAS IMAGENS – Sérgio Medeiros

A CARROÇA DAS IMAGENS

Sérgio Medeiros

 

— Sentado na sua carroça com as rédeas na mão o idólatra leva ao mercado de madrugada suas visões coloridas empilhadas atrás dele; — são estampas que venderá quase de graça; — há nessas estampas tudo o que ele conseguiu apreender através dos múltiplos olhos humanos e inumanos do totem segundo reza a lenda.

— Estampa 1: Atrás dos vidros escuros aviões de todas as cores tomam chuva e ao fundo ou muito longe um pássaro branco passa diante de um morro verde-escuro quase negro…

— Estampa 2: Ao sol da manhã um caminhão carregado de cachos de banana maduras quase voa e é seguido por uma camionete que carrega botijões de gás enfeitados com fitas tremeluzentes…

— Estampa 3: O avião surge silencioso no frio da manhã e quando os seus motores soam repentinamente fortes ele parece descer rápido mas continua sobrevoando alto a praia…

— Estampa 4: Um velho cospe no chão ao lado de uma aranha que (es)corre leve e veloz para longe dele…

— Estampa 5: As flechas azuis grudadas nos arcos dos túneis apontam para os carros que fluem com os faróis ligados…

— Estampa 6: Uma ferradura no chão alaranjada… outra no ar esverdeada… e arcos azuis e amarelos multiplicados nos morros…

— Estampa 7: Um morro é uma vaga esfera escura que murcha…

— Estampa 8: Atrás dos prédios feios e sujos tem morros novos que crescem e se esparramam à luz da manhã enormes…

— Estampa 9: Ninguém na ruazinha sob o céu nublado e em pé numa caixa d’água um homem imobilizado na tarde fresca…

— Estampa 10: Surpreendentemente barulhenta a canoa passa diante de um iate que reflete ao se balouçar suave o sol da manhã…

— Estampa 11: Sob a luz fria o morro amanhece com todos os pelos raros eriçados no vasto horizonte…

— Estampa 12: As folhas verdes cintilam mais nos galhos… e a borboleta é fosca esvoaçando perto do chão… 

— Estampa 13: O galão de água vazio fica dependurado toda a manhã no guidão de uma velha bicicleta encostada num arbusto sob o céu nublado…

— Estampa 14: Sobre as crateras da cidade um helicóptero preto passa baixo sem as costumeiras pernas de soldados pensas ociosamente no ar…

— Estampa 15: Na manhã úmida um passarinho limpa o bico numa palma verde antes de o sol iluminar subitamente as palmeiras do jardim…

— Estampa 16: Ao tentar levar embora o pesado entulho o caminhão branco cospe no chão um jato de fumaça que parece elevá-lo acima do asfalto…

— Estampa 17: Na beira da estrada de manhã o cadáver de um cão é de um branco sujo e a lua baixa atrás dele um papel de embrulho aberto e usado…

— Estampa 18: O frio mais intenso do ano não espanta o urubu que cruza baixo o jardim ensolarado lançando na grama ampla sombra…

— Estampa 19: Entre os carros parados na avenida crianças e adolescentes se movem silenciosamente oferecendo leves sacos de biscoitos e pesadas caixas de isopor com coca… água… cerveja…

— Estampa 20: Pousando a cabeça no guidão da moto o rapaz solta o braço direito que quase roça o asfalto e avança assim entre os carros parados na avenida…

— Estampa 21: Nas palmeiras pássaros e ratos pequenos se cruzam ágeis e confundem seus rabos compridos…

— Estampa 22: Sob a garoa fria o velho iate solitário aciona com dificuldade o motor caquético e explosivo num sábado sem ninguém à vista na pequena baía…

— Estampa 23: As gaivotas deslizam no vento que as lança furiosamente para trás e são levadas embora até sumir às vezes…

— Estampa 24: Tudo se curva no jardim quando o vento se põe furioso mas a cerca elétrica permanece esticada pingando água fria na tarde úmida…

— Estampa 25: Após a ventania abre-se novamente o guarda-sol e põe-se o junípero de pé enquanto na luminária pública a gaivota gargalha violentamente…

— Estampa 26: Dois canos brancos longos com sacos verdes presos inflados na ponta vão deitados na carroceria pequena de uma camionete que corre abaixada…

— Estampa 27: Na cerração da manhã todos os carros velhos saíram aparentemente das garagens e num deles uma mão gorda limpa por dentro o para-brisa…

— Estampa 28: Durante semanas os guarda-sóis brancos ficaram fechados no centro das mesas redondas de vidro mas depois de um temporal foram abertos tais quais cogumelos albinos…