Dois poemas de Iossif Brodskii – Tradução de Piotr Kilanowski
Dois poemas de Iossif Brodskii
Tradução de Piotr Kilanowski*
***Я входил вместо дикого зверя в клетку,
выжигалсвой срок и кликуху гвоздем в бараке, жил у моря, играл в рулетку, обедал черт знает с кем во фраке. С высоты ледника я озирал полмира, трижды тонул, дважды бывал распорот. Бросил страну, что меня вскормила. Из забывших меня можно составить город. Я слонялся в степях, помнящих вопли гунна, надевал на себя что сызнова входит в моду, сеял рожь, покрывал черной толью гумна и не пил только сухую воду. Я впустил в свои сны вороненый зрачок конвоя, жрал хлеб изгнанья, не оставляя корок. Позволял своим связкам все звуки, помимо воя; перешел на шепот. Теперь мне сорок. Что сказать мне о жизни? Что оказалась длинной. Только с горем я чувствую солидарность. Но пока мне рот не забили глиной, из него раздаваться будет лишь благодарность. 24 мая 1980
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***No lugar das feras, eu enfrentava as grades das jaulas,
Gravava meu apelido e sentença com prego nos barracos, morei na praia, joguei roleta e cartas jantava trufas com sabe-o-diabo-quem de fraque. Da altura de uma geleira vi do mundo a metade. duas vezes fui aberto com faca, três vezes me afoguei, Aqueles que esqueceram de mim povoariam uma cidade. O país que me pariu e fez, larguei. Pelas estepes que lembram dos urros dos Hunos vadiei, vestia roupas que estão voltando à moda, plantei centeio, telhados de celeiros vedei, fora água seca, tomei as bebidas todas. Deixei a pupila enferrujada do guarda nos meus sonhos entrar. Devorava o pão do exílio, sem deixar migalhas nos panos. Permitia às minhas cordas vocais todos os sons, fora uivar; mudei para o sussurro. Agora tenho quarenta anos. O que posso dizer sobre a vida? Que resultou ser cumprida. Só a desgraça provoca em mim a compaixão. No entanto, até ter pela argila a garganta entupida, de dentro dela soará somente gratidão. 24 de Maio, 1980
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Итака
Воротиться сюда через двадцать лет, отыскать в песке босиком свой след. И поднимет барбос лай на весь причал не признаться, что рад, а что одичал.
Хочешь, скинь с себя пропотевший хлам; но прислуга мертва опознать твой шрам. А одну, что тебя, говорят, ждала, не найти нигде, ибо всем дала.
Твой пацан подрос; он и сам матрос, и глядит на тебя, точно ты — отброс. И язык, на котором вокруг орут, разбирать, похоже, напрасный труд.
То ли остров не тот, то ли впрямь, залив синевой зрачок, стал твой глаз брезглив: от куска земли горизонт волна не забудет, видать, набегая на. <1993>
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Ítaca
Depois de vinte anos, voltar para lá. Sua pegada descalça na areia achar. O cão encherá de latidos o cais, não se sabe se alegre ou doido demais.
Se quiser, vá tirando os trapos suados – ninguém reconhecerá a cicatriz. Morreu a criada. E a única que dizem que lhe esperou, nem tente encontrar – a todos se entregou.
O seu rapaz cresceu – já é um marujo, mas pra você olhando, vê um traste sujo. E a língua em que todos gritando estão, nem tente entender – é um esforço vão.
Talvez outra baía? Ou a ilha errada? O azul em seus olhos tornou-se enfado: eis a onda, correndo vem do horizonte, só ela que se lembra ao quebrar defronte.
(1993)
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May 24, 1980
I have braved, for want of wild beasts, steel cages,
carved my term and nickname on bunks and rafters,
lived by the sea, flashed aces in an oasis,
dined with the-devil-knows-whom, in tails, on truffles.
From the height of a glacier I beheld half a world, the earthly
width. Twice have drowned, thrice let knives rake my nitty-gritty.
Quit the country the bore and nursed me.
Those who forgot me would make a city.
I have waded the steppes that saw yelling Huns in saddles,
worn the clothes nowadays back in fashion in every quarter,
planted rye, tarred the roofs of pigsties and stables,
guzzled everything save dry water.
I’ve admitted the sentries’ third eye into my wet and foul
dreams. Munched the bread of exile; it’s stale and warty.
Granted my lungs all sounds except the howl;
switched to a whisper. Now I am forty.
What should I say about my life? That it’s long and abhors transparence.
Broken eggs make me grieve; the omelet, though, makes me vomit.
Yet until brown clay has been rammed down my larynx,
only gratitude will be gushing from it.
Tradução de Iossif Brodskii (ou melhor: Joseph Brodsky)
24 de maio de 1980
Enfrentei, na falta de feras, jaulas de aço,
escavei meu apelido, e o tempo que me faltava para cumprir,
em colunas e paredes nuas de concreto,
vivi à beira-mar, tirei azes da manga num oásis,
jantei com só-o-Diabo-sabe-quem, de casaca, comendo trufas.
Do alto de uma geleira. olhei meio mundo, a terra
quase inteira. Quase me afoguei duas vezes,
por três deixei que facas esburacassem a minha pança.
Abandonei o país em que nasci e que me viu crescer.
Os que me esqueceram dariam a população de uma cidade inteira.
Percorri as estepes que viram os Hunos berrando do alto de suas selas,
usei roupas que, hoje, por toda parte, estão voltando à moda,
plantei centeio, cobri de pixe o telheiro de estábulos e chiqueiros,
nesta vida só não bebi água seca.
Deixei que o terceiro olho das sentinelas se esgueirasse para dentro
de meus sonhos úmidos e sinistros. Comi o pão do exílio, mofado, encaroçado.
Concedi a meus pulmões todos os sons, exceto o urro;
preferi o gemido. Hoje, estou fazendo quarenta anos.
Que posso dizer da vida? Que é longa e detesta a transparência.
Ovos quebrados me entristecem; mas omeletes me enjoam.
E, no entanto, até que me enfiem argila pela goela abaixo,
tudo o que posso fazer sair dela é gratidão.
Tradução de Lauro Machado Coelho extraída do livro Poesia soviética. São Paulo: Algol, 2007
* As presentes traduções foram realizadas com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil