Objeto em cena: como? – Paula Scheidt Manoel

Objeto em cena: como?

Paula Scheidt Manoel*

Sin miedo a las bestias!, de Peter Ketturkat

Sin miedo a las bestias!, de Peter Ketturkat

Mimesis, mythos e poiesis podem parecer termos arcaicos para se pensar o teatro contemporâneo. Contudo, reflita um pouco sobre o significado dessas palavras gregas e perceberá que, depois de séculos, elas resumem o que se busca até hoje nessa arte.  Mimesis, para Platão e Aristóteles, é a imitação do real. Já o termo mythos se refere ao enredo ou à estória pertinente a uma determinada civilização, enquanto poiesis pode ser traduzido como construção, elaboração, criação. O que é o teatro senão a tentativa do artista poeta de criar uma estória que imite o real de forma a oferecer ao público uma outra possibilidade de ver a vida?

Sob essa ótica, o teatro de objetos se apresenta como um meio com enorme potencial para alcançar esse fim. Como bem coloca Amaral (2004), “objetos inanimados são a transposição da realidade”. Com eles, é possível materializar nossas ideias de um modo poético por meio de imagens cênicas que, dependendo do que se quer falar, comunicam de forma muito mais eficiente que em outras formas de teatro.

Objetos são extremamente metafóricos e é essa qualidade que deve ser explorada.  Se a marionete é mais capaz que o ator vivo em retratar ideias universais, os objetos levam ainda mais vantagem. “Eles têm essa capacidade de apresentar situações de maneira direta, peculiar e simbólica. Quando apropriadamente escolhidos, são um discurso em si. Por si já apresentam conteúdos.” (AMARAL, 2004, p. 121).

Curci (2014) ressalta bem a força da metáfora como signo, ou conjunto de signos, que seria de atingir e estimular a percepção sensorial das pessoas.

Uma vez imerso no universo ficcional, o espectador se arrisca a dar sentido, ordenar ou relacionar de alguma maneira tudo o que aparece diante de si, ativando desta maneira um processo de metaforização que atinge todos os elementos que intervenham na cena. Nesse processo definitivamente dinâmico e sensorial, os objetos unívocos voltam-se polissêmicos, estabelecendo equivalências e analogias que induzem o espectador a construir alguma coisa em sua cabeça. (IBID, p.142)

Contudo Curci (Ibid) ressalta que isso não é aplicável para qualquer público, pois haverão mais significados conforme a formação cultural, intelectual e particular de cada espectador.

O teatro de objetos é matéria morta que se ressignifica no palco através de distintos processos de metaforização induzidos e ordenados cuidadosamente pelo artista. E quando o discurso cênico se desenvolve de maneira quase poética, fluida e harmônica, o espectador deixa de ser um receptor passivo e despreocupado para se tornar um construtor de conteúdos e visualidades. (Ibid, p.142).

Por isso, o primeiro passo é estabelecer o que se pretende dizer a este público para, em seguida, escolher o melhor objeto para dizê-lo. Nessa pesquisa, o ator e/ou encenador precisa estudar todas as possibilidades de objetos e respectivos movimentos, lutando para fugir da obviedade e explorar todas as potencialidades dos objetos como símbolos de uma ideia.

Curci (Ibid) explica que não se deve partir para o caminho da mimeses, forçando os objetos a caminhar ou falar como seres humanos, tentando usar técnicas de animação convencional.

É muito provável que tenha que inventar uma técnica de animação para cada objeto, mas ainda estamos longe disso. Logo depois de se sentir sem motivações nem ferramentas adequadas para transferir o mínimo efeito de “vida”, supere a frustração e tente indagar o objeto de uma maneira poética. (IBID, p.136).

Quem já provou animar objetos sabe que a tentativa de mimeses humana é realmente frustrante.  Pesquisas em sala de aula nos mostraram que explorar o nível simbólico dos objetos, sentindo como eles são em termos de forma, volume e peso, torna mais prazeroso o trabalho de animá-los, além de trazer melhores resultados. Uma garrafa em miniatura de licor, por exemplo, é pequena, anda de forma quadrada e cambaleante, pois sua base é quadrada e relativamente pesada em comparação com a abertura do topo. Já um relógio de bolso com cordão é algo mais solto, podendo dançar em um vai e vem como das horas que passam. Um ramo de rosas vermelhas é volumoso, mas extremamente sedutor pela cor, podendo contorcer-se em movimentos redondos e grandes. O importante aqui é estudar como utilizá-los de forma que sugiram situações da vida humana e, até mesmo, revelem sentimentos, sem necessariamente, serem pessoas em miniatura.

Amaral (2004) diz que, como um símbolo, o objeto tem um enorme potencial de chegar à alma do espectador, pois é mais rapidamente digerível que palavras. “O pensamento cria primeiro a imagem na mente para depois traduzir em palavras.” (IBID, p.122). Pensando no objeto como um boneco em cena, destaca-se a colocação de Amaral de que quanto mais ele “apresenta características que o afastam do real, mais ele atrai o público e toca na essência” (Ibid, p.122).

Refletindo sobre a realidade interior do homem é possível entender porquê os objetos são muito mais eficazes para transmitir algumas ideias na cena. E é o universo interior humano que artistas consagrados na atualidade, como Phillipe Genty, tentam alcançar, por meio de um teatro “feito para ser visto e percebido pelos sentidos”, nas próprias palavras do encenador. Genty (2008) conta que após uma de suas primeiras apresentações com marionetes – Le Pierrot – para crianças autistas, uma delas começou a chorar quando viu a fábula do boneco que se descobre manipulado. A reação foi uma surpresa para as atendentes da instituição psiquiátrica, pois ela não manifestava qualquer emoção há anos. “Em algum lugar, ele se identificara ao Pierrô que corta as amarras com o seu meio ambiente.” (IBID, p.132).

Genty (Ibid) explica que o teatro ajuda a materializar em cena, a partir de imagens que se encadeiam por associação, seja por meio de atores, objetos ou formas animadas, o homem diante de si.

Não é um teatro do irreal, mas dá testemunho acerca dos conflitos interiores do homem diante dos próprios conflitos com o seu meio ambiente. Deve levar em consideração os seus espaços interiores para negociar com eles de fora, o que explica aquelas paisagens que surgem, se metamorfoseiam, desaparecem — paisagens interiores que mostram os nossos abismos e as nossas vertigens. (Ibid, p.133)

Para ele, acreditar na vida própria de objetos é fazer uma viagem à algo perdido na infância ao ser rejeitado desde a adolescência, mas que nos remete à nossos antepassados, que acreditavam no espírito das árvores e astros. “É nesse território recalcado que a marionete vai encontrar uma ressonância, aí onde estão igualmente recalcadas as nossas angústias, os nossos desejos e os nossos sonhos mais loucos.” (Ibid, p. 136)

Depois de analisar brevemente alguns trabalhos de Genty, JURKOWISKY (2000) ressalta a predileção do artista pelo objeto em detrimento da palavra, uma vez que a matéria seria um “texto do possível e do limite”.

Certos artistas mostram‐se prontos a se tornarem escravos do objeto para evitarem sê‐lo da palavra. Eles, aliás, estão conscientes disso. Genty pensa ganhar assim sua liberdade, já que o objeto e a matéria são mais aptos do que a palavra para transmitir símbolos suscetíveis de todas as interpretações possíveis. (Ibid, p.109)

Ao analisar todas essas experiências e considerações, observa-se que a plasticidade cênica deve ser uma preocupação central do artista que decide trabalhar com objetos. O caminho a ser percorrido deve ser da abstração. Como dizia Kandinsky sobre a pintura que devia “ser totalmente abstrata, pois, assim como a música, fala direto à alma, assim também linhas, cores e formas têm influências direta em nós. E o que mais nos deve importar na arte são os efeitos que produzem em nossas almas” (AMARAL, 2014, p. 116).

Para criar esse universo de ludicidade e abstração, os objetos podem substituir diversos elementos cênicos. JURKOWISKY (Ibid) dá exemplo de um trabalho conjunto de duas companhias, o Théâtre Écarlate e Nada Théâtre,  que utilizaram os objetos para substituir a cenografia. Uma mesa grande com várias gavetas representa o mundo cheio de furos na peça Grandir (Crescer), de onde saem símbolos do local da ação, como pedras, areia, folhas, água.

O efeito é dos mais teatrais, essa dupla visão desses símbolos, às vezes pegando o espectador de surpresa em função de seus aspectos físicos e autênticos. A originalidade do espetáculo se manifestava pela técnica de substituição dos cenários, efetuada segundo as mesmas regras que a dos personagens pelos objetos. (Ibid, p. 110)

O objeto deve ser pensado em cena muito mais do que em “substituição” ao ator ou marionete, mas como um elemento significante. Indo além, ao pensar no uso de objetos de forma metafórica, é preciso definir bem a presença do ator no palco, uma vez que ele estará sempre visível no teatro com objetos. “O ator precisa ter bem claro, para si mesmo, quem é, definir o que o objeto representa para ele e que tipo de relação existe entre ambos”. (AMARAL, 2004, p.125)

É preciso estar muito atento ao que disse Genty (2008, p. 133). Para ele, o ator não seria mais o ponto central no teatro, sendo necessário rediscutir sua linguagem de modo a ser capaz de traduzir a complexidade da vida. Questões intrínsecas ao homem seguem as mesmas desde os gregos. O desafio constante é, contudo, encontrar a melhor maneira de traduzi-las nas artes cênicas de modo que se toque na alma do público da atualidade.  E, em uma sociedade profundamente ligada à imagem, o trabalho que vem sendo realizado nos dias de hoje com o uso de objetos em cena, como os discutidos nesse artigo, dão sinais de que o objeto tem um papel fundamental a desempenhar no teatro contemporâneo.

Referências Bibliográficas

AMARAL, Ana Maria. Do objeto à figura e da imagem à forma. Móin-móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Jaraguá do sul: SCAR ∕Udesc, ano 10. V.12. 2014.

AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos – Máscaras, bonecos, objetos. 2ed. São Paulo: Senac. 2004

CURCI, Rafael. Metáforas visuais numa montagem com objetos. Móin-móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Jaraguá do sul: SCAR ∕Udesc, ano 10. V.12. 2014.

GENTY, Phillipe. Uma viagem entre percepção, forte impressão e interpretação. Móin-móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Jaraguá do sul: SCAR ∕Udesc, ano 4. V.5. 2008.

JURKOWSKY, Henryk. Métamorphoses – La Merionnette au XX Siécle.Ed. Institut International de La Marionnette Charleville-Mézières. 2000 (Trad. Eliane Lisboa, Gisele Lamb e Kátia de Arruda)

PARENTE, Pedro. O papel do ator no teatro de animação.Móin-móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Jaraguá do sul: SCAR ∕Udesc, ano 1. V.1. 2005.

 

* Aluna do Curso de Artes Cênicas da UFSC.