Carta de um poeta a um senhor e notas sobre a literatura de Robert Walser – Claudia Peterlini

Carta de um poeta a um senhor e notas sobre a literatura de Robert Walser

 

Claudia Peterlini[1]

Robert Walser

 

Apresento “Carta de um poeta a um senhor”, minha tradução ao português de Brief eines Dichter an einen Herrn, do escritor suíço Robert Walser[2]. Antes, porém, detenho-me em informações sobre a literatura desse escritor, notadamente nas características que observo em seus textos de uma simplicidade há muito perdida e mais que nunca hoje em dia valorizada e, em certa prosa contemporânea, recuperada. Embora não trate disso nesta oportunidade, interessa-me estudar a literatura de Robert Walser por ela ter sido objeto dileto de estudo de W. G. Sebald, cuja obra, por sua vez, perfaz o objeto de minha pesquisa de doutorado.

“Podemos ler muitas coisas de Robert Walser, mas nada sobre ele”. Assim inicia Walter Benjamin (1987, p50) seu breve ensaio sobre o escritor suíço das “pequenas formas”, da nulidade e da aparente insignificância. Muitos escritos perpassam a obra de Robert Walser, romances e pequenas prosas poéticas, principalmente, além de uma extensa produção lírica ainda pouco conhecida. Robert Walser nasceu em Biel, Suíça, em 1878, passou vagamente pelos círculos literários de Munique e Berlim até se abster da vida em sociedade a partir de 1929, de volta ao país de origem, para passar os próximos vinte e sete anos em reclusão até sua morte em 1956. O pouco que se sabe sobre Walser coincide com sua produção literária, tanto no que concerne ao período no qual compôs e publicou grande parte de sua literatura, quanto à estilística de suas prosas, recorrentemente centradas em uma escrita aparentemente despretensiosa, ou aparentemente ausente de intenção – como a lê Walter Benjamin (1987) –, preenchida por um olhar inclinado a apreender os pormenores da banalidade do existir. É por intermédio desse olhar que Robert Walser versa sobre os prazeres de uma vida sem pretensões, sobre a aptidão à servidão para obrigações insignificantes, sobre ser diminuto e [querer] estar à margem. É também com esse olhar que escreve Brief eines Dichter an einen Herrn (“Carta de um poeta a um senhor”), que elegi para tradução em exercício de aproximação a essa literatura, texto que compõe o tomo Kleine Dichtungen von Robert Walser (Pequenas Poetações de Robert Walser), publicado em 1914.

Na década em que suas “Pequenas Poetações” são publicadas, Robert Walser retornara à Suíça após oito anos em Berlim, cidade onde escreveu e publicou seus três romances: Geschwister Tanner (1907), Der Gefühle (1908) e Jacob von Gunten (1909), todos traduzidos ao português brasileiro[3]. De acordo com informações disponíveis no sítio do Centro responsável pelo espólio literário do escritor[4], Walser teria alcançado certa atenção do público especializado com seus romances, mas não o suficiente para se estabelecer na vida literária berlinense. Apesar de lido e apreciado por contemporâneos como Walter Benjamin e Franz Kafka, o escritor manteve-se à margem das grandes produções literárias em língua alemã, cujos expoentes, considerando a produção prosaica, seriam – a título de exemplo – Thomas Mann, Ernst Jünger, Alfred Döblin e Robert Musil. Quando retorna à Suíça, o escritor se afasta da forma do romance e passa a se dedicar à escritura de prosas curtas,  compiladas sob os títulos Aufsätze von Robert Walser (1913)[5], Prosastücke von Robert Walser (1914)[6], além da mencionada Kleine Dichtungen von Robert Walser (1914). Sua obra mais importante deste período foi a novela Der Spaziergang (O passeio), de 1917, em que o escritor reensaia a forma com temas caros às suas pequenas prosas. Após essas publicações, Walser continuou escrevendo e publicando em folhetim seus pequenos ensaios, que compõem a coletânea Die Rose, de 1925. Depois disso, apenas se sabe que em 1929 o escritor foi internado, ou internou-se, em uma clínica psiquiátrica em Berna e, a partir de 1933 em outra clínica na cidade de Herisau, também na Suíça, onde morreu durante a última de suas caminhadas cotidianas, em meio à neve, em 25 de dezembro de 1956.

Da poética em pequenas formas de Robert Walser, conhecemos, aqui no Brasil, muito pouco. O que temos traduzido é resultado de um projeto de seleção dentre as prosas dos três tomos supracitados publicados entre 1913 e 1914. Sob o título Absolutamente nada e outras histórias (Editora 34, 2014), esta edição brasileira baseia-se em uma edição estadunidense intitulada Selected Stories (1982), cujo objetivo, de acordo com o tradutor norte-americano e organizador da referida obra Christopher Middleton, era “apresentar em algumas de suas linhas centrais o poder de invenção de Robert Walser no campo da miniatura, seu charme no trato com o grotesco e a ironia de suas reflexões, bem como as oscilações entre diferentes níveis de discurso, alternando o denso com o transparente, a seriedade com a zombaria”. A tradução para o português, feita por Sérgio Tellaroli, acompanha o objetivo  da coletânea estadunidense e divulga esta faceta da obra de Walser, até então desconhecida do público brasileiro. O texto do gênero carta, Brief eines Dichter an einen Herrn, que ora apresento, embora não esteja contemplado nessa edição é igualmente exemplar das miniaturas de Robert Walser ao apresentar o “pronunciado sentido de harmonia e comodismo” com o qual se molda a escritura em tom irônico, pairando entre a língua culta e a vulgar.

 

[Sobre] Traduzir Robert Walser

 

Carta de um poeta a um senhor apresenta singularidades em sua linguagem que contextualizam o escrever de Robert Walser e tornam-se um desafio a quem hoje se dedica a sua leitura. Chamo a atenção para a presença de nuanças particulares da oralidade, que se manifestam pelo uso de “partículas” e expressões idiomáticas, inseridas em um pretenso discurso formal de uma carta de um (não-) poeta a um culto senhor.  Questiono o peso de tais inserções, e até que ponto tais usos provenientes da oralidade esboçada por Walser dialogariam com semelhantes procedimentos ensaiados no naturalismo de expressão alemã, na literatura dialetal da Silésia, como nas peças teatrais de Gerhardt Hauptmann, na prosa do início do século XX, como no romance de Kurt Tucholsky, Rheinsberg (1912), por exemplo.  Esta reflexão acerca da literatura de Robert Walser acompanhada do respectivo exercício de tradução de um texto tem como objetivo a familiarização com esse fazer singelo, um modo de criar desprovido das escaramuças, equivalente aos modos dos protagonistas e artistas se apresentando de cara lavada, e dos disfarces de uma literatura cultuante da nobre forma romanesca.  Uma escritura de certa “negligência insólita” e de um “pudor linguístico” tipicamente camponês, como a acusa Walter Benjamin (1987, p.50-51), que contudo impregna o ordinário de um manejo atraente e enigmático.

Apresento a seguir, e por fim, “Carta de um poeta a um senhor”, do escritor suíço Robert Walser.

 

Carta de um poeta a um senhor

 

À sua carta, veneradíssimo senhor, que eu encontrei hoje de noite sobre a mesa, e na qual o senhor apela para que lhe especifique tempo e lugar, onde o senhor poderia conhecer-me, preciso lhe responder que eu não sei direito o que lhe dizer. Uma e outra ponderação me acomete, pois sou um homem, o senhor deve saber, a quem não vale a pena conhecer. Sou extraordinariamente descortês, e de boas maneiras eu possuo apenas muito pouco. Dar ao senhor a oportunidade de me ver, equivaleria ao senhor apresentar-se a um homem, que corta ao meio o rebordo de seus chapéus de feltro com a tesoura para lhes emprestar uma aparência mais desoladora. O senhor imaginaria um tal excêntrico? Sua amável carta alegrou-me muito. Mas acontece que o senhor se engana com o endereço. Eu não sou o que merece receber tais gentilezas. Eu lhe peço: desista de querer conhecer-me. Delicadeza não me cai bem. Eu deveria exibir diante do senhor a necessária gentileza; e precisamente isso eu gostaria de evitar, por saber que conduta polida e bem educada não me serve. Tampouco me agrada ser educado; me entedia. Eu presumo que o senhor tenha uma esposa, que sua esposa é elegante, e que em sua casa tenha uma espécie de Salão. Quem se serve de tão finas e bonitas expressões como o senhor, tem um Salão. E eu sou apenas alguém na rua, no mato e no campo, na taberna e no meu próprio quarto; no Salão de qualquer um eu ficaria lá parado como um simplório bobalhão. Eu nunca nem estive em um Salão, teria receio disso; e como homem de sã consciência, devo evitar o que me sobressalta. O senhor vê, eu sou franco. O senhor é provavelmente um homem rico e deixa fluir ricas palavras. Eu, por outro lado, sou pobre, e tudo o que falo soa à pobreza. Ou o senhor me irritaria com o seu jeito de ser, ou eu lhe irritaria com o meu jeito de ser. O senhor não faz ideia do quanto eu sinceramente prefiro e amo a posição em que vivo. Por pobre que seja, até hoje nunca me passou pela cabeça me lamentar; ao contrário: estimo o que me rodeia, tanto, que eu estou sempre fervorosamente empenhado em protegê-lo. Eu moro em uma desolada e velha casa, em uma espécie de ruína. Sim, isso me faz feliz. A vista de pessoas pobres e casas modestas me faz feliz;  embora eu pense que o senhor tem pouco motivo para compreender isso. Um determinado peso e uma certa quantidade de degradação, de decadência e de confusão deve estar ao meu redor: senão o respirar se torna para mim uma tortura. A vida me seria um martírio se eu tivesse de ser fino, primoroso e elegante. A elegância é minha inimiga, e eu prefiro tentar ficar sem comer nada durante três dias do que me envolver no arriscado empreendimento de fazer uma reverência. Venerado senhor, assim não é o orgulho que fala, mas sim o pronunciado sentido de harmonia e comodismo. Por que eu deveria ser o que não sou, e não ser o que sou? Isso seria uma estupidez. Se sou o que sou, estou satisfeito comigo; e então tudo ressoa, está tudo bem à minha volta. Veja, é assim: até um novo terno me deixa completamente insatisfeito e infeliz; do que concluo, como tudo o que é bonito, novo e fino, eu odeio, e tudo o que é velho, deslocado e gasto, eu amo. Não é que eu exatamente ame insetos; decididamente eu não gostaria de comer baratas, mas insetos não me incomodam. A casa, onde moro, está cheia desses bichos: e ainda assim eu gosto de viver nela. A casa parece uma casa de ladrão, de doer o coração. Se tudo for novo e ordenado no mundo, então eu não quero mais viver, daí eu me mato. Eu quase tenho medo, quando eu tenho que pensar que devo travar conhecimento com uma pessoa distinta e instruída. Se temo que eu apenas lhe estorvo e não significo nenhum proveito útil e desfrute para o senhor, então é o outro temor igualmente vivo em mim, isto é (para dizer bem sinceramente), que também o senhor me estorva e não poderia ser proveitoso e agradável a mim. É uma alma em cada uma das condições humanas; e o senhor precisa definitivamente saber, e eu necessariamente preciso lhe contar isto: estimo bastante o que sou, por pobre e miserável que seja. Considero toda inveja como uma estupidez. A inveja é uma espécie de loucura. Todo mundo tem de respeitar a situação em que se encontra: assim todos são servidos. Eu temo também a influência que o senhor poderia exercer sobre mim; quer dizer: eu temo o trabalho interior supérfluo, que teria que ser feito para resistir à sua influência. E por isso eu não busco conhecer pessoas, não posso buscar isso. Conhecer alguém: no mínimo isso sempre dá um pouco de trabalho, e eu já me permiti lhe dizer que amo a comodidade. O que o senhor há de pensar de mim? Mas isso pra mim tanto faz. Eu quero que tanto faça. Tampouco quero lhe pedir desculpas por esta linguagem. Seria cliché. Sempre se é indelicado quando se fala a verdade. Eu amo as estrelas, e a lua é minha amiga secreta. Sobre mim está o céu. Enquanto viver, jamais desaprenderei de olhar pra ele. Estou na terra: esse é meu ponto de vista. As horas gracejam comigo, e eu gracejo com elas. Não consigo pensar em nenhuma conversa mais divertida. Noite e dia são minhas companhias. Eu me entendo bem com o anoitecer e com o amanhecer. E nesses termos lhe cumprimenta amigavelmente,

o jovem pobre Poeta.

 

Referências

 

BENJAMIN, Walter. Robert Walser (1929). In: BEJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas, Vol 1. 3 Ed. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. Págs. 50-53.

WALSER, Robert. Absolutamente nada e outras histórias. Tradução de  Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora 34, 2014.

WALSER, Robert. Brief eines Dichter an einen Herrn. In: WALSER, Robert. Kleine Dichtungen von Robert Walser. Leipzig: Kurt Wolff Verlag, 1914. E-Book (2011). Disponível em < www.gutenberg.org>. Acesso em 06.Jul.2018.

 

[1]Bacharel em Leras-Alemão (UFSC) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGLit-UFSC). E-mail: claudia.peterlini@gmail.com. Destêrro. Santa Catarina-Brasil.

[2] A tradução aqui apresentada foi gentilmente revisada pela Profa. Dra. Maria Aparecida Barbosa, a quem agradeço pelo cuidado, pela minúcia e igualmente por orientações a estas notas que a antecedem.

[3] “Os irmãos Tanner” com tradução de Sergio Tellaroli (Companhia das Letras, 2017); “O ajudante”, com tradução de Zé Pedro Antunes (Ed. Arx, 2003) e “Jakob von Gunten. Um diário”, com tradução também de Sergio Tellaroli (Companhia das Letras, 2013).

[4] Robert Walser Zentrum, localizado em Berna, Suíça. Esse centro se ocupa com o inventário, preservação, pesquisa e divulgação do acervo do escritor. As informações sobre a vida e produção literária de Robert Walser coletadas para a redação destas notas estão disponíveis no seguinte endereço : <https://www.robertwalser.ch/de/home/> .

[5] “Ensaios de Robert Walser”.

[6] “Fragmentos em Prosa de Robert Walser”.