D R A M A T U R G I A M O D E R N A: Textos dramáticos de vanguarda – Organização: Adriane Viz Veiga, Giovana Beatriz Manrique Ursini, Larissa Ceres Lagos e Vanessa Geronimo.

D R A M A T U R G I A  M O D E R N A

Textos dramáticos de vanguarda

“The Mysteries of the Horizon”, 1928, Rene Magritte

Organização: Adriane Viz Veiga, Giovana Beatriz Manrique Ursini, Larissa Ceres
Lagos e Vanessa Geronimo.

 Florianópolis, 2017

ISSN 2237-0617

 

 

Sumário

  

  1. As questões e Godot ………………………………………………………………………………. 3

 

  • Bibliografia ou paisagem, Marlei Albrecht…………………… 3
  • O grande nada, Gabriel Salazar …………………………………. 8

 

  1. A dramaturgia da dança contemporânea …………………………………………….. 19

 

  • Cotidiano em três movimentos, Jucimara Costa Wachholz, Marlei Neiva Albrecht e Renata Leal da Rosa…………. 19
  • ¾, Gabriel De Oliveira Salazar, Ícaro Bolognini e Kytiane Nayara Kittel…………………………………………………………20

 

  1. Reescritos de uma dramaturgia arltiana ………………………………………………. 21

 

  • A Fábrica, Gabriel Salazar …………………………………………………………. 22
  • Garota ácida, Renata Leal…………………………………………………………… 35
  • Meratocracia, Marlei Albrecht……………………………………………………. 37

 

  1. Uma seleção de peças-paisagens inspiradas no teatro de Gertrude Stein .. 41

 

  • Every Tear Is A Waterfall, Kytiane N. Kittel ……………………………………………… 41
  • Pôr-do-Sol Pacífico, Renata Leal ……………………………………………………………… 43
  • Marte está em guerra, Gabriel Salazar …………………………………………………….. 44

*** 

 

As questões e Godot

Larissa Ceres Lagos[1]

 

Estamos desde 1953 aguardando a vinda de Godot. A peça, escrita primeiramente em francês pelo escritor irlandês Samuel Beckett, estreou no Théâtre de Babylone em Paris em janeiro de 1953 confundiu a plateia e adicionou um novo capítulo na história do teatro Ocidental.

Os dois vagabundos que conversam durante os dois atos da peça fazem muito (e nada!) enquanto esperam. Marcados ficam os diálogos em que se pede a redenção do ser humano através de nossa degenerada espécie ou o monólogo apoplético de Lucky (entremeados pelos sapatos que machucam e pela cenoura crua comida em cena). A dureza e a aparente simplicidade de Esperando Godot fomentaram durante anos os mais diversos estudos críticos, literários, teatrais e filosóficos. Com sua obra marcadamente projetada pela ótica de um pós-guerra, Beckett expos as feridas da matéria patética, degenerada e confusa da qual o homem e (por consequência) a sociedade são feitos.

Durante o semestre de 2017.1, os alunos da disciplina de Dramaturgia III do Curso de Artes Cênicas desenvolveram textos que explorassem de alguma forma a atmosfera do mundo beckettiano. Conversamos durante três semanas sobre a vida do escritor, contexto histórico, influências e fizemos leituras de algumas peças curtas, ou trechos das mais longas. Debatemos também as montagens narradas por Susan Sontag em Sarajevo e por Martin Esslin em St. Quentin para tentar entender para onde se estende a espera de Beckett. A partir dessas discussões os alunos escreveram peças inspiradas por Samuel Beckett, dessas peças duas estão presentes nessa antologia.

 

 

Bibliografia ou paisagem

Marlei Albrecht

 

Alguns troncos de árvores pelo chão. Allan e Edgar andam pelos troncos.

Allan: Não podemos escutá-los por conta da chuva.

Edgar: Ou morreram…

Allan: Estão do outro lado.

Edgar: Ou morreram de tanto trabalhar.

Allan: É a chuva.

Edgar: Tragédia.

Allan: As autoridades dizem que a chuva não irá diminuir.

Edgar: As autoridades dizem o óbvio.

Allan: É por isso que são autoridades.

Edgar: Silêncio!

 

Som de tambores. Eles paralisam. O som diminui gradativamente até desaparecer.

 

Edgar: O que será isso?

Allan: São tambores.

Edgar: Certamente. Por que pararam?

Allan: Não pararam. O som diminui à medida que eles se afastam até desaparecer…

 

Voltam a se equilibrar nos troncos

 

Edgar: Eles? Quem?

Allan: Os tocadores de tambor.

Edgar: Os tocadores de tambor.

Allan: Desde o século passado é assim.

Edgar: Assim?

Allan: A minha avó me contava que…

Edgar: Você tem avó?

Allan: A minha avó me contava que …

Edgar: Nunca me contou!

Allan: Certamente que não. Você não a conheceu.

Edgar: Você nunca me contou que tinha avó.

Allan: Já estamos há tanto tempo aqui nesse lugar. Há algumas coisas que você não sabe sobre mim.

Edgar: Silêncio. São eles de novo. Os tocadores de tambor.

Allan: Eles estão do outro lado.

Edgar: Como eu gostaria de estar do outro lado.

Allan: Somente atravessaremos quando Godot chegar.

Edgar: Godot não virá.

Allan: Esperaremos por Godot e pelo conserto da ponte.

Edgar: Estou farto de esperá-lo. Vou esperar pela reforma da ponte. Liberdade! Liberdade! Corre ao redor de Allan. Abraça-o. Allan tenta se desvencilhar. Eles se desequilibram e caem.

Allan: determinado Continuarei esperando Godot. Levanta.

Edgar: Todos ficarão sabendo que não espero mais por ele.

Allan: rindo Todos. Conte pra todo mundo. Há muita gente aqui.

Edgar: Silêncio. Ouço as máquinas. Há vida nas máquinas.

Allan: Os trabalhadores não morreram.

Edgar: E trabalharão muito.

Allan: A ponte será reformada.

Edgar: Seremos os primeiros a passar.

Allan: Os três: você, Godot e eu…

Edgar: Será lindo.

 

Entra Maria. A felicidade no olhar.

 

Edgar: Você veio.

Allan: Você demorou.

Maria: Estava na estação esperando Godot.

Edgar: Um dia na estação, outros tantos na ponte. Não dá pra contar com ele. Ele nunca vem.

Maria: Ele mandou uma mensagem dizendo que estava a caminho, a bordo do Expresso Oriente.

Allan: Do Expresso Oriente? Então chegará logo.

Maria: Deixa pra lá. Enquanto estava na estação esperando Godot encontrei uma pesssoa…

Allan: olhando pro céu Uma tempestade se aproxima.

Edgar: Estou com medo. O vento aumenta.

Maria: Eu também tenho medo. Me abraça enquanto dura a tempestade. O céu escurece.

Allan: Podemos ficar abraçados até que a tempestade passe. O vento muda de direção

Edgar: E Allan nos conta as histórias da sua avó. Você acredita que Allan tem uma avó e nunca nos contou?

Maria: Eu acredito. Acredito em tudo.

 

 Eles rolam alguns troncos para o canto. Os três deitam.

 

Allan: A minha avó me contava que quando ela era pequena lá em terras de infância, apareciam em carroças um bando de atores e tocadores de tambor. Aí eles transformavam a carroça em um barco que içava as velas e quase voava – mas não voava, eles é que eram muito bons atores – E o quintal da minha avó virava um lugar cheio de gente querendo voar também. O pai dela deixava que eles dormissem nos galpões dos fundos. Minha avó ficava com o rosto na vidraça para ver o que eles faziam.

 

Os três adormecem. O vento diminui.  Som de tambores. Amanhece.

 

Maria: levanta-se eu Preciso ir. Outro dia eu volto.Pausa  Não vão acreditar em quem eu vi na estação!

Edgar: Eu acredito. Acredito em tudo. Levanta aos poucos.

Maria: Mesmo assim contarei. Holmes. Sherlock Holmes. Falou que não vê indícios que o façam encontrar relevância no caso do Godot ter feito essa rota.

Edgar: Mas o que Holmes sabe sobre Godot?

Maria: Sabe, por exemplo, que Godot, pelo seu caráter não entraria em um trem que teve sua rota alterada.

Edgar: E como sabe disso?

Maria: Holmes passou uma temporada no morro dos ventos uivantes, analisando o caráter do senhor Heathcliff. Em um dos passeios pela montanha mágica que fica ao lado, encontrou Godot olhando os lírios do campo.  E na ocasião ficaram discorrendo sobre vários assuntos. Holmes discorreu sobre a vida secreta das plantas, Godot não entendeu o assunto. Foi o que Holmes me contou…

Edgar: Pedantes! Mas voltando, me referia à rota alterada…

Allan: Ele não revelaria as fontes.

Edgar: Elementar. Mas o que faremos nós? Contávamos com Godot na companhia.

Maria: Godot não estava muito animado com os últimos editais de teatro. Estava até pensando em mudar de profissão, após a mudança de governo. Pensei em convidar Holmes…

Edgar: Definitivamente, não! É cheio de manias, vícios. Será difícil e trabalhoso, para não dizer impossível.

Maria: animada Volto pra estação.

Edgar: Podemos construir um barco. Precisamos sair daqui.

Allan: Você nem cuida do seu figurino.

Edgar: Temos madeira. Barcos são feitos de madeira.

Allan: A madeira será usada para a reforma da ponte.

Maria: pulando de um tronco para outro A ponte cairá! Adeus.

Allan: se levanta Tenho um vestido amarelo pra te dar Maria.

Maria: Ficou lindo com meus sapatos azuis. Sai.

 

Som de tambores. Martelos.

 

Allan: Ó: Estão reformando a ponte.

Edgar: Os tocadores de tambor. Estão indo para a casa da sua avó.

Allan: Eu não tenho nenhuma avó. Eu inventei aquela história.

Edgar: Mas as comédias apresentadas na casa dela eram boas.

Allan: Certamente.

Edgar: Quando os tocadores de tambor passarem podemos ir atrás deles.

Allan: Sim, mesmo que seja do outro lado.

Edgar: Podemos chegar do outro lado usando esses troncos.

Allan: Faremos a nossa própria ponte.

Edgar: E o nosso próprio barco.

Allan: Atravessaremos.

Edgar: Atravessaremos. Com Godot e Maria.

 

Som de pássaros

           

Allan: Será lindo.

Edgar: São corvos. Eu conheço bem.

Allan: Vamos começar os trabalhos para a travessia.

Edgar: Esperamos os pássaros irem embora.

 

Allan deita-se olhando para o céu.

 

Allan: Ficarei esperando enquanto existirem as aves planando sobre meu corpo. Esse momento faz valer a minha existência.

 

Som de pássaros, tambores e martelos.

 

Edgar: para os pássaros Silêncio! Não consigo saber a que distância está os tocadores de tambor.  Os trabalhadores voltaram ao trabalho, isso é certo.

Allan: Parou a chuva.

Edgar: Parece que estão tão próximos. Ou são muitos.

Allan: Se são muitos é porque nenhum trabalhador morreu.

Edgar: Isso não podemos dizer. Não sabíamos quantos eram.

Allan: As autoridades sabiam…

Edgar: As autoridades dizem o óbvio.

Allan: Elas têm medo de dizer o que não é óbvio.

Edgar: As autoridades não têm coragem.

Allan: Têm medo.

Edgar: É diferente.

 

 

Fim

 

 

 

O GRANDE NADA

Gabriel Salazar

O Espaço. Vazio. Apenas A, B e C em cena. Mesmo figurino para os três. Vão falar. Quando quiserem.

A – Estou cansado disso.

B – Eu também.

C – Eu também.

A – Eu também. Não quero mais ficar aqui.

B – É?

C – É?

A – É? Eu também. É. Quero mudar. Mudar! Eu quero mesmo é mudar! Ouviram?

B – Eu ouvi.

C – Eu ouvi.

A – É? Eu também. É. Quero mudar! Mudarei! Mudo! Mundo! Mundantes! Mudarei!

C – Que bom! Mude!

A dá um passo a frente.

B – Se pisar no meu espaço eu te mato. Já não basta ficar travando nossas vidas aqui, agora quer roubar o meu espaço?! Seu ladrão! Vagabundo! Vagabundo! Pisa aqui pra ver!

C pigarreia, puxa um catarro e tosse.

A – Esse espaço é nosso! O espaço é nosso!

C – Ah é, isso é verdade, eu acho.

A – Viu! Até ele diz que é nosso!

C pigarreia.

B – O espaço é meu! (para C) você não fale o que não sabe! (Para A) E você, seu vagabundo! Fedido! Pisa aqui que você morre!

C puxa um catarro.

A – Mas esse espaço aqui é nosso!

C – Ah é, isso é verdade, eu acho.

B – Então pisa pra você ver! (prepara para um combate).

C tosse. B ‘desarma’.

C – É nosso mesmo. Verdade, refleti bem e é bem nosso… Calma, mas será?…

B – Que refletir o que, é meu! Já falei!

C – Mas eu acho que é nosso.

A – É nosso!

B – Quem disse que o espaço é seu?

A – Eu!

C – Opa! Não é teu não, é nosso… Eu acho, assim… (tosse).

A e B pigarreiam.

C – Está estranho isso.

A e B – Por quê?

C – Porque está! Tem hora que tem emoção, hora não tem, ao menos, me parece. Não sei.

B – A vai se ferrar, acha que dá tempo de fazer arte assim. Trabalhamos uma vez por semana! E esse panaca chega atrasado ainda!

A – Mentira! Só cheguei duas vezes, atrasado. E vocês sabem disso! Sabem do que mais? Ah! Deixa. É horrível isso, essa calúnia. E vocês sabem de quem é a culpa!

B e C – Ah não…

A – Não sabem?! Pois eu não vou ficar calado e deixar tudo isso se repetir, como se repete o que é repetido sempre pela história dos homens humanos. É horrível isso, essa calúnia. E vocês sabem de quem é a culpa!

B e C – Ah não…

A – Não sabem?! É horrível isso, essa calúnia. Pois eu não vou ficar calado e deixar isso tudo se repetir, como se repete o que é repetido sempre pela história dos homens humanos. Pois eu, eu não! Não deixarei isso se repetir!

B e C – Ah não…

A – Pois não podemos mesmo. E vocês sabem de quem é a culpa! E estamos parados aqui.  Aqui mesmo. E não podemos ficar parados! E dizem que isso existe pra nós vermos e depois não repetirmos sempre como é repetido pela história dos homens humanos. Pois eu, eu não. E vocês sabem de quem é a culpa!

B e C – Ah não…

A – A culpa não é minha, nem sua e nem tua. Quiçá minha, tua e sua. Isso é óbvio. É deles! Quem colocou o culpa lá no lugar onde reside a culpa? Não onde reside a culpa, pois esta reside no culpado, mas o culpado, onde ele reside?… Não era isso… Calma…  (Para si) Quem colocou o culpado lá… Isso! (Para todos) Quem colocou o culpado lá onde ele reside com sua culpa?  Não eu, a culpa não é minha, nem sua e nem tua quiçá minha, tua e sua. E Não podemos ficar parados…

B e C – Ah não…

A – Não!… Isso! Na realidade devemos ficar parados! Aqui. Só nós três. Podemos chamar outras pessoas do meio. Aqui. Chamaremos. Aqui. Ficar aqui. Isso. Parados. Aqui. Vamos reunir outras pessoas e ficar parado aqui. Isso. Aqui. Nesse lugar aqui. Parados. Resistiremos aqui, parados. Faremos o nada. O Grande nada!

B e C – Mas e esse nosso trabalho?

A – Isso! Na realidade. Devemos ficar parados. Aqui. Parados. Entende o “quê”? É que eu disse parados mesmo. Somente parado. Não estático. Não sei sobre isso. Mas parados. Precisamos resistir a isso. É o que eles querem que façamos. É o que esperam. Nós vamos deixa-los esperando. Aqui. Entende? Não entende. Aqui parados. Resistiremos aqui, parados. Faremos o nada. O Grande Nada!

B – Mas esse lugar não é nosso? Ou melhor, é nosso. Meu, seu, dele e dos outros que virão daqui a pouco ou num futuro distante. Talvez até, entre esses dois tempos.

A – Isso! Nosso. Ficaremos aqui. Aqui parados. Resistiremos aqui, parados. Entre esses dois tempos mesmo. O que acha? Não ache. Só ficar parado aqui. Parados. Resistimos aqui. Vamos. Entende? Não entende. Isso! Fica assim. No momento assim. Parados. Faremos o nada. O Grande Nada!

A pigarreia.

C – Essa até que foi uma boa tentativa, mas ainda não é isso. Aliás, já vi isso em algum lugar… Enfim… Ainda não é isso. Mas boa tentativa. As duas, ou três. Que tivemos. Boas tentativas, mas ainda não, ainda não é isso.

A e B – Pois é. Está estranho isso.

Tossem.

C – Está. Acho que não está dando certo…

A e B – Pois é.

C – Está… Acho que devemos fugir disso tudo.

B – Fugir?

C – Fugir.

A – Fugir! Fugir! Isso! Temos que fugir o mais rápido e no silêncio! E fugir mesmo!

C – Do Teatro! Estou falando do Teatro!

A e B – Ah! Como?

C – Não sei, Mas não podemos imaginar. Imaginar é algo do teatro e queremos fugir do teatro.

A e B – Ah! Então como?

C – Não sei, não fazendo o que se faz no teatro, talvez… Isso! O que acham? Fugir do teatro! Não fazer o que se faz no teatro! O que acham?

A – Hmmm… Acho que é uma boa ideia.

C – Ah, mas essa pausa ai… não dá. Muito teatral isso!

A – Muito né?

B – Sim, muito.

C – Mais isso já é uma deixa que você deixou pra ele, ou uma réplica, não sei, mas me parece teatro também.

B – É que essa pausa dele foi demais. Muito pausada. Bastantíssima. Até demais para uma pausa comum. Quase dormi. Uma Pausa pausante. Pausuda, essa pausa que você fez.

C – É, mas isso também é teatro. Outra réplica. Outro teatro. Percebem?

A – Na realidade seria uma Tréplica. E se fosse uma tréplica pode, não? Já que é mais parecido com um debate do que com um teatro.

C – Quase poderia.

A – Uh!

B – E por quê?

C – Em debate pelo menos tem muita mentira. Ai daria certo. Já que no teatro tem essa coisa de “Verdade”. “A verdade da cena”, “A verdade do personagem” e bla bla bla. Teatro, teatro. Mas no debate tem a mentira, o que seria um caminho interessante. Só que é teatro! Porque a mentira quer ser verdade. Se fosse mentira mentira, talvez fosse o caminho. Um caminho interessante. Mas também não seria o caminho, porque a mentira quer ser verdade, toda ela. A mentira quer ser verdade. E é mentira. E a tréplica é a réplica da réplica, portanto é uma réplica. Portanto é uma réplica mentirosa que quer ser verdade. Típica do teatro.

B – Então é quase mesmo. Mas foi um bom quase. Muito bom. Nossa. Maravilhoso. Um quase maravilhoso. Parabéns.

C – Obrigado. Você é muito gentil. Muito. Nossa. Maravilhoso.

B – Um quase que parece teatro. Ainda não é isso.

C – Não. Parece, mas não é.

Pigarreiam.

A – Parece mesmo e é muito difícil isso.

B – Não é difícil, você que é tonto.

A (triste) – Calma! Poxa, acabamos de começar a nossa fuga e você já vem todo arrogante assim! Por acaso você nunca errou nessa sua vida? Nesse seu espaço? (chorando) Hein? Seu insensível!

C – Emoção, emoção, emoção!  Isso não dá. E teve pausa também! O que acabei de falar? Essa coisa de emoção não dá. TE-A-TRO.

A – (Para de chorar) É, desculpa. (Para B) Me desculpe também. Às vezes eu fico meio emotivo, sou muito sensível, sabe?

C – Sim. Mas não se justifique também. Isso também é teatro.

B – Temos que pensar em algo então.

C – Não, pensar em algo significa que temos um objetivo e que queremos alcançá-lo. Já vi isso na Rússia, eu acho, ou Polônia, não sei. Portanto, é muito teatro.

B – Vi algo uma vez… E acho que não era teatro… Espere…

C – Não dá pra usar a memória também. Pode parar. Nem adianta continuar com esses pensamentos relembrativos.

A e B – Teatro?

Tossem.

C – É. Também não dá pra ficar fazendo pose, assim (demonstra), vira mímica. Ou parece mímica. Nem máscaras, nem maquiagens, nem nada disso tudo. Ou seja, teatro, teatro e teatro. Lembrem-se: “O Grande Nada”!

A – Um ritual talvez.

B – Cale a boca! Já falamos que não!

C – Verdade.

A – E se criamos algo mais físico? Por gestos e tal? O que acham?

B (Para C) – Eu vou dar um soco nele.

C (Para B) ­– Muita emoção, e objetivo. (Para A) E você, Repetição. Teatro, Teatro, Teatro.

A (Para C) – E você? Porque tá fazendo isso que tá fazendo? (Para B) Você tá vendo isso que ele tá fazendo isso?

B – O que?

A – Isso ai, olha ai! Já vi isso na Alemanha!

B – Hahaha! Mas você nunca foi pra Alemanha!

A – E nem ele pra Rússia, ou Polônia, sei lá.

B e C – Verdade.

A (Para C) – Pois quem te colocou onde está?

C – A princípio, eu mesmo. Depois, por escolha conjunta.

A (Para C) – Por quê?

C – A princípio, porque sim. Depois, por falta de candidatos.

A e B – Verdade.

B (Para C) – De qualquer maneira, você não pode nos oprimir dessa maneira!

C – Verdade. Até porque, seria teatro. E não queremos fazer Teatro. Queremos nada. Saindo do teatro para o nada.

A, B – Verdade.

Pigarreiam.

A – E se criássemos algo diferente com o texto, algo próximo das artes plásticas?

C – Não. Achei que você já tivesse percebido que não teríamos texto. É teatro. Nem texto, nem artes plásticas!

A – Então não podemos nem ter cenário?

B e C – É.

A – Mas não ter cenário também é teatro, não é?

B e C – É.

A – E então?

C – É teatro, mas é teatro somente dentro do teatro.

B – Façamos fora do Teatro!

A – Nossa! Que genial!

B – Se for assim, pode e não pode ter iluminação e também teremos que fazer fora do teatro!

A e C – É.

B – Figurinos também?

A e C – É.

B – Canto também não. Nem dança… Podemos fazer a língua do P!

A – Língua do P? Não seria L?

B – Não! É P porque é assim que funciona! Tem que colocar o P antes da palavra.

A – Pois eu quero que seja a língua do T.

B – Tonto!

A – Não, não é assim. No seu caso seria Ttonto. Tem que colocar o T antes da palavra, como por exemplo, Ttudo.

B – Ttinha.

A – Tzão!

B – Hahaha! Fala isso Rápido três vezes!

A (rápido) – Isso, isso, isso!

C – Muito teatral também. Não adianta ficar brincando com palavras tentando criar algo parecido com uma música ou ficar repetindo elas ou ficar inventando outras ou ficar cortando ou ficar repetindo e variando o tom e o ritmo ou ficar fazendo a palavra com o corpo ou no corpo tentar passar a palavras como uma mímica, não adianta. Muito teatral. Não adianta ficar brincando com palavras.

C Tosse.

C – Mas, foi uma boa tentativa.

B – Difícil isso.

A – É.

C – É.

B – É.

A – Hmmm… E uma performance? Claro! Só nos resta a performance!

B – Ele está falando pra não fazer teatro! Não pra fazer merda! Não é pra fazer teatro, mas também não é pra fazer merda! Além do mais, não tem como restar nada do que é apenas o resto. É muito fácil.

C – Isso. E não me levem ao mal. Eu sou uma pessoa do bem, quero ir além, amém?

A e B – Amém.

C – Isso. Não me levem ao mal. Não é que a performance é ruim. É apenas que na arte do menor esforço, ela é excepcional. E é muito fácil. Não é que a performance é ruim. Há o que se pode chamar de “boa performance”. E isso é meio paradoxal. Na verdade, é uma performance da performance. E é muito fácil! E é muito difícil. Não é bem assim também. É muito fácil, mas é muito difícil. Na realidade, é o fácil tornado difícil. Furacão! Como andar em círculos, por exemplo, mas então se deve dar 50 mil voltas, pelado, em silêncio. Aí fica difícil! Mas é fácil! Entende? Não entende. E tem essa coisa de público seletivo, não é o que queremos. Quer dizer. Queremos nada. Saindo do teatro para o nada. A performance vem e sei lá. Acabou. É um papel higiênico, entende? Não entende. Difícil isso. Mas essa coisa de público seletivo, não é o que queremos. Quer dizer. Queremos nada. Saindo do teatro para o nada. Essa despreocupação preocupada da performance é muito teatro. E estamos saindo do teatro para o nada. Queremos o nada. Mas sem ter um objetivo, pois vimos que não pode. Não pode ter um objetivo. Mas a performance vem e sei lá. Acabou. É um papel higiênico. Quem dera fosse higiênico. Higiênico é uma qualidade boa. Performance é um papel. Um papel desses de banheiro, entende? Não entende. Difícil isso. Às vezes duram dias, às vezes nem acontecem, às vezes estão gritando, às vezes é mudo, às vezes nus, às vezes vestidos, às vezes isso tudo sem ser isso tudo sendo isso tudo, mas não sendo nada, que é o que queremos. Essa despreocupação preocupada da performance é muito teatro. E estamos saindo do teatro para o nada. Queremos o nada. Mas sem ter um objetivo, pois vimos que não pode.

C puxa um catarro. Tossem.

A e B – Amém!

C (para A) Você deve repetir para entender melhor. Repita: “não pode ser performance”.

A – Não pode ser, performance! Você de novo!

C – Não! Não é como se você estivesse dando uma bronca na performance, é que “Não pode ser uma performance”.

A – Agora que você acrescentou esse “uma” fica fácil de entender.

C – Pois é, estava economizando.

B – Economizando? Agora?

C – Agora não, mas um pouco antes disso. Depois de tudo o que me fizeram gastar, preciso economizar um pouco agora.

B – Entendo.

A – Entendo. Isso, eu acho que também não pode.

B e C – Verdade.

A – Mas é muito difícil isso!

B e C – É.

A – E tem essa parede aí! A quarta, né?

B e C – É.

A – Não pode ter e nem quebrar, né?

B e C – É.

A – E se quebrarmos a primeira? Ou a segunda e a terceira?

B – Mas qual é qual?

A – Também, não sei. Mas podemos quebrar as três de uma vez. As três que não sejam a quarta.

B – Boa! Mas e a quinta?

C – Não, não, não! Não podemos quebrar nada, não é nosso. Ou melhor, é nosso. Meu, seu, dele e dos outros que virão daqui a pouco ou num futuro distante. Talvez até, entre esses dois tempos.

A – Mas então não podemos fazer nada! Não podemos fazer “O Nada”!

B e C – É o que parece.

Pigarreiam.

A – Assim é muito difícil, como vamos (A projeta um espirro, mas não espirra).

C – O que é isso? Nossa! Não repita isso, seja o que for. Não é o que queremos. Com certeza não é o Nada. O Nada é belo. Nossa! Não repita isso… (Tosse) Já sei! Que ideia! Podemos fazer isso? (para).

B – Mas o que é isso e como faz?

C – Ah merda!… Já sei.

B – O quê?

C – Faremos isso que eu fiz e nem abrimos a cortina durante o tempo da nossa obra. O Grande nada!

B – Mas isso não é aquela coisa de ator que parece um boneco ou uma marionete ou uma estátua que parece algo que não parece um ator, mas é um ator que se parece com algo e somente isso por si só é o que ele parece?

A (Para B) – É! (Para C) O que diz?

C – Não, não é. Isso é outra coisa, envolve uns negócios de morte e tal, e estamos vivos e bem vivos aqui. E também não é performance. Entende? Não entende. Difícil isso. Essa despreocupação preocupada da performance é muito teatro. E estamos saindo do teatro para o nada. Queremos o nada. Mas sem ser um objetivo, pois vimos que não pode. Não pode ter um objetivo. O Grande nada!

A e B – Ah!

B – Mas não pode ter cortina, já que não estamos no teatro!

C – É.

Puxam um catarro.

C – E também não é uma estátua dessas de rua. Não estamos na rua. O que seria teatro também. Vamos fazer fora do teatro. E não vamos fazer teatro. Não é porque estamos fora do teatro que não podemos não fazer teatro, entende? Não entende. Difícil isso.

A e B – Isso!

C – O quê?

A e B – Entendemos.

C – Bom.

Silêncio.

A, B e C – Silêncio (pausa) Tensão (pausa) Público.

A  e B – Ah!

C – Calma!… Não pensamos nisso, mas vamos pensar. Não. Estamos pensando, agora. Agora mesmo. Calma. Isso. Precisamos de público, mas não precisamos de público… Quer dizer, não podemos ter público, mas precisamos dele… Então… Então… Porque é teatral, então, não podemos ter público, mas precisamos dele…

A e B – Isso!

C – Calma!… Não podemos ter público, não precisamos dele, até porque o público é sem graça, ou muito sem graça, fica se mexendo, rindo, batem palma, uns até choram, ficam tossindo, pigarreando, puxando catarro, espirrando, peidando, arrotando, nossa! Que sem educação. Tem gente que dorme. Dorme! Dá pra acreditar nisso? Se fosse na performance, até entenderia esse comportamento deles como performático,  o público é performático. Sai de algum lugar para performar no teatro. E falam. Falam. E usam os dedos em uns negócios que saem luz e piscam também. Eles piscam. Eles, o público. Eles piscam. E isso é ruim. Se isso já é ruim para o teatro, imagina para o nosso Grande Nada! Não imaginem, isso é teatro. E não queremos fazer teatro. Não. Isso não é o que queremos. Quer dizer. Queremos nada. Saindo do teatro para o nada.

A e B – Isso!

C – Queremos o nada! O Grande Nada! Isso! Isso nunca foi feito antes. Nós seremos o nosso próprio público. Seremos o nosso público sem sermos público. Pois somos privados. Nos privaremos de ter um público, para sermos o nosso público privado.

A e B – Isso! Seremos um público privado!

C ­– Isso! Faremos isso que eu fiz agora um pouco antes e nem abrimos a cortina durante o tempo da nossa obra. Até porque não terá cortina! O Grande nada! Entende?

A e B – Sim.

A – Difícil isso!

B – Sim.

C – Sim.

A – Sim.

Pigarreiam, puxam um catarro e tossem.

C – Talvez seja isso.

A e B – Sim.

C – Estou gostando de como está ficando.

B – Eu também.

A – Eu também. (Espirra).

B – Essa é nova!

Sirene.

C – Acabou nosso tempo, vamos?

B – Vamos.

A – Vamos.

C – Ficar aqui?

B – Ficar aqui.

A – Ficar aqui.

Permanecem.

***

 

A dramaturgia da dança contemporânea

Giovana Beatriz Manrique Ursini[1]

 

O que é dança? Uma questão que importuna coreógrafos e críticos de dança. Essa discussão se amplia na dança contemporânea devido a maior liberdade dos coreógrafos para criar novas produções com ousados resultados. A dança pós-moderna conseguiu ir tão além em seus experimentos que os artistas desse impulso artístico começaram a explorar outras artes para se ampliar as pesquisas na dança. Como por exemplo, os desenhos feitos por Trisha Brown para que os seus bailarinos pudessem entender a abstração de suas criações e os vídeos utilizados por Merce Cunningham que eram usados para ampliar os vocabulários coreográfico de seus dançarinos.

Os textos presentes nessa parte da antologia irão explorar a dança contemporânea em contato com a literatura. Uma outra maneira de se pensar e se enxergar a dança. Ouso a afirmar que esses escritos podem ser considerados coreografias escritas e não apenas textos literários, pois, as palavras utilizadas nessas obras tentam transmitir elementos da dança como ritmo, movimentações, número de participantes e até direções. Os verbetes servem aqui como os olhos daqueles que assistem e apreciam a dança.

Os textos apresentados foram desenvolvidos durante a disciplina Dramaturgia III do curso de Artes Cênicas no semestre 2017.1. A proposta inicial era de desenvolver coreografias de dança por meio de ações cotidianas. Para deixar a criação mais restrita, três formas de movimentações foram sugeridas: 1) O que você faz assim que acorda; 2) Como fica o corpo em estado de nervosismo; 3) Gestos de felicidade. Cada aluno pensou em movimentos que correspondessem a esses encaminhamentos. Depois, os participantes da proposta se agruparam para desenvolver sequências gestuais através desses atos cotidianos. Os estudantes foram convidados a aplicar a ideia de acumulação de movimentos em suas coreografias. Como último experimento, os alunos transforam as suas danças em textos.  Esses escritos teriam que representar a dança de alguma forma. Uma espécie de registro ou descrição dos corpos dançando.

Através dessas ideias proponho a leitura das duas obras 3\4 e Cotidiano em três movimentos, tentando visualizar mesmo que apenas na imaginação como os verbetes possam descrever e apresentar o corpo que dança. Após a leitura dessas palavras, cabe ao leitor refletir sobre aquela questão inicial: O que é dança? Proponho também outra discussão: Existe uma dança em palavras ou uma dança textual?

 

COTIDIANO EM TRÊS MOVIMENTOS

Jucimara Costa Wachholz

Marlei Neiva Albrecht

Renata Leal Da Rosa

 

Movimento 1: Pés paralelos e corpo ereto. O pé direito se une ao esquerdo em um movimento de lateralidade do corpo de modo fluído. As mãos seguem a mesma movimentação das pernas. Esse movimento surgiu através da proposição: “O que você faz assim que acorda”.

Movimento 2: Pés juntos e paralelos. Punhos fechados e tensos, que se tocam em um movimento para o lado esquerdo e o direito. O tronco acompanha essa locomoção realizando uma leve torção. Esse movimento surgiu através da proposição: “Como fica o corpo em estado de nervosismo”.

Movimento 3: Pés paralelos. A perna direita dá um passo à frente, ao mesmo tempo, em que o braço direito vai para frente e para cima, e o esquerdo acompanha o movimento para baixo. As mãos ficam abertas. Esse movimento também surgiu da proposição “O que você faz assim que acorda”.

 

Tabela para a execução dos movimentos

1(x3) + 2(x3) + 3(x3) + 2(x3) + 1(x3)

1(x1) + 2(x1) + 3(x1) + 2(x1) + 1(x1)

 

¾

Gabriel De Oliveira Salazar

 Ícaro Bolognini

Kytiane Nayara Kittel

 

1 Palma Palma Postura Caixa
1 Palma Palma Postura Caixa

 

1 Palma  Palma Postura Caixa
2 Passo Perna Direita Atrás Braço Alto

Direita Atrás

Passo Perna

Esquerda Atrás

Braço alto

Esquerda Atrás

1 Palma Palma Postura Caixa

 

1 Palma Palma Postura Caixa
2 Passo Perna Direita Atrás Braço Alto

Direita Atrás

Passo Perna

Esquerda Atrás

Braço alto

Esquerda Atrás

3 Perna Fica

Direita Vai

Perna Fica

Direita Vai

3 Perna Fica

Direita Vai

3 Perna Fica

Volta Foi

2 Passo Perna Direita Atrás Braço Alto

Direita Atrás

Passo Perna

Esquerda Atrás

Braço alto

Esquerda Atrás

1 Palma Palma Postura Caixa

 

***

Reescritos de uma dramaturgia arltiana

 

Adriane Viz[2]

 

Nessa sequência da antologia apresentaremos três peças selecionadas que foram baseadas em características de vanguardas e no dramaturgo argentino Roberto Arlt (1900-1942).  O intuito foi elaborar peças dramáticas de um teatro de vanguarda elaboradas a partir de traços do escritor argentino que dedicou o final de sua carreira a dramaturgia. Esses reescritos pelos alunos foram desenvolvidos durante o estágio que realizei na disciplina Dramaturgia III do curso de Artes Cênicas no semestre 2017.1.

Ao longo do curso foram apresentadas discussões a respeito de teorias do teatro de vanguarda, de Roberto Arlt, suas características e estilos que projetava sua imagem de escritor marginalizado. Ademais, mostra um novo teatro em que se observa personagens inusitados/marginalizados e temas voltados a crítica social em um cenário urbano. As peças aqui apresentadas utilizaram uma ou mais de uma vanguarda e uma característica do dramaturgo argentino. Criando peças teatrais de vanguarda que refletem elementos vistos em sala de aula.

A primeira peça tem o título de A Fábrica de Gabriel Salazar. O enredo dessa encenação faz uma crítica a sociedade por um viés absurdo e que lembra características da vanguarda dadaísta. A peça centra-se em três personagens sem nome A, B e Chefe, em que vemos a rotina de A e B na fábrica em que trabalham. A partir daí, se desenrola a conversa entre as personagens onde são apontadas suas opiniões e críticas a sua realidade. O segundo texto Garota ácida de Renata Leal mostra características da vanguarda ultraísta e dadaísta. Entre traços dessas vanguardas temos a ideia de provocação, humor baseado no absurdo de dadaísmo e uso de metáforas, linguagens mais simples e neologismos do ultraísmo. O enredo da peça é baseado em apenas dois personagens A e B. O texto narra um momento entre o casal que decide fugir da realidade por escassos segundos. Fazendo uma crítica a realidade e a pressão que as pessoas sentem no dia a dia. E o texto se encerra de forma totalmente inesperada para comprovar a crítica.  A terceira peça de título Meratocracia de Marlei Albrecht possui características da vanguarda ultraísta ao usar tecnicismos e uso de metáforas. Ademais de fazer exaltação do mundo moderno. A peça conta sobre um dia de trabalho no tribunal através das personagens Leidy, Mór e Crash e o copeiro sem nome. Notamos a realidade e divisão de classes de acordo com as funções dentro do tribunal. O resultado dessa disciplina pode ser visualizado nas três peças selecionadas para esta antologia, nas quais se nota traços arltianos e de vanguarda, recriadas pelos alunos Gabriel Salazar, Renata Leal e Marlei Albrecht, respectivamente:

 

A FÁBRICA

Gabriel Salazar

 

ATO I

 

Dois bancos. A e B. As duas pessoas estão sentadas. Tomam algo. Silêncio.

 

A – Que horas são?

 

B – São exatamente… Dezessete horas e quarenta e cinco minutos… Horário de Brasília, mas aqui também se aplica esse mesmo horário. O clima está bom e a tendência é permanecer até o fim de semana, com máximas de… Vinte e cinco graus… E por isso, a mínima será de uns… Quatorze graus…. É, quatorze. O dólar subiu e a bolsa de valores…

 

A (Interrompendo. Rindo) Você é idiota…

 

B (rindo) – São quinze pras cinco…

 

A – Aí que saco…

 

B – É… Não está fácil pra ninguém…

 

A – Por que a vida tem que ser essa merda toda? Quer dizer… Que merda! Não tem o que dizer além disso. Uma merda. Uma merda e ponto…

B (rindo) – É… Complicado… E o que você quer fazer?

 

A – Estou pensando seriamente em me demitir…

 

B – Sério?

 

A – Sério.

 

B – Mesmo?

 

A – Mesmo.

 

B – É preciso ter coragem… E pensar duas vezes ainda…

 

A – É…

 

B – Mas e depois? Como vai lidar com isso? Você vai precisar fazer algo, não é?

 

A – Não sei… Só não quero ter essas férias infinitas nos finais de ano e esse inferno de gente no trabalho me querendo e me incomodando na hora do intervalo e ter que vir todo dia aqui, no mesmo dia, mesma hora, tomar sempre a mesma coisa e amanhã cedo ter que ir à Igreja, no outro dia também, e no outro e no outro, até o último dia da semana, pra chegar ao final de semana e poder trabalhar, trabalho esse, inclusive, pra pegar um mísero mês de salário! Entende?! Não há condições! Ou eu mato essa rotina eu ela vai acabar me matando!

 

B – Mas é isso que eu estou falando! Entendeu?! A vida é assim…

 

A – Uma merda!

 

B – Uma bela duma merda!

 

A – Pois é! E daqui a pouco, adivinha o que temos que fazer! Adivinha! Temos que ir trabalhar, chegar em nossa humilde casa, comer, dormir, pra amanhã acordar cedo e ir na missa e na padaria e assistir mais um esporte! E haja esporte e haja campeonato!  Haja campeonato! Vida boa essa de esportista! Caceta! Que vida boa! Por que raios eu não nasci com dons de esportista?!

 

B (rindo) Pois é… Queria mesmo é poder trabalhar todo dia e descansar nos finais de semana…

 

A – Sim! Que inferno! Vou fazer o que amanhã? O que? Advinha?… Nada! N-A-D-A! Nada!

 

B – Tínhamos que protestar contra esse governo corrupto! Protestar! Quebrar tudo!

 

A – E de que adianta? Adianta? Não adianta…. Se nós não trabalhamos, imagine eles…. Não sei como não protestaram contra si mesmos, é muito nada para se fazer pra uma pessoa só…

 

B – Sim…. Mas sei lá…. Não é possível que só se possa fazer nada e eles ainda estejam contentes com isso!… Precisamos fazer algo.

 

A – Pois eu farei, vou me demitir, já disse…

 

B – Calma…. Já parou pra pensar que se você sair da fábrica vai ficar com muito mais nada para fazer? Mais ainda do que agora…

 

A – Mas aí eu arranjava outro emprego, né?

 

B – Claro! Trocar de emprego é como trocar de roupa, não é? Simples, rápido e fácil…

 

A – Eu sei que não, mas eu me viro…

 

B – Se vira com o que?

 

A – Não sei…. Poderia arranjar um emprego desses de artista por exemplo…

 

B (Engasga. Rindo) – E você lá é artista por acaso? Hahaha! E depois eu que sou idiota…

 

A – Ué? Eu canto, danço até que bem e… E posso fazer esses papéis de teatro aí…. Posso ser diva, não vê? Eu sou uma diva! E serei galã também! Só arranjar um curso desses que tem por aí, sei lá…. Aprendo e pum! Serei uma estrela!

 

B (rindo) Essa é ótima…

 

A (rindo) – Pensa só trabalhar nesses teatros! Porra! Essas trupes apresentam todos os dias! Todos os dias! Todo santo dia, até nos dias que não são santos! Um sonho! Quem não gostaria de trabalhar assim?

 

B – É! Mas não deve ser tão fácil assim… Quer dizer, é preciso ter uma faculdade pra poder trabalhar assim todos os dias, sabe?… Ou um desses cursos muito famosos por aí…

 

A – Que nada! Sabe aquele ator… O… Calma…. Aquele que fez a última peça…. Aquela “das duas”… Fez o papel de um político, algo assim… Lembra?

 

B – O José José?

 

A – Isso! O José José! Ele mesmo!

 

B – O que tem ele?

 

A – Engenheiro!

 

B – Ah não! Tá brincando?

 

A – Juro! Tem pinta de galã e tal, pronto! Foi chamado pra uma Companhia de Teatro e agora tá aí… E ainda sobra tempo pra fazer novela nos finais de semana! Isso que é artista!

 

B – José José engenheiro… E eu aqui…

 

A – E a Ana Ana Ana? Lembra? Aquela diva do teatro “das três”, sabe?

 

B – Ah é?! O que tem ela?

 

A – Garota de Programa!

 

B – Para!

 

A – Juro!

 

B – PA-RA!

 

A – Juro!

 

B – Como? Como ela teria tempo pra um trabalho desses?

 

A – E você acha que não dá tempo? Olha o tanto que temos!

 

B – Ah, mas mesmo assim… Você acha?

 

A – Claro! Dá tempo, tanto que ela é Garota de Programa E artista!

 

B – Garota de Programa…

 

A – É…

 

B – Engenheiro…

 

A – É…

 

B – E eu aqui…

 

A – Eu também, né?… É… Acho que tá na hora de irmos…

 

B – Engenheiro…. Não acredito nisso…

 

A – Tá nessa ainda? Precisamos ir…

 

B – Ah não! Vou me demitir também, mas precisa ser hoje…. Hoje!

 

A – Agora sim! E depois iremos virar artistas!

 

B – Virar? Eu já sou artista! Diva! E galã! (rindo).

 

A (rindo) – Vamos então… Haha!

 

B – Mas calma…. Vamos ver primeiro se conseguimos alguma mudança, pode ser?

 

A – Sério? E você ainda quer tentar isso?

 

B – Só tentar, não vai nos custar nada…

 

A – Mas você acabou de dizer que iria se demitir também!

 

B – Mas não é tão fácil assim, e se não conseguirmos seguir nossa carreira artística?

 

A – Vai dar certo!

 

B – Sim, mas calma! Vamos tentar mudar as coisas, não custará nada e outra, se conseguirmos explicar bem, talvez a opinião do Chefe mude e ele concorde com a gente.

 

A – Certo, que seja…, mas não vai mudar nada, já aviso…

 

B – Tentar só…

 

A – Tudo bem, mas se não der em nada…

 

B – Nos demitimos na hora!

 

A – Isso mesmo, na hora. Demissão na certa!

 

B – Combinado!

 

A – Vamos, então…

 

B – Vamos!

 

Saem.

ATO II

 

O CHEFE está sentado em sua cadeira falando no seu telefone com fio, confortavelmente. Há uma mesa a sua frente e duas cadeiras disponíveis a frente da mesa.

 

CHEFE – Aí é complicado! Eu já fiz o pedido dessa remessa há cinco finais de semana atrás! Cinco! E vocês prometeram a entrega em um prazo de dois a três finais de semana! Ou seja, dois a três! Entre dois e três! E não cinco!… Não interessa! Se não chegar hoje até o final do dia eu cancelo o contrato com vocês! Cancelo! Hoje!… Ah… E não me cheguem no horário de intervalo!

Desliga o telefone. Estressado.

 

CHEFE – Imbecis… Imbecis!

 

O Chefe peida para tentar relaxar. Entram A e B sem avisar. O Chefe não percebe.

 

A – Senhor Chefe!

 

CHEFE (assusta-se) O que é isso? Que… Que absurdo! Por acaso já não disse um punhado de vezes que devem avisar que vão entrar? Hein?

A (para B) Que cheiro estranho…

 

B (para A) – Pois é, que será…

 

CHEFE (interrompendo) – E por que que tá esse cheiro? Por quê? Porque não limparam aqui! Não limparam quando eu pedi! Mas esse não é o caso aqui! Respondam!

 

B – O quê?

 

CHEFE – Por acaso já não disse um punhado de vezes que devem avisar que vão entrar? Hein?

 

B – Desculpe, senhor Chefe, mas essa é uma questão que nós nunca conseguimos resolver.

 

CHEFE – Que questão? Não vejo questão alguma aqui, se há questão, questione, mas não há questões, tanto que ainda não a fizeram!

 

B – Como iremos te avisar antes de entrar se não têm portas…

 

CHEFE (interrompendo) – Não me faça perder tempo com perguntas inúteis. O que merece o meu desprazer em ver, observar, avistar, contemplar vocês aqui enquanto deveriam estar trabalhando? Por acaso está na hora do intervalo?

 

A – Então, senhor Chefe, não está na…

 

CHEFE (interrompendo) Responda a primeira pergunta, depois, responda a segunda. Se toda vez que vierem aqui eu tiver que ensinar pra vocês sobre isso, não trabalharemos nunca! (Para si). Esse povo sem graduação…

 

A – Desculpe-me, senhor Chefe, mas não entendi o que o senhor disse.

 

CHEFE – Disse para responder as coisas na ordem em que foram perguntadas.

 

A – Ah sim! Entendi. O que nos traz aqui é o nosso pedido de…

 

B (interrompendo) O nosso pedido de melhor condição no trabalho, senhor Chefe.

 

CHEFE – Melhores condições? O que isso significa?

 

A – Então, senhor Chefe, na realidade…

 

B (interrompendo) Significa que…

 

CHEFE (interrompendo) – Significa que vocês estão insatisfeitos com o trabalho de vocês e querem melhorias?! Não é?

 

B – Isso mesmo, Chefe.

 

A – É… Isso.

 

CHEFE – Significa que o salário é baixo, que não dá pra sobreviver com essa merreca que ganham, que não querem trabalhar nos finais de semana, que são mal tratados, desvalorizados e que o mundo é uma merda e é injusto, não é?

 

B – É, senhor Chefe. Mais ou menos isso.

 

CHEFE – Ah é?…Vão À merda! Vão-À-Merda! A e B assustam-se.

 

CHEFE – Por acaso vocês não recebem o salário sempre no dia combinado? Por acaso não recebem vale transporte? Por acaso não recebem vale alimentação? Por acaso não adquiriram seguro de vida pela empresa? Por acaso não há sempre café disponível gratuitamente a todos? Por acaso não há sempre gomas de mascar também disponíveis gratuitamente e também a todos? Por acaso não libero vocês do trabalho nos feriados assim como foi combinado? Por acaso não possuem férias sempre no período em que vocês escolhem? Por acaso não preencho ‘vales’ para vocês sempre que pedem? Por acaso não libero vocês para o intervalo sempre no horário proposto nos seus dias de expediente? Hein? Vamos apontar agora os benefícios extras que esta Fábrica vos oferece: Lavagem de carros; reparação de automóveis; licença maternidade e paternidade durante um ano, mantendo o salário; licença sabática; massagem; sessões de Yoga; lavanderia; refeições; sala de entretenimento com uma variedade de jogos; descontos nos produtos produzidos pela Fábrica; pedicure; manicure; cursos mensais com membros convidados de altíssimo nível intelectual; assistência médica; assistência odontológica; assistência psicológica; assistência física; assistência jurídica; assistência telefônica; assistência técnica; assistência sexual; nutricionista; personal  trainer unissex; presentes em todas as datas comemorativas que vocês escolhem, somadas as datas comemorativas de todas as religiões e crenças; cesta básica; cesta complexa; motorista; segurança; vale combustível; refeitório; berçário; férias de dois à três meses; seguro desemprego até o empregado encontrar emprego; seguro felicidade até o empregado encontrar a felicidade. E por aí vai! Mas deve ser por acaso mesmo! Dever ser, não é? E olha que eu só comecei com os meus questionamentos e apontamentos…

 

A – O senhor possui muitos questionamentos e apontamentos, senhor Chefe.

 

CHEFE – Pois é! E vocês, nenhum!

 

B – Então, senhor Chefe. O senhor tinha perguntado sobre o intervalo e a resposta é:  não, senhor Chefe. Não é hora do intervalo. Quanto a essas perguntas, senhor Chefe, nós ainda assim, gostaríamos de melhores condições.

 

CHEFE – E quais seriam essas condições? Quais?

 

B – Senhor Chefe, gostaríamos de poder trabalhar nos dias de semana em um horário mais acessível, por exemplo, das sete horas da manhã até às seis horas da tarde e podermos deixar os finais de semana livres, além disso, seria melhor se reduzíssemos o nosso horário de intervalo. Pois veja, entramos às seis da tarde, seis e meia inicia o nosso intervalo, que é de duas horas, retornamos às oito e meia e logo depois somos liberados às nove horas da noite para irmos para casa. E isso tudo, somente nos finais de semana! É muito nada para ser feito, senhor Chefe, estamos realmente cansados disso…

 

CHEFE – Pessoa querida, queridíssima, você caiu da cama quando criança?

 

B – Não lembro, senhor Chefe.

 

CHEFE – Respondido…. Isso é impossível. Que imbecilidade é essa de trabalhar das sete horas da manhã até às seis horas da tarde?

 

B – É que passamos muito tempo dos dias da semana fazendo a mesma coisa e muitos nadas, senhor. Acho que poderíamos aproveitar melhor o nosso tempo.

 

CHEFE – E que besteira é essa de reduzir o intervalo? Você acha que a Igreja permitiria isso com os seus fiéis? Vocês acham que a sociedade se ajustaria a essas mudanças tolas? E qual seria o horário do esporte? E das novelas? Vocês acham que os políticos acatariam tais mudanças? Em nenhum lugar do mundo existe isso! Nenhum!

 

B – Penso que poderíamos trabalhar mais se pudéssemos reduzir o nosso intervalo. Produziríamos mais.

 

CHEFE – E que imbecil nesse mundo faz isso? A não ser artistas e esportistas, não vejo mais ninguém…

 

A – É isso! É isso, senhor Chefe… Nós nascemos pra ser artistas, sabe? Artistas! Queremos trabalhar nos dias de semana. E por isso viemos até aqui pedir demissão.

 

CHEFE – E por que não vieram no intervalo? Hein? Por quê? Hipócritas! Viram? Querem trabalhar, mas para resolverem isso, aparecem aqui no horário de trabalho…  HA pra vocês! HA!

 

B – Desculpe, senhor Chefe.

 

A – Sim, senhor Chefe, desculpe, mas a decisão já está tomada.

 

CHEFE – Hmm… Infelizmente, por mais que eu não goste disso, devo admitir que é uma atitude muito corajosa da parte de vocês, se eu pudesse, me tornaria artista também…

 

B – E por que não se demite também, senhor Chefe?

 

CHEFE – Ora! Porque sou o Chefe.

 

B – E?

 

CHEFE – E se isso acontecesse, eu não seria mais o Chefe, o que é um total absurdo! Nasci assim, assim morrerei: “Chefe”!

 

B – Mas o senhor, senhor Chefe, gostaria de ser artista?

 

CHEFE – E quem não? Eu mesmo sou muito bom em poesia…

A – Sério, senhor Chefe?

 

CHEFE – Seríssimo!

 

A (para B) – Hahaha, veja só, um Poeta!

 

CHEFE – Nada disso! Nada disso! Eu sou o Chefe e não um Poeta. Não confunda as coisas, não sou um poeta, sou bom em poesia e sou o Chefe.

A – Ah sim, desculpe, senhor Chefe.

 

B – Senhor Chefe, recite uma poesia para nós, seria um momento tremendamente encantador!

A – Sim, senhor Chefe! Por favor!

 

CHEFE – Não! Aqui eu não estou permitido a realizar essas façanhas.

 

B – E por que não?

 

CHEFE – Porque eu sou o Chefe, oras!

 

B – Ah sim, desculpe, senhor Chefe.

 

A – Desculpe, senhor Chefe.

 

Sirene.

 

CHEFE – Ah! Maravilha! O “HORÁRIO DO INTERVALO”!

 

A – Sim, senhor Chefe.

 

CHEFE – Portanto, irei tirar o meu merecido cochilo.

 

A – Mas senhor Chefe, não poderia assinar os papéis de demissão para que pudéssemos ir embora e seguir a nossa tão sonhada carreira artística?

CHEFE – E cadê os papéis de demissão?

 

B – Não está com o senhor, senhor Chefe?

 

A – Pois então, esperávamos que o senhor pudesse nos providenciar toda a papelada.

 

CHEFE – O que significa?

 

B – Ãhn?

 

A – O que?

 

CHEFE – Significa?… Significa que eu teria que trabalhar, mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obstante, ainda assim, apesar disso, mesmo assim, de outra sorte, ao passo que é a hora do intervalo, break, pausa, não trabalho agora, hiato, recesso, folga, parada, suspensão, paralização, trégua, janela, paragem, descanso, que é exatamente o que eu farei.

A – Mas senhor Chefe, iniciamos a nossa conversa no horário de expediente, antes  ainda do intervalo…

CHEFE (interrompendo) – Sim, e foram hipócritas! Querem demissão para trabalhar, mas param de trabalhar para pedirem demissão…

A – Mas senhor Chefe…

 

CHEFE (interrompendo) Não interessa! Fizeram mal, muito mal! Já pedi que viessem conversar comigo no intervalo, lembrem?

A – Que é agora, não é?

 

CHEFE – Sim.

 

A – Pois então…

 

CHEFE – Pois então, como tomaram o tempo do meu trabalho com a conversa, vejo que não temos o que conversar agora, mas o pedido de demissão de vocês será homologado assim que eu retornar ao trabalho.

 

B – Mas senhor Chefe, é só nos entregar o papel de demissão que o senhor possui e nós assinarmos e pronto, a demissão será realizada.

 

CHEFE – O que irá, casualmente, ocupar certo tempo do meu intervalo, break, pausa, não trabalho agora, hiato, recesso, folga, parada, suspensão, paralização, trégua, janela, paragem, descanso.

 

A – Chefe, se não nos conceder a demissão agora, iremos convocar todos os funcionários para interromper o seu intervalo, bre… bre… brrrequi… pausa… O intervalo mesmo! Vamos convocar todos os funcionários para interrompê-lo, de forma que irá causar todo um reboliço na empresa!

 

B – As pessoas vão comentar, senhor Chefe, e você sabe que elas comentam e de fato é isso que fazem todos os dias da semana, que não nos finais da noite enquanto estão trabalhando, não sendo artistas e esportistas, elas comentam e comentam e comentam e o senhor, senhor Chefe, estará na cabeça dessas discussões!

 

A – Sim, senhor Chefe! Tanto no momento de nossa interrupção, quanto depois, quando formos artistas e pertencermos a classe artística e toda ela se revoltar contra o modo vivido na Fábrica do senhor, senhor Chefe!

 

B – Faremos obras cada vez mais artísticas que irão transpor toda essa revolta através dos séculos e caso não atinja a esfera política, atingiremos a esfera cultural! Uma revolução cultural, senhor Chefe! As escolas irão inserir essa revolução em todas as áreas do ensino! Todas! Das humanas às exatas! Das artísticas às biológicas! Todas! Até as graduações e pós-graduações! Seu nome servirá de metáfora em protestos! Em tudo!

 

A – Já está acontecendo, senhor Chefe! Não está sentindo?

 

B – Está sentindo, senhor Chefe? Está sentindo esse cheiro podre?! Não é porque não limparam a Fábrica e o seu escritório, senhor Chefe, é o cheiro da desgraça cultural que domina o nosso país e nós iremos parar isso, senhor Chefe!

 

A – Parar!

 

B – Isso mesmo, aleluia! Iremos parar!

 

A – Iremos nomear instantaneamente o senhor, senhor Chefe, como um…

 

CHEFE (interrompendo) – Chega! Eu concedo, eu imprimo, eu renuncio, mas não façam essa interrupção! Não convoquem os outros! Sem revolução de coisa nenhuma! Nada, por favor!

 

A – Quanta gentileza, senhor Chefe, é tudo o que queremos…

 

B – E desculpe, pela perturbação, senhor Chefe, não era a nossa intenção, ainda mais no horário do seu precioso intervalo…

 

CHEFE – Tudo bem!… Estão aqui os papéis!

 

O Chefe entrega uma folha para A e uma folha para B, que recebem com felicidade.

 

A – Nós agradecemos, senhor Chefe, muito.

 

B – Sim, senhor Chefe, muitíssimo!

 

CHEFE – Pronto. Vocês estão livres para serem artistas, vão e, por favor, nunca mais pensem nessa interrupção, convocação, revolução ou algo do tipo…

 

A – Jamais, senhor Chefe…

 

B – Nunca…

 

Silêncio. Assinam e deixam o papel na mesa.

 

B – Senhor Chefe, ainda acho que o senhor deveria nos acompanhar na nossa nova jornada artística e demitir-se, resignar-se…

 

CHEFE – Já disse, não posso! Sou o Chefe, não posso não ser quem sou!

 

B – De fato, não, mas pode sim, senhor Chefe!

 

A – Sim, senhor Chefe! Basta demitir-se de si mesmo e estará emancipado de si  pra todo o resto de sua vida! Abdique-se!

 

CHEFE – Mas isso é impossível!

 

A – Venha cá, senhor Chefe, troque de lugar comigo.

 

CHEFE – Como assim?

 

A – Venha ao meu lugar. Trocam de lugar.

 

A – Agora assine esse papel.

 

A pega um papel da mesa coloca a frente do Chefe.

 

CHEFE – Não posso!

 

A – Claro que pode, basta assinar esse papel assim como nós fizemos!

 

CHEFE – Vocês não entendem, eu não posso demitir-me de mim mesmo! Não posso! Essa é a minha vida, é quem eu sou! “O Chefe”. Essa fábrica é minha e foi de meu pai,  e antes dele, do pai de meu pai, e antes dele, do pai do pai de meu pai, que é até onde minhas lembranças conseguem alcançar… Desde pequeno vinha aqui na fábrica com meu pai, o pai de meu pai e o pai do pai do meu pai, juntos, todos juntos, sempre, e desde pequeno eu era chamado de Chefe, alguns ainda me chamavam de Chefinho, algo que eu não gostava muito e talvez isso acontecesse por causa de minha estatura inferior, mas, porém, contudo, todavia, no entanto, não obstante, ainda assim e apesar disso, mesmo assim, de outra sorte, ao passo que agora… Agora as coisas são diferentes, eu sou o Chefe, assim como o meu pai, o pai de meu pai e o pai do pai de meu pai. São lembranças minhas, vocês não entenderiam e, portanto, então, logo, assim, por isso, por conseguinte, com isso, de modo que, por consequência, em vista disso, desse modo,  pelo que, consequentemente, não posso emancipar-me de mim mesmo em nenhuma circunstância possível.

 

A – Senhor Chefe, você consegue.

 

CHEFE – Como?! Não dá!

 

A pega o papel e B pega uma caneta disponível na mesa e estendem na frente do Chefe impositivamente.

A – Nós acreditamos em você, senhor Chefe!

 

B – Isso, senhor Chefe. Chegou a sua hora.

 

A – A hora de sua libertação!

 

B – A hora de sua alforria!

 

A – De sua emancipação psicoespiritofísica!

 

B – Sua maior missão!

 

A – A demissão das demissões!

 

B – A resignação das resignações!

 

A – A abdicação das abdicações!

 

B – A revolução das revoluções!

 

A – A hora da verdade!

 

B – A hora da justiça!

 

A – A hora das horas!

 

B – Os minutos!

 

A – Os segundos!

 

B – Os décimos!

 

A – Os centésimos!

 

B – Os milésimos!

 

A – É agora!

 

B – Basta somente, senhor Chefe!

 

A – Apenas, simplesmentemente, senhor Chefe!

 

B – Tão só meramente única!

 

A – Exclusivamente!

 

B – E nada mais do que isso, meu senhor, senhor Chefe!

 

A – Assinar este solene papel

 

B – Assinar!

 

A – Majestosamente a assinatura das assinaturas!

 

B – Assinar! Glória!

 

A – Glória!

 

A e B – Assine!

 

A e B, Chefe. Chefe está trêmulo com a caneta em mãos. Assina o papel. Um momento transformador. Nada acontece. As três pessoas se olham. A. B. Chefe. Blackout.

 

 

GAROTA ÁCIDA

 

       Renata Leal

 

Há um fusca no palco, o narrador está sentado em posição de lótus em cima do fusca. O casal inicia a cena fora do carro.

 

Narrador: Era uma vez… Hum, melhor não começar assim, porque fica parecendo que vou contar uma história da Disney… E essa história não tem nada de parecido com um conto de fadas, pelo contrário, essa história é uma história comum, que poderia ter acontecido com qualquer um… ou não… acho que não, já que poucas garotas teriam tido aquela coragem. Não, a protagonista não é uma heroína como você está pensando, ela é apenas uma desvairada permissiva e meio “perdida”.

 

A: Tá na mão, gata!

B: Quantos você conseguiu?

A: Dois.

B: Só dois? Isso é pouco!

A: É mais do que o suficiente. Um pra cada já tá bom!

B: Não! Quero extrapolar hoje, você não lembra do que eu disse?

A: Lembro, mas você é inexperiente nisso e acho que um tá suficiente.

B: Você não tem que achar nada! Te dei dinheiro pra comprar mais e você me trás só isso.

A: O cara não tinha mais que dois…

B: Mentira! Você acabou de dizer que trouxe pouco porque eu era inexperiente.

A: Tá, isso é verdade também. Ó, toma aí se não vai demorar muito pra começar a fazer efeito. Sabe como é, né? Tem que colocar embaixo da língua…

B: Eu sei! Que saco, você é muito chato. Até parece que nunca fizemos isso antes!

A: Tá… Desculpa. É que tô nervoso… Na verdade, ando preocupado com você, já é a terceira vez nesse mês que você pede pra pegar um doce com o cara da Lagoa. O que tá rolando? Do que você anda querendo fugir?

B: Não tá rolando nada, eu só quero aproveitar a vida enquanto sou jovem. Entendeu ou tá difícil? Nossa! Você parece um velho rabugento! Tá parecendo o meu pai, querendo me controlar. (Pausa) Tá, e aí? Tá esperando o que pra tomar o teu? Vamos, garoto!

A: Pronto! Bora lá pegar uma vodca com energético no carro. (A e B se deslocam e entram no carro).

B: Uhul! Não vejo a hora de ficar loucassa e começar a viajar!

A: (Entregando um copo com bebida para B). Vê se vai com calma, temos a noite toda para curtir.

B: (Bebendo um grande gole) Uhum, pode deixar. Vamos dar uma volta? O negócio já tá batendo, quero pegar um vento na cara.

A: Ok, pode ser. (B começa a tirar a roupa enquanto A se concentra para dar a partida no carro). Ei! Que cê tá fazendo?

B: Que foi? Vai bancar o puritano agora?

A: Não vou, mas… Mas você tem certeza que quer realmente fazer isso?

B: Tenho! (Põe metade do corpo para fora do carro). Olha que maravilha poder andar de carro nua! Peitos soltos, balançando ao vento das Rendeiras, meu cabelo voando como passarinho, o ar fresco da noite beijando meu corpo… (gritando ao vento) Ah, a vida é linda, as pessoas são lindas, eu sou linda, a Lagoa é lindaaaaaa.

A: (Puxando B para dentro do carro). Ei, agora chega! Coloca o cinto que vamos passar pelo posto da Polícia Rodoviária.

B: (Rindo) Ok, colocarei o cinto, mas você acha que se o policial me ver pelada ele não vai parar a gente só porque estamos de cinto? Nunca ouviu falar em atentado ao pudor?

A: Claro que sim, mas sei lá… Você tá me deixando tão nervoso hoje que nem tô raciocinando direito.

B: Hum, sei…. Acho que o ácido tá começando a fazer efeito em você também.

Narrador: E isso era apenas o início daquela noite insana. Os dois andaram por tudo com o carro, passearam por toda a Avenida das Rendeiras, foram até a Joaca, depois atravessaram o Morro da Mole e terminaram na Barra. B permanecia nua. Dizia o tempo inteiro que nunca havia se sentido tão livre e tão leve. Quando chegaram na Barra, fizeram amor na areia da praia após B dançar com a Lua; até que B adormeceu. A, como era muito zeloso, pegou B em seus braços e a levou para casa, mas quando chegaram sãos e salvos, A estava tão cansado e sem forças para carregar B até a cama, que acabou adormecendo no carro também. O dia amanheceu e a manhã passou, até que o sol do meio-dia bateu direto no rosto dos dois, despertando-os de um sono profundo.

B: (Bocejando e ficando assustada em seguida) Nossa! Que loucura, meu Deus! Onde estão as minhas roupas? (Começa a procurar e a vestir-se apressadamente).

A: Bom dia, bonitona. Tudo certo?

B: Mais ou menos. Acho que me passei um pouco ontem. (Sorrindo) Acabei de acordar pelada. Nossa, que noite, que show, que loucura! Adorei aquele doce, quando você pode conseguir mais?

A: (Gaguejando) Da.… daquele?

B: Sim, daquele.

A: Bom, daquele? Tem certeza?

B: Sim, garoto! Aquele mesmo. O que que tá pegando?

A: (Sorrindo). Bem, aquele doce eu posso conseguir todos os dias pra você.

B: Como assim? Até ontem você não queria que eu usasse…

A: Sim.

B: (Confusa) Então?!

A: Então, como disse, aquele lá você pode tomar todos os dias. Era apenas um pedacinho de papel. E antes que você ache que a loucura toda foi efeito da bebida, já vou dizendo que você ingeriu apenas água com enérgico e bastante gelo.

B: (Gargalhando). Jura?

A: (Beijando A) Juro!

Narrador: A melhor droga do mundo é permitir-se ser livre!

 

 

MERATOCRACIA 

                                                           

INTERINOS

 

Marlei Albrecht

 

 

Um tribunal no formato de uma grande ratoeira. Cadeiras e mesas dispostas nas laterais repletas de folhas de papel. Outra disposta no centro, vazia. Há uma porta à direita. Cheiro de queijo. Pouca luz. Leidy, Mór, e Crash estão sentados.

 

Leidy: Estão dizendo que o Meritíssimo não virá para a reunião de hoje. (Batendo as unhas longas e negras na mesa). Está despachando em outra toca. (Risos)

 

Mór: E nós aqui soterrados em pilhas de papel; nos afundando em processos (pega um maço de papel e agita no ar). Este aqui já está amarelecido….

 

Leidy: (Espirrando). Amarelo e sem assinatura. O que vocês fazem aqui?

 

Mór: Não posso responder pelos outros. Não sou desse setor, fui transferido para cá antes da minha licença médica.  Estou me adaptando às mudanças, e (põe as mãos no peito) como essa adaptação tem me consumido. Creio que precisarei de outra licença. (Pausa). Tanto papel assim só para criar bicho! (Chia como um rato)

 

Crash: Não me olhem com esses olhos tão grandes e julgadores. Desde que as estagiárias começaram a “organizar” os papéis o esquema aqui ficou terrível. Queriam catalogar tudo, separar por área. Pra que? Passaram décadas empilhando papéis e tudo dava certo. Foi o que me falaram. Eu sou do setor de cima. Diziam que dava certo.

 

Mór: (Alisando o cavanhaque). Certo pra quem?

 

Crash: Pra nós, claro. (Risos)

 

Leidy: Vou pedir um cafezinho para começarmos os trabalhos. (Toca o sino animada)

 

Crash: Trabalhos? Que tipo de trabalho?

 

Leidy: Tipo o trabalho que o setor precisa desenvolver: Analisar processos.

 

Mór: Fico tranquilo. É o trabalho que cabe a esse setor.

 

Crash: É trabalho que nunca deixou de ser feito. (Pausa). Até onde eu tenho conhecimento.

 

Leidy: Estou passando em todos os setores fazendo uma espécie de auditoria. Nesse mês ficarei nesse setor. É um cargo de muita responsabilidade. Eu estudei muito pra isso.

 

 

Entra o copeiro com a bandeja de café, e lentamente serve uma xícara para cada.

 

Mór: (Olhando o copeiro da cabeça aos pés). Você é novo aqui rapaz?

 

Copeiro: Não senhor. Trabalho aqui há alguns meses. Com licença. (Se retira)

 

Mór: Que café horrível! Só pelo cheiro dá pra saber que é indigno.

 

Crash: Eu já solicitei café gourmet.

 

Leidy: O problema nem é o café, digo, não necessariamente. É como se faz o café, é o capricho, o amor. Falo isso por conhecimento de causa. Quando morávamos em Aspen tínhamos uma criada que fazia o melhor café do mundo. E naquela época nem se falava em gourmetização.

 

Mór: (Conformado). É a tal falta de qualificação do mercado, minha querida…

 

Leidy: Esforço é a palavra. Falta esforço. (Levanta-se). Se a pessoa não se esforça para fazer um café, vai se esforçar para que? (Senta.) Quando papai nos mandou para Aspen para estudarmos não foi fácil, não e…

 

Crash: Por favor, conte-nos sobre Aspen.

 

Leidy: (Pigarreando) Tempos difíceis, meu caro. O inglês dos empregados era péssimo! Imagine, toda uma diversidade de imigrantes!  Eu e meus irmãos tivemos que nos adaptar. E ainda, só podíamos esquiar quatro vezes na semana — um desperdício para aquela neve toda.

 

Crash: Certamente, um desperdício e…

 

Mór: Diria que uma privação traumática.

 

Leidy: (Mexendo em papéis). Me custou anos de análise.

 

Mór: Tadinha…. Vou até pedir um outro café.

 

Crash: Um café? (Risos). Mesmo sendo indigno? (Risos)

 

Mór: É meu esforço de cada dia, enquanto espero que chegue a sua encomenda de café gourmet. É uma espécie de utopia. Enquanto a almejo lá no horizonte sigo vivendo.

 

Crash: Isso é um absurdo! Você me responsabilizar pela sua utopia.

 

 

Mór: Fique tranquilo, é uma utopia. Não atravessa a porta. (Gargalha)

 

Leidy: (Abrindo gavetas). Esses processos são da década passada…. Não deveriam estar aqui. Como essas pessoas estão resolvendo as suas vidas? (Vasculhando). Eu faria análise.

 

Crash: Isso eu quero ver: pobre fazendo análise. (Gargalhada)

 

Mór: Eu prefiro pedir um café. (Toca a sineta)

 

Leidy: (Revirando papéis). Tem muito processo aqui. Como resolver isso?

 

Crash: Contratando mais pessoas para esse setor.

 

Leidy: Não há recurso para isso. E pessoas qualificadas estão ficando raras e já estão empregadas.

 

Entra o copeiro. Serve o café.

 

Leidy: (Dirigindo-se para o copeiro). Traga fósforos, por favor. (O copeiro sai.)

 

Crash e Mór olham perplexos para ela.

 

Leidy: Preciso acender um cigarro para pensar melhor. Algum problema?

 

Crash e Mór: Não.

 

O copeiro retorna, acende o cigarro. Ela e o copeiro conversam. Os outros mexem nos papéis. Ela fuma, o copeiro se retira.

 

Leidy: Bem, vamos ao trabalho?

 

Mór: Estávamos aguardando a senhora concluir a conferência com o copeiro. (Risos)

 

Leidy: Ele ainda pode ser considerado novo no setor. (Começa a se balançar na cadeira giratória). Estava lhe explicando como funcionam as coisas por aqui.

 

Crash: E como funcionam? Estou aqui há tanto tempo e ainda não sei. (Gargalha) Brincadeirinha…

 

Mór: E o copeiro antigo que fim levou?

 

Leidy: Foi pego escondendo ‘queijo’ para alguém do alto escalão. Foi preso!

 

Crash: (Com os olhos arregalados). Mas será isso possível?

 

Leidy: (Tirando os óculos). Sim, o vi algemado. Saiu em todos os jornais.

 

Crash: Me refiro ao ato de envolver o alto escalão. (Gesticula com sofrência). Essa história de delação está na moda. E essa gente pobre pode querer se aproveitar da gente.

 

Mór começa a mexer nos papéis. Despenca uma pilha. Começa a juntar.

 

Leidy: (Batendo as unhas na mesa). Algum problema?

 

Mór: Bolor, mofo, obsolescência, sem uso, carcomido, podre, desmazelado.

 

Crash: Renove sua licença médica.

 

Mór: Farei isso imediatamente e com muita competência. Adeus. (Sai)

 

Leidy: Declaro encerrada a minha auditoria! Não será preciso fazer nada onde já não se faz nada. (Sai)

 

Crash: E eu que não sou responsável por esse setor, não serei responsável por esse setor. (Sai)

 

Blecaute. Luz aumentando gradativamente. Copeiro entra, recolhe as xícaras. Olha para as xícaras, olha para a garrafa de café. Serve um café e acende um cigarro. Senta, observa a fumaça que sobe. Bebe um gole de café. De forma confortável dispensa os pés sobre a mesa e põe-se a folhear papéis. Blecaute.

 

***

Uma seleção de peças-paisagens inspiradas no teatro de Gertrude Stein

 

Vanessa Geronimo[3]

 

            A seguir, serão apresentadas três peças de teatro escritas por alunos do Curso de Artes Cênicas da UFSC, baseadas em características do teatro da escritora norte-americana Gertrude Stein (1874-1946). As peças foram escritas durante o estágio que realizei na disciplina de Dramaturgia III do curso e nele foram apresentadas discussões a respeito de teorias do teatro de vanguarda, de Gertrude Stein, seu estilo e estética e características inusitadas que marcaram o início de uma nova maneira de fazer teatro e de ser espectador. Durante as aulas foi possível compreender que as “peças-paisagem” de Stein expõem a linguagem através de sons, repetições de palavras e frases, ressonância e ritmo, onde o visual e o auditivo formam um conjunto de sensações que variam para cada espectador ou leitor. Além disso, foi explicado que o teatro de Stein além de brincar com as palavras, não se preocupa em delimitar personagens nem propor uma ação de maneira tradicional. Ademais, também rompe com a estrutura convencional através da desordem de atos e cenas. Esse é o espírito do teatro pós-dramático, onde a linguagem não tem um direcionamento com início, desenvolvimento e fim, mas apresenta técnicas com jogos de palavras que ao serem expostas ao espectador causam sensações semelhantes às sensações de observar um quadro, uma obra de arte de Picasso, por exemplo.                                                                                 Para a maioria dos alunos esse foi o primeiro contato com essa nova forma de fazer teatro, o que os deixou surpresos e motivados. O resultado do processo de aprendizagem pode ser visualizado nas três peças-paisagens selecionadas para esta antologia, nas quais estão presentes muitas características steinianas, recriadas pelos alunos Kytiane N. Kittel, Renata Leal e Gabriel Salazar:

 

Peça-paisagem de Kytiane N. Kittel
Every Tear Is A Waterfall
Ato I
Cena I

Prisão

Paredes. Paredes paredes paredes. Quatro paredes. Só quatro? Só. Somente. Some. Sumir. Somar. Apenas. Apenas paredes. Paredes. Pa-pa-pa-paredes. Pare-pare-paredes. Para-pare-paredes. Pare-para-paredes. Para parar paredes. Paredes paradas param para paredes. Paredes paradas param paredes paradas que param para parar. Parem para parar paredes paradas. Paredes paradas. Paradas. Peradas. Peras. Espêras. Esperas. Esperas paredes. Esperar paredes. Esperar para paredes. Esperar para parar paredes. Esperar paredes paradas. Esperar paredes. Paredes.

Cena II

Fuga

Fácil.

 

Ninguém disse que seria.

 

Ninguém ninguém disse. Disse que seria.

Disse.       E se dissesse diria que seria.

Ser-ia. Ser-á. Ser-te-á.

Ninguém ninguém disse que seria?

 

Ninguém nunca. Ninguém nunca?! Nunca ninguém nem ninguém. Nunca nem ninguém. Ninguém nunca nem. Nem nunca. Nem nem.

 

Seria? Será!

Se sesse seria sim. Se sesse seria sim. Seria sim.

 

Ser. Ia. Pra onde? Só se sesse. Difícil.

Ato II
Cena I

Sonhos

Sonhei sonhos sonoros.

Sonhei sonhos sentindo serem sons.

Senti sons sonhando serem sereias.

Seria só ser assim?

Seria só ser assim.

Seria só ser assim!

Serei só sonhador?

Será a sereia o ser que cerca os sonhos dos serenos?!

Serenos. Sábios os serenos.

Seres serenos esses sábios.

Sábios são seres.!?

Seres são sábios.!?

Sons são seres.!?

Somos e seremos sim.

Cena II

Paraíso

Uh-uh-uh. Uh-uh-uh-uh-uh. Uhul. Paraíso. Uh-uh-uh. Uh-uh-uh-uh-uh. Uhul.

U paraíso. O paraíso. Ah! Paraíso. Ih! Paraíso. Iiiii paraíso. E paraíso. Eeeee paraíso. EEEEE paraíso. Paraíso. Uh-uh-uh. Paraíso. Uh-uh. Eita! Paraíso. U paraíso. Atah! Paraíso. Paraíso? Paraíso?! Atchim! Paraíso. Ah! Paraíso. Ah-ah-ah paraíso. Ah-ah-atchim paraíso. Aham! Paraíso. Uh-uh-uh. Paraíso Uh. Assim paraíso. Sim paraíso. Isso paraíso. Nisso paraíso. Nilo paraíso. Uh. Paraíso. Uh-uh. Um paraíso. Para cada um um paraíso. Um paraíso para cada um. Uh-uh-uh-uh-uh! Somente Um.

Ato I
Cena III

Encontro/Família

 

 

 

 

 

 

 

 

Encontrei!!!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Peça-paisagem de Renata Leal

 

Pôr-do-Sol Pacífico

 

ATO I (Ou o que está atrás)

 

Há a avenida, há o trânsito, há muitas pessoas, há muito barulho, há um frenético vai-e-vem.

Vai… e… vem… Vem… e vai!

Há o sol que vai! Des-vai!

A noite cai.

O farol acende e o barulho transcende.

Trânsito! Trânsito! Trânsito!

Transito no trânsito!

Transe!

O vento sopra nas árvores da avenida.

A avenida infinita

A avenida é vertical, volúvel, visceral… vagabunda, mas vital!

Há o sol que vai! Des-vai!

A noite cai.

 

 

ATO II (Ou o que está à frente)

 

Há o azul, há o púrpura, há o violeta, há o vermelho, há o laranja, há o amarelo.

Há o sol que vai! Des-vai!

A noite cai.

Há a areia da praia, há o mar, há as pedras, as pedras, as pedras, as pedras… há o barco…

O barco vai! Des-vai!

A noite cai.

Há muito mais à frente do que atrás, mais à frente, mais atrás, frente e atrás. Enfrente e traz.

Traz e enfrente, frente à frente, à frente e atrás,  e atrás, e atrás, e atrás… e à frente.

O pôr-do-sol no Pacífico é pacífico. A paz e eu fico!

 

 

ATO III (Ou o que está dentro)

 

Há a mulher, há uma mochila, há o virar-se de costas para o que está atrás e há o virar-se de frente para o que está à frente.

Há a mulher e o que está dentro dela.

Há uma viagem, há uma margem… há uma margem de erro, há uma margem de medo.

Há um mar, há um mar, há um mar que martela emoções.

O mar, a tela e as lições.

Há um mar. AMAR!

Há a mulher e o que está dentro dela.

Há o sol que vai! Des-vai!

A noite cai.

O medo vai! Des-vai!

A noite cai.

A mulher sou eu. Eu! Eu! Eu! EU?

Eu tu ela elas.

É lastimável a partida.

Há o sol que vai! Des-vai! Vai!

A noite cai.

A mulher fica!

 

 

Peça-paisagem de Gabriel Salazar

 

MARTE ESTÁ EM GUERRA

I – Falho

Parte da arte está a par no ar a te tocar. No ar no ar no ar a tocar o ar impar.

Em pares senhor de Ares senhor de guerra.

Parte da arte está a par de Ares a te tocar.

Em guerra. Impar.

Em pares senhor Ares senhor de guerra. Ares senhor de guerra erra. Ares senhor de guerra guerra.

Ares erra.

Erra Deimos

Erra Phobos

Erra Ênio erra

Erra Nergal guerra

Guerra Tyr erra

Andraste guerra Anat

Astarte erra erra

Belatu-Cadros guerra Camulus Cariocecus erra

Neith erra Neit guerra Rugievit

Onúris Ogum Segomo guerra

Erra Javé guerra

Mangala Zababa Mahrem guerra

Marte

Guerra Huitzlopochtli erra Hadúr

Rudiano erra

E Kéres. erra.

E Smertrios. Guerra guerra.

A pluralidade das crianças erra.                    

 

Em pares. Em par no ar. Impar.

Em todos um. Em ser nenhum.

Em pares um. Em todos nenhum.

Ares em pares. Milhares. Em todos unidades cavalares.

Milhares em guerra. Erra na Terra.

Lado a lado. Todo o fado. Em deidade sem idade. A pluralidade.

Mas a deidade em verdade estará na arte.

Parte da arte está a par no ar a te tocar

Errar. Hesitar. E Arrasar.

E Ares no ar em arte de marte.

Ares no ar em pares em marte na arte

A arte está em guerra

Amar-te é uma guerra que erra na terra

E Enterra. Em. Terra.

Ares em pares tenaz.

Ares em pares em paz.

Em terra vivaz. Em paz tenaz. deus.

E a arte é uma guerra.

Armar-se e erra.

Amar-te é uma guerra. Que erra na terra.

Enterra. Em Terra.

 

Ato – Encontro

Mas Ares em pares em paz.

Ares tenaz. Ares em paz.

Ares Vivaz.

 

Assim sucede deus. Lado a lado e seus.

Sangue seus e meus sangues meus e deus.

Assim sucede deus. Lado a lado e seus.

Sangue seus e meus. Sangues meus e seus.

Em deus.

Sangues de deus em meus e seus.

 

Quem diria que um dia a sorte encontraria a morte.

Quem diria que dia a sorte encontraria uma morte.

Quem dirá um dia que a morte contrariará a sorte.

Quem.

 

Assim sucede deus. Desceu Ares dos céus.

Lado a lado com os seus e meus e seus sangues.

A proclamar, procriar, provocar.

Desceu Ares dos céus a proclamar, procriar, provocar.

A programar lado a lado o fado de todos os homens.

O fado de todos os homens. De todos os semi-deuses.

O fado de todos os deuses. De todos os homem-deuses.

O fado de todos os deuses.

 

A programar. A pluralidade.

Criança que desconhece enquanto Ares desce.

Enquanto cresce e Ares desce. Moldando tece.

E mãos em prece. A programar a prece.

Enquanto Ares cresce e Ares desce.

A criança desconhece. Parece. Perece.

Crianças em prece. Mais mais Ares desce.

Enquanto Ares desce. Ares cresce.

 

E quem diria que um dia a sorte encontraria a morte.

Quem diria que dia a sorte encontraria uma morte.

Quem dirá um dia que a morte contrariará a sorte.

Quem.

 

Ares em pares.

Em paz. Tenaz.

A matar por trás a criança.

A amar a desconfiança.

Ares em pares vivaz.

Em paz.

Sagaz.

 

Ato – Engano

Um, dois, três. Milhares de uma vez.

Tez de fogo. Seis. Milhares outra vez.

Dez. Milhares. Ares em pares.

A matar por trás.

A amar sagaz.

A tramar tenaz.

A matar a paz.

A matar em paz

Amar matar em paz. Paz.

 

Mas é engano

É engano.

Por engano. Profano.

E como não um.

Mas todos. E nenhum.

E milhares. Em algum.

E Ares. E nenhum.

Engano. Incomum.

Todos. E nenhum.

Ares profano. Ato mundano.

Engano.

 

E quem viu este movimento vil

Viu uma loucura hostil. Viu vil.

Quem viu o movimento vil

De um deus senil soar frio

Jorrar seu o sangue anil

E quem viu este movimento vil

Viu uma loucura hostil

Do deus senil de sangue anil. Anil.

Ares profano. Ato mundano.

Ato hostil.

 

Imerge em loucura.

Emerge amargura.

Num acesso de loucura.

Num rebanho. Numa Pintura.

Num acesso de loucura.

Ares na certeza da bravura.

De seu sangue anil em fissura.

De sua vida em morte. Em marte. Tortura.

Sem cura. Fissura Fissura. Fissura.

Em pares senhor de Ares senhor de guerra.

Em pares senhor Ares senhor de guerra.

Ares senhor de guerra perde seus ares. Erra.

Ares senhor de guerra erra.

Ares senhor de guerra guerra. Na terra.

Ares Erra.

Se enterra.

 

[1] Doutoranda em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

[1] Doutoranda em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: giovana_ursini@hotmail.com

[2] Doutoranda no programa de pós-graduação em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina – Orientadora: Prof.ª Dr.ª Dirce Waltrick do amarante. E-mail: adrianevveiga@gmail.com

[3] Doutoranda no programa de pós-graduação em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina – Orientadora: Prof.ª Dr.ª Dirce Waltrick do amarante.