Toda sexta – Vinícius Valcanaia

TODA SEXTA

(um conhaque)

 Vinícius Valcanaia*

 

(Com o perdão de Gertrude Stein, um diálogo pós-dramático infestado de maneirismos etílicos.)

 

Um conhaque.

Abra a garrafa.

Eu abro a garrafa.

Aceito uma dose.

Preciso de uma.

Ou duas.

É o conhaque que você gosta.

E vamos beber.

Perder a razão.

Quem sabe dançar.

Não sei se consigo.

Eu guio você.

Você não consegue.

Estou cambaleante.

Você bebe e fica chato.

Você bebe e fica idiota.

Isso é amor.

Não sei.

Você nunca sabe.

Eu nada sei.

Do amor.

Sim.

Você é um poeta.

Um alquimista.

Mallarmé também era.

Quem.

Mallarmé.

Não conheci.

Nem eu.

Li algo sobre.

Comece com um livro.

Não fale dos livros.

Fale dos quadros.

Minhas criações.

Sim.

Quem dera eu soubesse o que é criação e criador em meus quadros.

Seus quadros.

Desenho firmeza.

E você.

Escrevo loucura.

É fabuloso.

Quando você fala em identificação é fabuloso.

Justo o que eu precisava ouvir.

Sua fala é subjetiva.

Mentira.

Entendo, vem com emoção e atinge a emoção.

Isso é manipular sentimento e palavra durante a escrita.

E você.

Sou inconstante, desenho constância.

Alguns homens vivem apaixonados pela inconstância.

Você é um deles.

Assim eu busco a poesia.

Mais uma dose.

Sim.

Como nos conhecemos.

Em outras vidas.

Na noite da briga.

Você passou por mim.

Etérea você estava lá.

Apenas estava.

De passagem.

Seu olhar, eu conheço de outra vida.

E nessa vida.

Minha alma talvez lembre.

Você é Gertrude.

A mãe do Hamlet.

Não.

A Stein.

Einstein um grande cientista.

Gertrude Stein.

Autora do Toda Tarde.

Um diálogo.

Sim.

Esse na porta da cozinha.

Certamente.

Você vê de fato.

De fato eu vejo.

E converso.

Você passará o dia.

Sim.

Feito passarinho.

Enlouquecendo essa casa.

Com essa pulseira de corações.

Quatro corações.

De quem são os corações.

Dos homens que amei.

Falta um.

O seu.

Você sabe.

O que eu sei não é de você.

Sei que o seu olhar na cozinha é fulminante.

Os cigarros que fumamos no terraço fecham nossas almas em aliança.

As palavras que trocamos no corredor.

Apenas palavras.

Apaixonei-me por essas palavras.

Cuidado.

Minha alma não é sua

Não me preocupo com ela.

Não.

Sua alma é de artista.

Território da loucura alheia.

Penso assim também.

E a arte é um refúgio.

Não um estandarte.

Estão terrivelmente sozinhos.

Os doidos.

Os tristes.

E os poetas.

Uma frase da Hilda.

Hilst.

Claro.

Você percebeu.

Estou lendo o livro.

Tu não te moves de Ti.

O melhor presente dessa vida.

Não é para tanto.

Um livro tolo.

Nenhum livro é tolo.

Todo livro traz consigo a alma de um escritor.

Palavra feito estigma.

Um verbo carne palpável.

Estou aprendendo.

Eu também.

Mostre-me as palavras.

Em troca das cores.

Sim.

Eu me levanto.

Vou ao banheiro.

Quanta educação.

Não vamos sair.

Que tal o terraço.

Depois de outra dose.

O vento é cortante.

Eu protejo você.

Do vento.

De todos.

Um cavalheiro.

Não.

Um bêbado que gosta de poesia.

Outra dose.

Pegue o cobertor.

Conhaque e cobertor.

Ao vento.

No terraço.

Otima ideia.

Arte e poesia.

Unidos no abraço.

Eu sei.

De vez em quando eu acerto uma rima.

 

* Estudante de letras e apaixonado pela arte e pelas palavras. Cinéfilo patológico, até o momento, já assistiu e contabilizou 5.544 filmes em sua bagagem visual.