Transcriação em tradução poética de edição eletrônica trilíngue – Luizete Guimarães Barros

TRANSCRIAÇÃO EM TRADUÇÃO POÉTICA DE EDIÇÃO ELETRÔNICA TRILÍNGUE

 

Luizete Guimarães Barros*

 

“Translation is at best an echo” – George Borrow

Introdução à publicação eletrônica ou de como acessar a edição trilíngue:

O objetivo dessa resenha é convidar o público leitor, interessado no palpitante tema da tradução poética, a visitar uma publicação recente em três línguas: português, francês e espanhol, de autoria de Adalberto de Oliveira Souza.  Trata-se da tradução feita por nós a uma terceira língua – o castelhano, no caso – de um livro de poemas, escrito originalmente em português e francês Enigmas e sensações– Enigmes et sensations, com primeira edição de 1999, que foi republicado, em edição trilíngue, em março de 2016 pela revista eletrônica mexicana La Otra – ver  <http://www.laotrarevista.com/category/la-otra-gaceta/>.

Após acionar o site da revista La Otra, dedicada à poesia, artes visuais e outras artes, o leitor deve buscar pelo nome do poeta, dessa maneira: <http://www.laotrarevista.com/?s=adalberto+de+oliveira+souza>.

Feito isso, encontrará, ao lado da fotografia do poeta, de seu nome e do título em espanhol Enigmas y sensaciones, a declaração do autor sobre o que impulsiona seu trabalho:La traducción como potenciación de lpropio texto poético es el tema obsesivo de los poemas que constituyen, como conjunto, el presente trabajo”.

Esta explicação, que põe em relevo a tradução como obsessão, sugere a inclusão desta resenha em revista acadêmica sobre assuntos didáticos voltados à tradução. E para conhecer a obra do autor em questão, basta clicar sobre a foto que abrirá uma pequena tela com a edição trilíngue que motiva este texto.   Trata-se, portanto, do seguinte endereço da web:<http://www.laotrarevista.com/2016/03/adalberto-de-oliveira-souza/>

E ao visitar esse sítio da internet, está disponibilizado a você, prezado leitor, uma edição trilíngue de poemas em português e francês (em letra preta), e a versão em espanhol (em letra azul).  A tradução nossa, em espanhol e em azul, costuma vir ao lado do texto correspondente em português.

Sobre os fundamentos teóricos do autor-tradutor ou de como o tradutor se faz poeta e criador:

O autor dos poemas realiza um trabalho prático de tradutor, ao apresentar seus poemas em português e francês, em Enigmas e sensações – Enigmes et sensations, de 1999.Adalberto de Oliveira Souza atuou também como professor de língua e literatura francesas na Universidade Estadual de Maringá – UEM – e é autor também de uma investigação sobre o trabalho tradutório, intitulada Cendrars tradutor do Brasil – um estudo da tradução francesa de “A Selva” de Ferreira de Castro, publicada em 1995, pela Editora Anna Blume.

Da contracapa dessa obra, retiramos a nossa afirmação inicial, que se baseia nas palavras do professor Sydnei Barbosa, de que há pouco conhecimento sobre a literatura brasileira fora do Brasil, se confrontado com o número de traduções que obras estrangeiras têm recebido em português. Além dessa citação, há que atestar que essa pesquisa de dissertação de mestrado tem auxiliado professores da disciplina de “tradução”, por trazer um estudo sobre o trabalho específico da tradução francesa feita por Blaise Cendrars da obra em português de Ferreira de Castro. Por essa razão, apresentamos também, neste despretensioso artigo, conceitos que balizam o arcabouço teórico de nosso poeta-tradutor.

Para Adalberto, é preciso compreender a definição do termo “tradução” tendo como ponto de partida sua etimologia. Baseado, principalmente, em teóricos franceses, o autor se vale das palavras de Paul Gadenne, cujo original em francês é copiado depois da tradução ao português, que afirma:

Paul Gadenne conceitua a tradução com um tom poético; ele procura a etimologia da palavra para dar sua definição e acrescenta aí seu sentido metafórico: “Traduzir, no sentido próprio da palavra, é fazer passar de um estado a outro.  Traduzir a vida é, pois, tentar dominar a sua natureza, fazê-la nossa; é tentar dominá-la, apropriando-nos de sua essência. (SOUZA, 1995, p. 20) “Traduire, au sens propre du mot, c´est faire passe dans um état à um autre.  Traduire la vie, c´est donc tenter d´enchanger la nature, de la faire nôtre; c´est essayer de la dominer, en nous appropiant la substance.” (SOUZA, 1995, p. 20 – nota 14)

Dessa forma, vê-se que a palavra tradução adquire um sentido amplo, porque não se refere apenas à tradução em idiomas diferentes, mas abarca a vida como um todo, e toda expressão da natureza, da qual a linguagem é uma parte. Nesse sentido, a tradução compreende as línguas, as linguagens, e os diferentes tipos de manifestação da natureza.

Como se traduz o grito? Como traduzir o choro? Essas questões estão colocadas neste livro, pois Cendrars, como tradutor, quer que seu trabalho dê conta de traduzir os recados mais íntimos, e, para isso, se inspira no renomado tradutor Ernest Hello, sobre o qual Souza tece o seguinte comentário:

Cendrars declara sua orientação no que diz respeito à arte da tradução. Ele considera seu mestre de tradução Ernest Hello (1828 – 1885), um publicista francês católico, que combateu o cientificismo de seu século, propondo o exemplo dos místicos. Suas obras mais conhecidas são Homme (1872) e Contes extraordinaires (1879). Ele fez traduções memoráveis, publicadas depois de sua morte em várias edições; as mais conhecidas são Rusbrock, l´admirablee o Livre de visions et instruction de La bienheureuseAngèle de Foligno.  George Goyau dá a característica de um dos traços da tradução de Hello: “…Tradução que não quer se sujeitar a seguir passo a passo o original, mas que, num frêmito, o reencontra sempre.” (SOUZA, 1995, p. 64) “…traduction qui ne veut pás s´astreindre à suivre pas à pás l´original, mais qui, d´un coup d´aile, Le rejoint toujours.”(SOUZA, 1995, p. 64 – nota 76).

É importante ressaltar que Cendrars, como tradutor, persegue um método que não se calca no cientificismo, nem na atenção a cada palavra por separado. Cendrars, autor francês do século XX, nutre admiração pelo tipo de trabalho desempenhado por Hello, seu antecessor do século XIX. Tradutores de línguas diferentes – Cendrars do português ao francês – , e Hello, do latim ao francês, são artífices da palavra que sabem que seu ofício não se constitui tarefa fácil, motivo pelo qual se declara:

O próprio Ernest Hello precisa, na introdução de sua tradução de Ângela de Foligno, sua ideia sobre tradução: “A tradução é sempre uma obra difícil.  A tradução de uma coisa íntima é uma coisa muito difícil.(…) Eu tentei fazer viver em francês a alma que gritava em latim.  Eu tentei traduzir as lágrimas.” (SOUZA, 1995,p. 54-65) “La traduction est toujours une oeuvre difficile.  La traduction d´une chose intime est une oeuvre três difficile. (…)J´ai essayé de faire vivre em français l´âme qui criait en  latin. J´essayé de traduire lês larmes.” (SOUZA, 1995, p. 65 – nota 77)

Neste fragmento, o tradutor confessa que traduzir “coisa íntima” é tarefa difícil porque há que dar conta das mínimas nuanças. Como num desabafo, o tradutor revela sua dificuldade.  Hello, como tradutor de obras referentes à vida dos santos católicos, quer que seu trabalho chegue a traduzir as lágrimas e a alma da santa.  Esse é, portanto, seu ideal de tradução, isto é, traduzir o intraduzível.  Intraduzível é “coisa íntima”, e “coisa íntima” pode também ser entendida, a meu ver, como poesia.

Apesar da dificuldade de se traduzir o texto literário, em geral, e a poesia, em específico, temos conhecido a literatura em prosa e verso, escrita em diferentes línguas estrangeiras, graças à publicação de traduções.Ela, a tradução literária, nutre os estudos de literatura comparada.   A tradução é recurso indispensável à literatura comparada. Segundo Martius-François Guyard, há três tipos de tradução, e numa avaliação apreciativa sobre os tradutores.  Esse teórico diz que:

os mais medíocres refletem o gosto de um grupo ou de uma época; os mais fiéis contribuem para uma melhor inteligência das culturas estrangeiras; outros, enfim, verdadeiros criadores, transpõem e transmutam a obra que é um pretexto para eles.” (SOUZA, 1995, p. 35) “Le plus medíocres reflètent Le goût d´um groupe ou d´une époque; les plus fidèles contribuent à une meilleure intelligence dês cultures étrangères; d´autres enfin, vrais créateurs, transposent et transmuent l´oeuvre qui leur est pretexte”. (SOUZA, 1995, p. 36 – nota 28) 

O texto anterior avalia, portanto, o trabalho de tradutores, qualificando como inferiores os que traduzem fielmente, e como superiores os que criam a partir de seu pretexto.  Essa parece ser, portanto, a visão teórica do autor francês compartida pelo professor brasileiro no seu trabalho como tradutor poético, motivo que suscita este artigo e a intenção ao abordar nossa prática na tradução dos poemas da edição trilíngue.

Tradução poética:

Cumpre frisar que é tal o interesse do autor na tradução de poesia que esse parece ser seu material discursivo. Isto é, Oliveira Souza procura tecer o seu discurso a partir dos desafios impostos pela tradução poética entre línguas. E no jogo da sonoridade, cria e recria versos buscando entender a poeticidade em cada um dos idiomas com que lida. E a lida de poeta é alcançada devido ao fato de que esse poeta conhece os meandros do tradutor. E, por sua vez, o tradutor conhece e faz as vezes também de poeta.

Escrever-se e traduzir-se a si mesmo, esses dois ofícios competem ao nosso autor.  Ressaltamos o fato de que nos parece raro, em edições bilíngues, que um autor figure como tradutor de si mesmo. Geralmente, o que acontece é que um poeta renomado, devido ao interesse editorial, passe a ser traduzido em uma determinada língua por outra pessoa.  Isto é, autor e tradutor, via de regra, não coincidem.

A edição trilíngue em três línguas neolatinas nasce de uma edição bilíngue, razão para que os poemas se apresentem em duas versões, dado o interesse do seu autor na perseguição da expressão do mesmo conteúdo poético de acordo com a duplicidade linguística.  Destacamos a grande preocupação do autor de ser o autor e o tradutor de si mesmo, desempenhando, portanto, as duas funções: de poeta, primeira e basicamente, e de tradutor de poesia, concomitantemente.

Isso posto, antes de entrar nos motivos que nos impulsionam a comentar a produção poética em sua versão ao castelhano, devemos comentar a apresentação do texto original.

Edição bilíngue: português/francês

Ainda que o texto original esteja escrito em duas línguas neolatinas – portuguêse francês -, não podemos afirmar que o poeta brasileiro, falante de português como sua língua materna, haja composto em português, primeiramente, a versão dos dezessete poemas curtos que compõem esta coletânea de vinte e seis páginas.

Dizemos isso porque, normalmente, as edições bilíngues costumam trazer o poema em sua língua original, seguido, na página ao lado, pela versão na língua estrangeira. Tal disposição no papel parece conferir à obra original primazia, em termos da originalidade e autoria, além de datação, no sentido de que a versão na língua que aparece do lado esquerdo costuma ser temporalmente anterior à versão colocada ao lado direito do livro.  Desta maneira, as páginas pares trazem a versão do autor, cabendo às ímpares a versão do tradutor, permitindo assim a comparação entre original e tradução. E poderíamos citar inúmeros livros com tal apresentação, mas nos limitamos a dar apenas um exemplo de outra tradução que segue tal paginação.   Trata-se da versão ao português de poesia em língua castelhana de poetas cubanos, reunida na obra Vinte poetas cubanos do século XX, cuja referência segue ao final.

Essa diagramação que apresenta o texto-original ao lado da tradução facilita o cotejo e não costuma aparecer apenas em obras poéticas. Textos em prosa, também, soem apresentar tal disposição, que facilita a leitura e a comparação que pode atestar a fidelidade da tradução e a adequação entre o conteúdo dos textos. À guisa de comparação, damos um exemplo recente de obra literária em prosa que segue esta paginação. Trata-se da edição bilíngue em espanhol e português do livro da escritora paraguaia Susy Delgado, traduzido por Weslei Roberto Candido, publicado em 2015 por uma editora do Paraguai, cuja indicação segue nas referências finais.

Outro exemplo de livro cuja diagramação dos textos em prosa permite fácil cotejo é a obra teórica de Adalberto.  A partir da segunda parte de sua obra teórica sobre tradução, Oliveira Souza apresenta na coluna à esquerda o original de Ferreira de Castro em português, ao lado da coluna à direita com a versão francesa de Cendrars. Ambas versões figuram na mesma página do livro. São inúmeros os dados de fragmentos de texto com essa configuração gráfica (ver SOUZA, 1995, p. 107 a 178).

Voltando à obra poética, relembramos que a edição eletrônica em questão não obedece a nenhum desses casos de organização espacial, o que dificulta a leitura comparativa entre idiomas.  Esse fato parece atender à intenção deliberada de não só dificultar o cotejo de textos, como também de demonstrar a autonomia do poema na língua em que está escrito.  E tal disposição, que aparece na edição da internet da revista La Otra, coincide com a edição original, isto é, a da edição bilíngue de 1999 em português e francês.

E já que você, atento leitor, iniciou sua consulta ao texto da internet, guiado pelas nossas instruções de leitura, deve ter observado como é difícil a visualização deste material bibliográfico. Reconhecemos e lamentamos a disposição gráfica precária da revista mexicana.  O tamanho pequeno da letra obriga a fazer zoom constante, e isto dificulta a leitura.   Esta dificuldade nos faz pensar em republicar, futuramente, os poemas em três línguas.  Por ora, comentamos, no entanto, essa edição de vinte e seis páginas dizendo que ela não obedece a certas convenções gráficas tradicionais por guiar-se por propósitos precisos.  É tal a liberdade do autor – e do tradutor, por extensão, – que essa publicação apresenta os poemas dispostos aleatoriamente.

Edição trilíngue: português/francês e espanhol

As edições poéticas de autores brasileiros costumam trazer o português, primeiramente, seguido da(s) língua(s) estrangeira(s) da tradução.  No caso desta edição em três línguas neolatinas, só a versão espanhola, grafada em azul, não é de autoria de Oliveira Souza.  Nessa obra da revista La Otra, a ordem de priorizar o texto em português, colocando-o anteriormente aos demais,é encontrada em quatro poemas do livro, a saber: “Saudade” – p. 5 em português e espanhol e p. 9 em francês; “Conversa” – p. 10-11 em português e espanhol e p. 14 em francês; “Itinerário” – p. 20 – em português e espanhol e p. 23 em francês; e “A árvore siamesa” – p. 19 em português e espanhol e p. 21 em francês.  Três poemas apresentam a ordem inversa, isto é, expõe-se primeiro o francês e depois as outras versões. São eles: “Cotidiano” – p. 21-22 em francês, e p. 23 – português e castelhano; “Existência” – p.16 – francês – p. 17 – 18 – espanhol e português; e “relógio” – p. 12 – francês e p. 14-15 em espanhol e português.

Como professor de francês e tendo vivido na França e visitado esse país diversas vezes, a língua estrangeira é material exclusivo de dois poemas. “Le déserteur” p. 7 – “Explosion” – p. 18, que não se apresentam em traduções nem em português nem em espanhol. Há apenas um poema em castelhano que foi vertido a partir do francês – “Le poème” – p. 17 – em francês e espanhol.

A aparente desordem na sequência da apresentação dos poemas revela uma intenção: o objetivo de não priorizar uma das línguas, nem de apresentar os poemas de acordo com a data de sua criação.  Essa disposição visa marcar a autonomia do criador, que confecciona sua obra a partir da liberdade não só poética, mas também e principalmente da liberdade tradutória.

Transcriação em edição trilíngue: 

O fato de dizermos que a obra poética de Adalberto de Oliveira Souza se pauta na liberdade de expressão poética nos idiomas em que está escrita nos permite revisitar o conceito de “transcriação” de Haroldo de Campos.  Souza, como poeta, parece compreender tal conceito, não pela maneira limitada de que o poema deve dizer o que foi dito na língua-original.

Antes de havermos traduzido ao castelhano os poemas em questão, pensávamos como Thelma Médici Nóbrega (2006) sobre esse conceito dos irmãos Campos. Para nós, “transcriação”  parecia ser “um conceito de difícil definição”. (NÓBREGA, 2006, p. 251)

A experiência como tradutora, ou melhor, o trabalho de termos conhecido alguém que exerce o ofício de tradutor de poesia (ou melhor, de “transcriador”) nos possibilita compreender o difícil conceito haroldiano de “transcriação” e tentar exemplificá-lo por meio de alguns dos fragmentos poéticos da obra em análise.

Ainda que Oliveira Souza, como tradutor, respeite o conteúdo original, ele parece saber, na sua transposição linguística, que essa é apenas uma das funções da tradução.  A outra, tão importante quanto a primeira, diz respeito ao caráter formal, isto é, ao respeito aos recursos poéticos peculiares à tradição literária de cada língua.

Adalberto compreende que há que dizer o que foi dito originalmente numa primeira língua – essa é uma das funções da tradução, – sem perder de vista, no entanto, os aspectos estéticos que caracterizam cada um dos idiomas.

Dou como primeiro exemplo dessa fidelidade textual aliada à busca do efeito poético, um poema sem título apresentado, primeiramente, em francês, que diz: “Les aiguilles de l´horloge/ retouchent Le coeur,/elles font revivre Le vers/ que blesse La chair.” (SOUZA, 2016, p. 12)

Tal poema desafia o tradutor por apresentar uma cadência, obtida graças à repetição das vogais longas do final dos versos “coeur/vers/chair”.  O ritmo das badaladas do relógio conseguidas graças ao isomorfismo do final dos versos franceses, não se mostra em português.  As páginas catorze e quinze trazem a tradução: “Os ponteiros / retocam o cerne, / revivem o verme / que fere a carne.” (SOUZA, 2016, p. 14-15)

Dessa forma, a cadência do relógio não aparece de maneira tão sincopada em português, no entanto, há a ressonância dos erres no começo e final dos versos.  A criatividade de descobrir o verme como cerne da carne presta criatividade à versão de um poema que trata da medida do tempo, cuja extensão pessoal culmina com a morte.  Graças à homofonia em francês de “verso/ verme”, se chega à concepção inovadora. A poeticidade em português surge, portanto, graças à descoberta vocabular francesa, e o que o poema perde em sonoridade, ganha pela inusitada reunião de elementos léxicos, na nossa opinião.

E devemos agradecer ao poeta bilíngue Adalberto de Oliveira Souza a possibilidade de alargar nossa compreensão de um conceito tão útil à história da tradução literária: a transcriação.  Oliveira Souza nos faz ampliar o conceito de tradução de poesia, através de sua obra poética em português-francês. E sirvo-me de outro exemplo poético de Adalberto para especificar, outra vez, o conceito de “transcriação” dos irmãos Campos, e justificar a nossa tradução ao castelhano.

Refiro-me à parte final do poema “Conversa”, que diz “O canto de tua boca/ dizia alguma coisa./ Os dois cantos / de minha boca / respondiam.//Percebia a tua ausência. ./Ainda assim,/nos apreendemos.” (SOUZA, 2016, p. 10), que tem a versão francesa, como“Un coin de ta bouche / disait quelque chose. / Les deux coins / de ma bouche / répondaient. //Je me rendais compte / de son absence, / quand même, / nous nous sommes appris.”(SOUZA, 2016, p. 14)

Tais versos poderiam traduzir-se, em castelhano, como: “Un canto de tu boca / decía algo. / Los dos cantos / de mi boca / contestaban. // Me percataba de tu ausencia./Sin embargo /nos aprehendemos.” Caso nossa preocupação maior fosse priorizar a representação das ideias dos versos em questão, pararíamos nossa versão neste estágio.

No entanto, em atenção à elasticidade do conceito haroldiano, vimos “o significado, o parâmetro semântico” como “apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora”, e optamos pela “transcriação”, isto é, “o avesso da chamada tradução literal” (CAMPOS, 2010, p. 35).

Quem visitar o site da revista mexicana de Coyoacán, verá que optamos pela repetição sonora, em: “Captaba tu ausencia./ Y sin embargo /nos capturábamos.” (SOUZA, 2016, p. 10-11)

Por entender que tais recursos poéticos podem ser encontrados na obra bilíngue do poeta de Maringá, nos valemos de sua concepção de tradução e traduzimos também, de forma libertária, os seus dezessete poemas ao castelhano, dos quais apresentamos esses exemplos aos leitores do presente artigo.

Considerações finais:

O trabalho de apreciação das traduções é indispensável aos estudos da tradução e ao próprio tradutor que almeja atingir certo grau de perfeição.  Esse artigo busca entrelaçar a pesquisa teórica de Oliveira Souza a seu trabalho como poeta em português e francês  – como exemplo de um primeiro estágio de transcriação -, e num segundo estágio apresenta o nosso exercício em espanhol da tradução poética a partir dessas duas línguas.

Por meio de dois poemas, exemplificamos nossa concepção da tradução como recriação, inspirados também pelo comentário elogioso da dissertação de mestrado quando diz, sobre a tradução ao português de Verlaine:

Neste momento nos lembramos do comentário elogioso que o poeta Manuel Bandeira escreveu para a segunda edição de Festas galantes, de Verlaine, tradução de Onestaldo de Pennafort:“A tradução de um poema é, afinal de contas, uma recriação.  Assim que ela é total e perfeita quando sai fiel ao poeta traduzido e fiel ao poeta tradutor; quando se pode dizer, como neste caso das Festas Galantes: Isto é Verlaine! e ao mesmo tempo: Isto é Onestaldo!”. (SOUZA, 1995, p. 130)

Ao estudar o trabalho de Cendrars como tradutor em sua pesquisa de mestrado, Adalberto de Oliveira Souza se vale de conceitos teóricos de vários autores, inclusive do propalado conceito dos irmãos Campos de transcriação, que ele comenta da seguinte maneira:

Haroldo de Campos dá à obra traduzida não uma autonomia em relação ao original, mas uma equivalência. Esta obra, uma vez “transcriada” (como ele propõe), deverá estar dentro do campo do possível do idioma, do tempo e do espaço em que foi traduzida.  Desta forma, o tradutor não fica abafado, nem diminuído, pelo autor original.  Para ele, a atividade da tradução deve partir, primeiramente, de uma postura crítica relacionada com a criação literária. (SOUZA, 1995, p. 138)

E com essas palavras finalizamos este artigo, acreditando havermos oferecido elementos do arsenal teórico que possibilitem o confronto com exemplos práticos da tradução poética nas três línguas neolatinas. Isso habilita que o prezado leitor do material veiculado em La Otra possa chegar às suas conclusões sobre o trabalho dos tradutores e poetas aí apresentados.

Bibliografia:

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2010.

DELGADO, Susy. La sangre florescida/ O sangue florescido. Edición bilíngüe. Traducción al portugués de Weslei Roberto Candido.  Asunción – Paraguay: Editorial Arandurá, 2015.

LEMUS, Vicente López.(seleção, prefácio e notas)  Vinte poetas cubanos do século XX. Tradução espanhol-português: Alai Garcia Diniz, Luizete Guimarães Barros. Florianópolis: Editora da UFSC, 1994.

NÓBREGA, Thelma Médici. Transcriação e hiperfidelidade. Cadernos de Literatura em Tradução. São Paulo, n. 7, p. 249-255, 2006.

<www.revistas.usp.br/clt/article/download/49417/53490> acesso 28/1/2017.

SOUZA, Adalberto de Oliveira. Cendrars tradutor do Brasil – um estudo da tradução francesa de “A Selva” de Ferreira de Castro.São Paulo: Anna Blume, 1995.

SOUZA, Adalberto de Oliveira. Enigmas e sensações / Enigmes et sensations / Enigmas y sensaciones. Revista La Otra. Coyoacán – México, año 8, N° 106, febrero de 2016. Disponível em: <http://www.laotrarevista.com/?s=adalberto+de+oliveira+souza>

Acesso: 28/1/2017 (Tradução do português-francês ao castelhano de Luizete Guimarães Barros – Rafael CamorlingaAlcaraz)

 

*Professora na Universidade Estadual de Maringá