Cesura do ente em “Pátio”, de Glauber Rocha – Donny Correia

CESURA DO ENTE EM PÁTIO, DE GLAUBER ROCHA

Donny Correia*

 

 

A carne se rompe em infinitésimas partículas frente a uma natureza que despreza os seres viventes. Os entes que procuram se situar numa natureza aleatória.

No pátio, tabuleiro, mirante, o ente rompe-se, fragmenta-se, atomiza-se num yin yang doloroso como o processo do parto vivido pela criança arremessada de encontro com um ser natural que achaca as melhores expectativas de um existir na sobriedade.

Filme pouco abordado, Pátio, de Glauber Rocha é citado como uma obra experimental juvenil. Realizado em 1959, com uma câmera semiprofissional, o curta de 12 minutos é lembrado como exercício formal, filme tese, experiência de forma menos conteúdo, cerebralismo eisensteiniano, arte concreta na tela. Busco, aqui, um sentido no conteúdo contra sua forma. A montagem do choque servindo ao doutrinamento do intelecto de um espectador exasperado, guarda em suas vestes internas um profundo sentimento de mundo, de ser, de unidade rompida. Uma distopia travestida de montagem dialética.

Glauber, um garoto à época, deixou vazar por entre as tramas do subconsciente um dissertação sobre o ser expurgado para um mundo dado no qual passamos alguns anos em busca de uma organização pouco cartesiana. Seu pátio é preciso, mas se debate contra o mundo natural. Um mundo construído em luta franca contra um cenário natural, arbitrário, dado. Entre o perfeito enquadramento que divide a tela ao meio em que na parte inferior vemos o tabuleiro, exato e preciso, e na parte superior revelam-se folhas de palmeiras ao vento, está o casal que é uno, que se biparte, que vai se hemafroditizar num coito balé para nada fecundar.

O jovem compositor de imagens nos revela o ser, nos põe de frente com a fissura do ser. Um espírito errante e atormentado, que vaga a esmo na plataforma de uma segurança apenas pensada. O espírito vaga pelas janelas de nosso olhar, em busca de uma comunicação com o mundo para além da película. Glauber imprime no exercício formal uma fratura do espírito. Homem e mulher como um só ente desfeito. Um mundo desvelado. Mas Kierkegaard já pronunciava:

O homem é espírito. Mas o que é o espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? Ou eu é uma revelação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheia a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é uma relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. (KIERKEGAARD, 1979, p. 313)

 

Em Pátio, o ser, o eu, apresenta-se como ente, como algo estabelecido e pairante num mundo constituído. O personagem de Sólon Batista sente a cimitarra de um habitar o mundo, vendo-se extirpado da porção yang de si, na figura de Helena Ignez.

Quando ambos entram em cena, numa metafísica apocalíptica que revela o ente e os seres no ser, o que temos é a exata geometria do quadro posta de maneira precisa: como dito, a natureza onipotente acima; o tabuleiro forjado pela lógica do homem, abaixo. Ao centro, e na fronteira de dois estados, a moeda de troca em seus dois lados, ele e ela, em vias de cesura.

 

Mas quando rasgo de mim e extirpo a outra metade, o devido revide de uma natureza impenetrável e incontestável se faz matéria. Entre sons concretos, desconexos, invertidos, o celuloide nos abduz para uma dimensão estabelecida, imutável. Nesta dimensão sou um sujeito uno. À minha volta, duas camadas de forja se entrelaçam. É um nó de linearidades que se fragmentam quando a corda se puxa. Na tensão das vibras desta corda, rompe-se o sentido de unidade e os corpos partem-se. No partir-se, há um passeio virtual do olho por sobre o tabuleiro onde os sapatos do yin e do yang marcam as casas ocupadas dentro de um mundo dado, não requisitado. Os quadrados brancos e pretos oferecem uma opção de certa organização, porto seguro de espíritos primários, mas ilusória no pátio glauberiano. Não por acaso, os sons desorganizam a ordem pré-requisitada e plantam a semente que floresce na ponte que liga o que vemos e aquilo que nos vê num exercício formal transcendental.

 

Sabemos que aquele que olha não vê um caos, mas coisas, de tal modo que entre o corpo e a coisa, entre o que vê e o que é visto, há tanta harmonia nas relações que se torna praticamente impossível dizer quem comanda a visão: se as coisas, se o olho. (FRAYZE-PEREIRA, 2006, p. 173)

Sabemos que aquele que olha não vê um caos, mas coisas, de tal modo que entre o corpo e a coisa, entre o que vê e o que é visto, há tanta harmonia nas relações que se torna praticamente impossível dizer quem comanda a visão: se as coisas, se o olho. (FRAYZE-PEREIRA, 2006, p. 173)

 

A flutuação do olhar ao encontro do ser e do ente está presente na obra consagrada do cineasta desde Barravento, na personagem que sai de seu ambiente para conhecer o mundo e trazer a palavra de volta à caverna de Platão, no cangaceiro de duas cabeças no monólogo dialogado a partir de falta de recursos que resultou na solução do celerado uno em Lampião e Corisco, na contradição do poeta cindido entre o populismo e os bons costumes, no dragão lunar contra São Jorge mundano e eleito entre os paupérrimos de Jardim da Piranhas. Quer dizer, o yin e o yang está presente na obra de Glauber como tatuagem na carne de um paramundo que se dá ao espectador qual radiografia inversa de um mundo contrário e desdito.

No pátio de Gauber, confunde-nos o cineasta com seus peões no tabuleiro opondo-se à natureza imperativa, e a dor dos personagens de Sólon e Helena ao serem separados, dançam nas casas do jogo em busca de do coito que não desemboque numa terceira vida, mas que os una de regresso.

A questão do ser uno que se parte em dois e se vê exposto no tabuleiro contra uma natureza anterior me mostra uma metafísica fílmica que revela muito mais o conteúdo do que a forma. Se bem que a forma revela uma composição visual que necessariamente alude ao conteúdo. E eis na retroalimentação forma X conteúdo que a fenomenologia no filme se revela ao espectador.

Este passeio da visualidade por fotogramas congelados, superpostos, de maneiras que componham um discurso concatenado a partir do choque, faz de Pátio um espelho cristalizado de um rompimento com a lógica humana. Nos foi dada uma natureza de estabilidade questionável. Nesta natureza, o mal-estar do ente desfila e destila sua perfeita imperfeição em cada folha de palmeira. Resta ao seu criador operar no material bruto e oferecer possibilidades lineares a um universo sem lógica, filmado por lentes que ensaiam uma resposta linguisticamente aceitável.

 

 

 

Ao encadear imagens intermitentes o cineasta atua com seu espectador tal qual um domador de feras, que precisa condicionar seu animal para responder a um estímulo padrão, a partir de suas instruções. Por isso, no curta que nos surge qual aparição, há o choque de Eisenstein na intermitência de Sólon, o tabuleiro, o mar, as palmeiras e Helena. Decomposição kinofenomenológica de um só ente, o ôntico do e no ente.

Não cabe a mim escandir o sentido da montagem cinematográfica neste ensaio, pois que a técnica nada representa aqui além de um meio mundano de fazer a ligadura entre a ontologia per se e a tradução visual.

A técnica pouco representa na interpretação que proponho, já que a montagem serve apenas a um exercício formal, donde o conteúdo fica alijado de qualquer preponderância. Ao contrário, proponho um protagonismo do sentido posto à mesa, nu e exposto exatamente pela forma, que trai seu sentido maior ao abrir corredores a um sentido não óbvio, porém inevitável.

Fato consumado: a intermitência da montagem sacramenta a separação do homem e seu meio através do olhar, que passa a pairar sobre as coisas e passa a buscar uma organização para cada uma delas.

Se quisesse me fazer raso, diria que tratamos de uma questão sensorial, mas cinema não é simplesmente sensorial e qualquer um que assim o trate, estará incorrendo em deslize primário e crasso. Nem mesmo os dadaístas esperavam uma leitura sensorial do cinema. Nem mesmo os surrealistas desejavam uma abordagem tão simplória. Qualquer redução de forma e conteúdo executada à custa de uma percepção sensorial é falácia. No mínimo inépcia para com a interpretabilidade da obra de arte. Longe de reduzir a questão do sinestésico, prefiro navegar por mares sinérgicos.

[…] os aspectos sensoriais de uma coisa constituem conjuntamente uma mesma coisa, como o olhar, o tato e todos os outros sentidos são conjuntamente os poderes de um mesmo  corpo integrado em uma única ação. Em suma: os sentidos se comunicam. E, paradoxalmente, isto ocorre porque o corpo é uno. Não porque seja uma soma de órgãos justapostos, mas porque é um sistema sinergético. (FRAYZE-PEREIRA, 2006, p. 177)

 

Eis por quê não vale a escrita pensar somente no sinestésico, de sorte que Pátio quer oferecer uma descrição visual, metafísica, suspensa de uma unidade desfeita, em que partículas se espalham e buscam se recompor pelo eixo do entendimento e reorganização.

Trata-se de uma proposta metafórica de assimilar o mal-estar do mundo revelado e em Freud conhecemos este mal-estar que advém do a) contato com o mundo exterior e suas especificidades; b) contato com o outro, com o ego do outro em expansão, tanto quanto o nosso está; c) contato com nós mesmos, nossas contradições e idiossincrasias.

Plano a plano, Glauber nos dá uma demonstração de um mal-estar polimorfo, exaustivo, irrefutável e impossível à fuga.

Freud examina uma situação em que a fuga mais eficaz da realidade que causa mal-estar seria a intoxicação. No curta de Glauber, no entanto, parece haver uma tentativa de fuga por meio do sexo, mas um sexo pesaroso, convulsivo, coreografado na improvisação de uma dança combalida sobre um tabuleiro que imprime o signo da exatidão na pele dos inexatos.

Ao som tropicalista, jazzístico, ruidoso e alquebrado, Helena e Sólon tentam obter prazer de algo desconhecido ao senso consciente. Tocam-se e chegam a uma pressuposta união, mas o coito não parece se concluir na disjunção corpórea. O que resta desta tentativa são sapatos, o artificial, o alicerce confeccionado na exatidão da indústria, colocados nas casas do tabuleiro.

 

 

O coito no Pátio é um desajeitado e miserável recalque das relações de poder disputado contra a razão e a natureza. Uma natureza já inegavelmente fora do contrato almejado pela fatura humana. É um coito que tenta, ao desespero, fecundar as correias do racional, ou do instinto de racionalidade.

A prova da falha última repousa na urina despejada na planta. Não uma urina de quem refestelara-se no gozo, mas a urina de quem sente a impotência após grande esforço para consumar e ser consumado.

Glauber Rocha constrói um sexo fadado ao fracasso desde o momento em que o mundo exterior, fraturado, irrompe-se de encontro ao mero joguete inconsolável nas figuras do casal falível. O casal espelho da cena final de Um cão andaluz, que, na primavera, perece semi-sepultado na areia da praia, sob a mesma arbitrariedade de um mundo desfeito, cindido.

Os corpos se retiram, indiferentes consigo e com o outro. Cabisbaixos, conformados (?), subindo uma escada que não parece levar a lugar algum, ou a câmera amadora, ainda, intencionalmente prefere não mostrar, já que na decomposição do ente e do ser, não importa mais buscar portas de saída. Serão apenas entradas para novas camadas labirínticas do não-ser em vórtice.

 

* poeta e cineasta. Graduado em Letras – Tradutor e Intérprete pela UNIBERO, e Mestre e Doutorando em Estética e História da Arte pela USP. Atualmente é coordenador de programação cultural da Casa Guilherme de Almeida, em São Paulo.