Nicanor Parra no Brasil? Lido & traduzido! – Mary Anne Warken

Nicanor Parra no Brasil?  Lido & traduzido!

Mary Anne Warken[1]

Nicanor Parra por Elys Regina Zils

A tradução é uma forma de leitura, um caminho para aproximação, é hospitalidade para o alheio. É na leitura de uma tradução que muitas vezes construímos formas de pensar e construir percepções do que acreditamos ser nosso. Podemos assim refletir sobre a linguagem poética em outro idioma, conectar com a nossa própria forma de ver o mundo, em um processo estreitamente ligado com a experiência que é ler. Na leitura do poema, no texto traduzido, lemos mundos e temos novas formas de construí-los, sejam eles reais ou imaginários. O que talvez foi pensado para um contexto que não é o que consideramos nosso, pode servir de ponto de partida para enfrentar e questionar o que vemos e a forma como queremos ver.

Nicanor Parra (1914-2018) instalou-se com sua “montanha russa” no Brasil, e Cecília Meireles já na década de 40, no jornal A manhã, havia anunciado e destacado o talento poético de Parra. Em uma leitura crítica minuciosa e elogiosa apresentou aos leitores e leitoras de um jornal brasileiro poemas de Parra no idioma espanhol, sem tradução ao português. Os poemas comentados por Meireles haviam sido publicados no Chile na década de 30, de certa forma, anunciavam a percepção do poético do homem que se autonomeou antipoeta, quando publicou a obra Poemas y Antipoemas em 1954.

No dia 1 de setembro de 1943, Cecília Meireles escreve sobre sua percepção do poeta na época: “É um poeta autêntico esse Nicanor Parra, que não tem nem 30 anos. Afirma-se em tudo que escreve, seja qual for o assunto, seja qual for a forma. Em todos os aspectos, está ele mesmo, e está sempre uma novidade” (MEIRELES, 1943, p. 6).[2]

O certo é que, ao longo de décadas, os poemas de Parra foram lidos no Brasil no idioma espanhol. Alguns foram traduzidos ao português através de traduções acadêmicas, outros através de traduções amadoras[3] — no melhor sentido que pode ter essa palavra. Ensaios de poemas de Parra traduzidos ao português circulavam pelas universidades brasileiras na década de 80, e até o momento, muitos blogs e sites apresentam diversas leituras e traduções de versos de Parra ao português. Em 2009, inclusive, tivemos uma edição de antologia traduzida ao português, assinada pelo poeta Carlos Nejar, disponível online no site da Academia Brasileira de Letras[4]. Essa publicação apresentou os poemas de Parra no idioma espanhol, e depois, nessa ordem de leitura, a tradução ao português.

Apesar de ser possível verificar algumas pistas de que Nicanor Parra é um autor que foi e é lido no Brasil faz algum tempo — e que nos bastidores foi traduzido e comentado — até a data do seu falecimento não tínhamos uma edição comercial de tradução de poemas seus em nosso país. Essa ausência já havia sido apontada pelo poeta Ricardo Aleixo, quem havia posto Nicanor Parra na lista de autores que deveriam ser traduzidos no Brasil.  Para saciar a sede dos leitores de poemas e antipoemas de Parra, no segundo semestre de 2018 foi publicada a antologia Só para maiores de cem anos – antologia (anti) poética, com a tradução ao português assinada por Joana Barrossi[5] e Cide Piquet.[6]

Só para maiores de cem anos, da Editora 34[7], se destaca por ser a primeira grande antologia de Parra publicada no Brasil. A orelha da capa, assinada por Alberto Martins[8], comenta a importância de Parra no contexto literário internacional e faz enlaces com os poetas brasileiros Oswald de Andrade (1890-1954) e Murilo Mendes (1901-1975). Parra é considerado pela crítica um dos poetas mais importantes do século XX, patenteou a antipoesia — uma poesia voltada para a linguagem falada na qual encontramos doses de humor e sarcasmos junto com grandes questões ontológicas. Em seus versos podemos encontrar a demolição das certezas e encontramos inserções literais de fragmentos de grandes obras, assim como dialogismos diversos.

A antologia Só para maiores de cem anos abre com uma nota dos tradutores, texto de cinco páginas, no qual em tom de conversa comentam o projeto de tradução. Nas palavras de Barossi e Piquet:

[…] percorremos sua obra em busca dos seus poemas mais populares, marcantes ou representativos, e também, naturalmente, guiados por nossas predileções pessoais. Além disso, levou-se em conta ainda o critério da tradutibilidade, evitando textos excessivamente marcados por expressões idiomáticas, regionalismos, línguas e dialetos locais ou centrados em dados culturais, acontecimentos e eventos históricos muito específicos. (BAROSSI; PIQUET, 2018, p. 10)

A nota dos tradutores finaliza com agradecimentos aos primeiros leitores do trabalho. A edição bilíngue traz a grata surpresa de apresentar primeiramente a tradução ao português, oferecendo ao leitor da obra deparar-se de imediato com os poemas em português. Inclusive o tamanho da letra do texto traduzido é maior, o espaço na página é amigável e acolhe o leitor. Não encontramos uma leitura comparativa, com o texto espanhol, ao lado tradução. O que temos é um encontro com a tradução já no início do livro. Os 75 poemas de Parra selecionados para essa antologia, que tem 286 páginas, são de diferentes livros publicados no idioma espanhol. Seleção que incluiu “Manifesto” em que o eu poético se pronuncia em verso: “os poetas baixaram do Olimpo”. A tradução de Barossi e Piquet demonstra dedicação e talento de tradutores que claramente são leitores de Parra, e certamente também são leitores de Roberto Bolaño e Alejandro Zambra, herdeiros de Parra.

O título da antologia Só para maiores de cem anos replica o nome de um poema publicado na obra Versos de Salão (1962) e desafia o leitor, será que já temos maturidade para ler Nicanor Parra no português brasileiro? Certamente sim, afinal, podemos ler mais da sua obra através da tradução, só devemos nos entregar a essa experiência para ver como opera o poema de Nicanor Parra no nosso idioma e como pode desestabilizar leitores e leitoras.

 

RESENHA:  PARRA, Nicanor. Só para maiores de cem anos – antologia (anti) poética. Seleção e tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. 1ª edição.  São Paulo: Editora 34, 2018. 288 páginas.

 

 

REFERÊNCIAS:

ALEIXO, Ricardo. 37 poetas para serem traduzidos. Suplemento Pernambucano, Recife. [online]. Disponível em: <https://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/93-especial/1645-37-poetas-para-serem-traduzidos-no-brasil.html>.  Acesso: 10 jan. 2019.

LAGO, Tomas. 8 nuevos poetas chilenos. Santiago: Universidad de Chile/ Sociedad de escritores de Chile, 1939.

MEIRELES, Cecília. 8 poetas. A manhã, Rio de Janeiro, p. 3-8, 24 ago. 1943. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116408&pasta=ano%20194&pesq=oito%20poetas>. Acesso em: 10 jun. 2017.

BAROSSI, Joana; PIQUET, Cide. Nota dos tradutores. In: PARRA, Nicanor. Só para maiores de cem anos – antologia (anti)poética. Seleção e tradução de Joana Barrosi e Cide Piquet. São Paulo: Editora 34, 2018.

 

[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (PGET/UFSC). Bolsista CAPES. E-mail: warkenespanholufsc@gmail.com

[2] Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116408&pasta=ano%20194&pesq=Nicanor%20Parra> Acesso em 28 de março de 2019.

[3] Amador: aquele que ama, um apreciador(a) e entusiasta.

[4] Disponível em: <http://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes/arquivos/nicanor_parra_e_vinicius_de_morais_-_para_internet.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2019.

[5] Joana Barossi é professora, editora e poeta. Estudou jornalismo, arquitetura e História da Arte. Também é mestranda pela FAU na USP.

[6] Cide Piquet é editor, tradutor e poeta. Trabalha na editora 34 desde 1999, onde atua especialmente nas coleções de poesia e literatura estrangeira.

[7] (Não deixa de ser interessante que o poeta, que também foi físico e matemático, seja publicado no Brasil pela “editora 34”.  Certamente Parra simpatizaria com o nome e logo da editora)

[8] Escritor e artista plástico. Formou-se em Letras na USP em 1981, e nesse mesmo ano iniciou sua prática de gravura na ECA-USP.