Pantagruel e seus companheiros -Tradução de Clélia Mello

Como Pantagruel e seus companheiros se cansaram de comer carne salgada e Carpalim foi caçar para terem carne fresca.*

Tradução de Clélia Mello**

À medida que o banquete prosseguia, Carpalim disse:
“ Eh! pança de são Queserá,  nunca mais comeremos carne de veado? Esta carne salgada me dá muita sede. Trarei uma perna daqueles cavalos que nosso fogo queimou, ela estará bem assada. ”
Assim que se levantou com essa intenção,  ele avistou na beira do bosque um belo e grande cervo que saíra para ver o fogo de Panurgo, penso eu. Imediatamente ele correu atrás, e com tamanha rapidez qual disparado com besta, que obteve a presa em um instante.  Enquanto corria, com as mãos apanhou do ar quatro abetardas grandes, sete menores, vinte e seis perdizes cinza, trinta e duas vermelhas, dezesseis faisões,  nove galinholas, dezenove garças, trinta e dois pombos-torcaz.
Com os pés ele matou dez ou doze lebres e coelhos adultos, um conjunto com dezoito saracuras engatadas, quinze javalis, dois texugos, três raposas grandes.
Então com a espada trespassou a cabeça do veado, ele o matou e ao trazê-lo recolheu suas lebres, saracuras e javalis. E de tão longe quanto poderia ser ouvido, gritou:
” Panurgo, meu amigo! Vinagre, vinagre! ”
O bom Pantagruel pensando que ele estava mal do coração ordenou que lhe dessem vinagre. Mas Panurgo percebeu que havia uma boa presa e, de fato, mostrou ao bondoso Pantagruel que Carpalim trazia consigo um cervo no pescoço e um belo cinturão de lebres.
Sem demora Epistemon preparou, em nome das nove musas, nove belos espetos de madeira à moda antiga. Eustênio ajudou a esfolar e Panurgo dispôs de tal modo duas selas de combate dos cavaleiros que elas serviram de apoio; o prisioneiro foi nomeado churrasqueiro e, no fogo que queimara a tropa inimiga, assaram a caça. Em seguida começaram a folia regada a vinagre; ao diabo quem se contivesse! Era um prazer vê-los se esbaldarem.
Então disse Pantagruel:
“Quisera Deus que cada um de vocês tivesse dois pares de sinetas da missa no queixo e eu os carrilhões dos grandes relógios de Rennes, de Poitiers, de Tours e de Cambrai, para ver a serenata que faríamos no balançar de nossos beiços.”
— Entretanto, disse Panurgo, é preferível pensar um pouco na nossa missão e na maneira de derrotar nossos inimigos.
— Bem lembrado, respondeu Pantagruel.
Por isso, perguntou ao prisioneiro:
“Meu amigo, diz-nos aqui a verdade e não minta se não quiser ser esfolado vivo, porque eu sou aquele que come criancinhas. Conte-nos tudo sobre a ordem, o número e a força do seu exército.”
O prisioneiro respondeu:
“Senhor, saiba que, na verdade,  há no exército trezentos gigantes armados com pedras de cantaria, extraordinariamente grandes, no entanto eles não são tão altos quanto o senhor, a não ser o líder chamado Lobisomem e que está armado com bigornas ciclópicas; cento e sessenta mil peões armados com as peles de duendes, pessoas corajosas e fortes; onze mil e quatrocentos homens de armas; três mil e seiscentos canhões com duas bocas, inúmeros bacamartes, noventa e quatro mil pioneiros; cento e cinquenta mil putas belas como as deusas , —  (Essas para mim! disse Panurgo), — algumas são amazonas, outras lionesas, outras parisienses, turanginas, angevinas, poitevinas, normandas, alemãs, de todos os países e línguas que existem.
— Realmente, disse Pantagruel, mas o rei está lá?
— Sim, senhor, disse o prisioneiro, está lá em pessoa, nós o chamamos Anarca, rei dos Dipsodos, o que significa povo sedento, porque nunca se viu gente mais sedenta nem com mais vontade de beber. A sua tenda é guardada por gigantes.
— É o suficiente, disse Pantagruel. Então, meus filhos, estão dispostos a vir comigo?
— Deus surpreenda quem  o abandonar! respondeu Panurgo. Já pensei no modo de os entregar todos mortos como porcos; o diabo os agarrará pela perna mesmo que fujam em disparada. Mas estou um pouco preocupado com uma coisa.
— E qual é? Perguntou Pantagruel.
— É, disse Panurgo, o modo de trepar com todas as putas que lá estiverem esta tarde, de tal forma que nenhuma escape de ser traçada como manda o figurino.
— Ha, ha, ha! riu Pantagruel.
E Capelim disse:
— Ao diabo o buraco da cobra se, por Deus, eu não furunfar com algumas delas!
 — E eu, exclamou Eustênio, que desde que saímos de Ruão não mais trepei! Meu ponteiro marca pelo menos dez ou onze horas, melhor ainda, está duro e forte como cem diabos.
—  Com certeza, falou Panurge, terás  as mais gordas e cheias.
— O quê, retrucou Epistemão, todos montarão e eu levarei o asno com as mãos? O diabo que leve quem nada fizer! Usaremos o direito de guerra. 
— Não, não, disse Panurge.  Prenda seu jumento na aldrava e monte como todo mundo.
E o bom Pantagruel, que ria de tudo, disse para eles:
” Vocês não levam em conta o  hospedeiro. Receio muito que, antes de anoitecer, vocês se encontrem um tal estado que não tenham condições de se colocarem em riste e que sejamos estripados por piques e lanças. “
— Basta! disse Epistemão, eu os darei a você, seja para assar, cozinhar, fritar ou triturar. Eles não são tão numerosos como no exercito de Xerxes que tinha trinta vezes cem mil combatentes, se acreditarmos em Heródoto e Trogo Pompeu, e Temístocles os derrotou. Por Deus, não se preocupe!
— Merda, merda, disse Panurgo. Só o revestimento da minha braguilha será suficiente para subjugar todos os homens, e são Furavulvas, que dentro repousa, chafurdará todas as mulheres.
— Portanto, meus filhos, disse Pantagruel, comecemos a marchar.

*Rabelais, Françoys. Les oeuvres de maitre Françoys Rabelais ; contenant cinq livres de la vie, faits et dits héroiques de Gargantua et de son fils Pantagruel. Paris, Librairie Gründe, 1945 pp 153-154 (Livre II Chapitre XXVI)

* Professora do Curso de Cinema da UFSC.