Dois contos de Vinícius Valcanaia

 Dois contos de Vinícius Valcanaia*

 

Escultura de Reiner Ruthenbeck

Escultura de Reiner Ruthenbeck

ILHA DE CAPRI

 

Frágil e efêmera, minha vida terminará enriquecida pelas memórias da história atual, glória plena do existir que escapa rapidamente pelos dedos nessas palavras.

Madrugada que começa enquanto a máquina do tempo gira universo adentroe a chuva goteja pelas ruas. Pra não definhar sem os beijos loiros da Sardenha, embarco no Dirigível desejando distância, gritando ao vento e aos raios que o nosso destino agora é Capri, a ilha dentro da Ilha.

Já que a memória insiste em não me trair durante a ida, lembro de tudo o que ouvi em priscas eras no colo materno sobre a Ilha De Capri e torço para que a centelha de verdade nessas lendas, permaneça acesa. A misteriosa ilha já foi palco da paixão entre Angelo Del Morte e a moribunda Flora. A bela Lola cantou seu exílio em verbos alemães aos pescadores de Capri e a famigerada Bruxa Sem Nome, irmã de Aglaia, também habitou a ilha, devorando menininhas virgens e perfumadas em qualquer fase da lua. Na terra e no coração de Capri, corre um sangue que não é o meu sangue, mas é o sangue bondoso de doadores anônimos diferentes das sofridas criaturas já descritas, outro poeta e um escultor que criam artes e manhas para a minha recepção.

Acalentado pelos versos de Pessoa, deixo que o vapor herbáceo devore a minha alma, liberando o fluxo verbal dos amores vividos, da infidelidade consumada em novos segredos que estabeleço com meu sensível confessor, também poeta escorpiano e distinto embaixador da Ilha de Capri. Enquanto o artista entalha e imortaliza meu olhar dogmático de Anticristo na xilogravura, o poeta declama Ginsberg e baratas cômicas sobem nas paredes, provavelmente fugitivas da Interzone de Burroughs.

Para nós, estrangeiros e exilados em busca da canção exata para chorar a saudade da paisagem tropical, Capri é a ilha santa onde nada parece pequeno, nem o grito ou o sussurro, recanto em que o próprio tempo perde a complexidade em dúvidas sobre o futuro. Recebo presentes e recupero a fé no viver, partindo da Ilha de Capri levando comigo a sacanagem jovial pintada em letras, cores e vivacidade nos muros da fortaleza onde habitam o magro poeta e o ruivo escultor. Volto adormecido no vento, atormentado com pesadelos onde aparecem aqueles que disfarçam a crueldade com o excesso de franqueza.

Na primeira trégua da parassonia, sonho com a palidez elegante e a boca vermelha no vestido preto que tanto me enloqueceu e terminará enlouquecida, enquanto eu continuarei livre atravessando os céus da imortalidade entre os beijos da Sardenha e a ressaca cultural.

Volto brilhando no neon da madrugada, esquecendo de mim e aprendendo para depois ensinar. Volto com sede de poesia depois de viver a festa anunciada na Ilha. Além da dúvida, volto com o sol nascendo em minhas mãos, brincando com os truques do viver. E volto mais sábio, com a vontade de existir crescendo no peito, pulsando no desejo de ultrapassar os céus acima da Ilha de Capri.

 

DAS COISAS E DA VIDA

 

Como estão as coisas? As coisas estão como deveriam estar. São coisas, objetos inanimados, não fazem muito e pensam pouco. Coisando aqui, ali e acolá, as coisas seguem o seu destino, cada coisa em seu lugar, embora a coisa aqui seja um pouco diferente da coisa aí. Dizem que por aí a coisa está feia e muita gente só sabe enxergar a coisa preta.

Mas, se uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, com um pontapé de vida, a coisa anda e quem sabe até, a coisa muda. O mundo das coisas é assim, de coisas belas e sujas que precisam de pontapés de vida.

E a vida, como está? A vida está aí. Está viva.

A vida, diferente das coisas, caminha e acontece. A vida é essa casa feita de coisas que acumulamos, pessoas que conhecemos e fatos que vivemos, é uma casa feita de amor e compreensão dos que vivem para os que passam pela vida.

Um campo de batalhas, isso é a vida para uns e para outros, a vida é uma festa. Os que fazem da vida uma batalha, geralmente não amam, pois batalham para conseguir de tudo e quem tem de tudo, já na ama coisa alguma. Os que fazem da vida uma festa, acham tudo vivaz e efusivo, mas de vez em quando sentem-se sozinhos, bailando na festa sem companhia, buscando coisas e pessoas, âncoras capazes de criar uma certa ilusão de segurança e amor.

Assim é a vida, assim seguem os dias de muitas vidas, com o tempo dividido entre batalhar e festar. As vidas seguem perdidas tentando amar, resolvendo problemas e esperando a morte, embora amar não seja um problema e morrer seja a única certeza da vida.

Os problemas estão por aí, nos outros, nas coisas e apesar dos problemas e do estado das coisas, as pessoas que vivem a vida feito marionetes do destino, devem ser amáveis e gratas pela vida. Entre as coisas e a vida, existe um abismo e as pessoas, confusas entre a vida e as coisas, olham ao redor com espanto como se os mistérios da vida e a função das coisas fossem de difícil compreensão. Diante desse prisma confuso, na falta das coisas e no excesso de problemas, o amor é mais fácil de digerir do que resolver os problemas e dar um pontapé de vida nas coisas.

Coisas, vida, amor, problemas, isso é a existência e precisamos disso tudo para mudar os acontecimentos sem jamais chorar diante da inércia das coisas, do peso da vida, da força do amor, da loucura dos problemas e do medo da morte.

Mas, porque é tão difícil mudar os acontecimentos? Saberíamos viver sem as manipulações sociais que determinam as coisas como totens de status e criam regras para a vida ser vivida? Estamos preparados para renunciar ambições e coisas diante da força de mudança? E quanto aos problemas, estamos preparados para enfrentá-los sem perder a delicadeza do equilíbrio?

Portanto, é preciso perguntar diante do espelho: estamos aqui para?

Somos coisas ou somos vida?

Enquanto vivos, precisamos destruir as engrenagens dessa falsa harmonia de normalidade, desmoronando o estado das coisas e a inércia da vida. Enquanto vivos, devemos desconstruir os planos preconcebidos dos padrões midiáticos de tranquilidade, sonhando com uma suposta libertação, pois não se alcança a liberdade preso nas coisas e sem injetar um pouco de desarmonia na vida.

Somos mortais, menos coisa e mais vida, sem medo e com a certeza de que a mediocridade que habita os jogos cruéis que estabelecemos como relações de vida, não é capaz de adiar a chegada da felicidade. É uma amputação concebível, livrar-se da mesquinharia existencial ao lembrarmos da nossa finitude, retirando as ideias falsas que consideramos verdades imperativas das nossas cabeças, ideias pegajosas que atravancam o prazer da existência.

Somos coisas?

Não. Somos vidas.

Vidas que lutam por algo possível e palpável, buscando um sentido na servidão dos pequenos atos e nos intervalos de prazer e anarquia, onde fugimos da impotência e do desespero. Somos vidas com essa febre no íntimo que nunca cessa o ardor da luta contra os velhos tabus democráticos, questionando a realidade para saber contra o que se pode lutar na recusa de ser um zumbi vivendo a estranha sensação de que o mundo parou diante do vazio das coisas.

Enquanto houver vida, todos devemos deixar de lado a covardia dissimulada. Somos filhos da revolução, não somos coisas. Somos os pássaros do paraíso voando num período frutífero de luta e mudanças.

Somos vida enchendo as coisas de pontapés.

 

*Escritor.