AS EMAS DO GENERAL STROESSNER – Sérgio Medeiros

AS EMAS DO GENERAL STROESSNER

Sérgio Medeiros

 

 

 

PERSONAGENS

 

GENERAL MÉDICI (VULGO EMÍLIO), PRESIDENTE DO BRASIL

GENERAL STROESSNER (VULGO ALFREDO), PRESIDENTE DO PARAGUAI

UM SOLDADO BRASILEIRO

UM SOLDADO PARAGUAIO

VÁRIAS EMAS

VÁRIAS CRIANÇAS

 

DESCRIÇÃO DOS PERSONAGENS

O general brasileiro tem um longo nariz torto; sorri continuamente.

O general paraguaio tem lábios muito grossos, que estão rachados; sofre de uma doença de pele, por isso sua tez clara está salpicada de manchas vermelhas.

O soldado brasileiro usa uma máscara de papelão, com um longo nariz de tucano.

O soldado paraguaio usa também uma máscara de papelão, com grossos lábios rachados que sangram.

As crianças são alunos de escolas públicas e vestem uniforme.

 

 

 

ATO ÚNICO

Uma ponte reluzente sobre o rio Apa, na fronteira do Brasil com o Paraguai, que ainda não foi inaugurada.

Num extremo da ponte, está o soldado brasileiro, em pé. No outro, o soldado paraguaio, também em pé.

Aparecem algumas crianças brasileiras e paraguaias uniformizadas, vindas de seus respetivos países. Elas os rodeiam, rindo.

Ambos batem os calcanhares de suas botas com estardalhaço, e a seguir batem continência. Fazem isso várias vezes, como se estivessem apenas treinando. O objetivo é divertir as crianças.

As crianças saltam e batem palmas. Depois vão embora correndo para os seus respectivos países.

De repente, os soldados ficam em posição de sentido.

Entram os dois ditadores. 

O do Brasil, usando uniforme extremamente enfeitado, para diante do soldado brasileiro; e o do Paraguai, usando também uniforme extremamente enfeitado, para diante do soldado paraguaio.

Depois ambos caminham até o meio da ponte e se abraçam efusivamente.

 

MÉDICI: Bom dia, meu general presidente!

STROESSNER: Bom dia, meu presidente general!

MÉDICI: Caro Stroessner! Seja sincero!

STROESSNER: Caro Médici! É uma ordem!

MÉDICI: Então é verdade que os paraguaios pescaram o monstro do lago Ness? O monstro, você ouviu bem?

STROESSNER (atônito): O monstro? (Tira e recoloca os óculos escuros.) Qual mesmo?

MÉDICI: Não é a resposta que eu esperava ouvir, meu amigo.

STROESSNER: Gosto muito de pescaria… Aliás, já pesquei muito no Brasil, como sabe. Mas… Mas…

MÉDICI: Ora! (Tira e recoloca os óculos escuros.) Não estou falando de minhocas nem de peixinhos!

STROESSNER: Tem razão, você falava do monstro! Daquele lá!

MÉDICI: Mas como conseguiram pescar o monstro do lago Ness?

STROESSNER: Ah, sim, o do lago Ness! Não, ainda não tive… a honra de pescá-lo, Médici!

MÉDICI: Então me diga que peixes vocês costumam pegar nos grandes lagos paraguaios. Isso você pode contar, espero!

(Médici caminha jovial até a mureta da ponte e lança metade do corpo para fora dela a fim de examinar a correnteza. Stroessner o acompanha e também se debruça perigosamente na mureta.)

STROESSNER: Você esperava ver… imagino… umas indiazinhas lá embaixo tomando banho? Prefiro índias ao monstro que você mencionou!

MÉDICI: Não seria má ideia, caro Stroessner! Pescar uma ou duas sereias nativas!

STROESSNER: Qual seria a sua nacionalidade, se pescássemos uma agora? Poderia pertencer ao meu país… Então eu a pediria de volta!

MÉDICI: Depende da margem em que ela estivesse…

STROESSNER: E se estivesse exatamente no meio da corrente, boiando com os braços e as pernas abertas?

MÉDICI: Então agora vamos brigar por causa das sereias? Você não era de criar caso, meu general! Será a velhice?

(Ambos examinam de novo a correnteza do Apa.)

STROESSNER: Presumo que sereias e outros bichos só vão aparecer por aqui depois que inaugurarmos oficialmente a ponte.

MÉDICI: Então declaro esta nova ponte que une nossos dois países irmãos oficialmente inaugurada!

STROESSNER: Também declaro esta nova ponte sobre o rio Apa oficialmente inaugurada!

(Ambos se cumprimentam com um caloroso aperto de mão e depois caminham lado a lado pela ponte, examinando cada detalhe dela, mas sem emitir juízos ou críticas. Parecem muito satisfeitos com o que veem.)

MÉDICI: Então no Paraguai todo se falam duas ou três línguas, Stroessner? O espanhol eu conheço, mas as outras…

STROESSNER: Exato! Duas ou três línguas… Em Assunção, pelo menos duas; e no interior, três, quatro ou mais…

MÉDICI: Por que você tolera isso? Com tantas línguas assim na boca do povo, fica muito fácil falar mal de você pelas costas!

STROESSNER: Então no Brasil só se usa uma língua? E quase não se fala mal pelas costas de ninguém?

MÉDICI: Nunca ouvi outra língua ser falada no Brasil além da língua materna. Em Brasília o povo é muito educado…

STROESSNER: Então não há “bilinguismo” em Brasília? Por lá não falam mal do querido Médici pelas costas numa língua… digamos… indígena?

MÉDICI: Certamente que não! Nesse aspecto, Brasília não é como Assunção, general Stroessner. A nova capital do Brasil foi criada como que num passe de mágica, do nada, ou seja, nunca foi uma aldeia confusa onde se falam muitas línguas. Já nasceu cidade grande, assim, repentinamente!

STROESSNER: Mas mesmo com uma língua só, meu caro, Brasília falou mal de mim pelas costas!

MÉDICI (exageradamente surpreso): Como?! Agora é a minha vez de ficar atônito, caríssimo general Stroessner!

STROESSNER: Essa história de que temos um monstro no Paraguai… deve ter sido criada em Brasília, meu caro!

MÉDICI: Meu velho, o Paraguai é considerado com justiça a Suíça da América Latina! Mas Brasília, por sua vez, e disso me orgulho, não é nenhum ninho de cobras!

STROESSNER: Parece que agora nos tornamos também a Escócia da América Latina!

MÉDICI: Por causa do monstro ou da produção de uísque escocês?

STROESSNER: Por acaso estamos discutindo, Médici? Não fui eu quem começou…

MÉDICI (inquieto): Por acaso você não sentiu esta ponte balançar?

(Os dois generais param de passear pela ponte e aguardam imóveis no meio dela.)

STROESSNER: Está firme, parece-me! Não cairá tão cedo, meu amigo!

MÉDICI: Temos os melhores engenheiros do mundo!

STROESSNER: Não discuto isso, meu caro. Esta bela ponte sobre o Apa é a prova disso!

MÉDICI: Já construímos pontes maiores e melhores, Stroessner! E não se esqueça de que somos especialistas em construir grandes hidrelétricas, num instante!

(Aproximam-se do soldado paraguaio e param diante dele.

Ele bate os calcanhares de suas botas com estardalhaço, desequilibra-se e depois bate continência muito mal.

Os dois se afastam.)

STROESSNER: Vamos agora ver o brasileiro bater continência.

(Dirigem-se para o outro extremo da ponte.

O soldado bate os calcanhares com estardalhaço, desequilibra-se e depois bate continência muito mal.

Os ditadores reiniciam seu passeio pela ponte.)

MÉDICI: Não está mal. Ele precisa se exercitar de vez em quando, para não ficar com cãibra.

STROESSNER: O meu tahachi[1] não sofre de cãibras, Médici.

MÉDICI: Por acaso ele é uma máquina, Stroessner? Trouxeram-no da Rússia? Dos Estados Unidos?

STROESSNER: Meu tahachi é bem treinado, Médici, só isso. Não é uma engenhoca importada!

MÉDICI: Pensei que fosse um boneco de madeira! Um soldadinho de chumbo! Até talvez um treco cheio de molas, fios, lã por dentro… doado por alguma dessas grandes potências que não sabem mais o que fazer para conseguir aliados aqui na América do Sul!

STROESSNER: Achou-o deselegante? Não bateu bem os calcanhares? Foi por isso?

MÉDICI: Não, não! Mas… sim… achei-o um pouco primitivo… Como que de madeira! Não seria uma estatueta mecânica?

STROESSNER: Esse tahachi era um pouco primitivo no começo, mas já evoluiu muito.

MÉDICI: Achei o brasileiro meio molenga, sabe, Stroessner…

STROESSNER: Garanto que estava cochilando! E às suas costas!

MÉDICI: Nenhum soldado do Exército Brasileiro cochila às minhas custas, digo, costas!

STROESSNER: Desculpe, Médici, é um assunto muito sensível…

MÉDICI: Que assunto, general Stroessner?

STROESSNER: O que fazem ou deixam de fazer às suas costas… Por isso, me afastarei de você andando assim, olhe! (Dá uns passos para trás.) Faça como eu, Médici, assim nenhum de nós dois dará as costas ao outro!

(O ditador paraguaio se afasta rapidamente do ditador brasileiro andando de costas.)

MÉDICI: Volte, Stroessner, ainda não terminas nossa conversa! Não seja palhaço!

(Stroessner para, rindo muito, e Médici caminha até ele balançando negativamente a cabeça.)

STROESSNER: Bem, já inauguramos a ponte. As duas pátrias estão unidas por novo laço!

MÉDICI: Vim de Brasília para inaugurar a ponte, mas, sobretudo, porque queira pedir-lhe uma explicação, Stroessner. E não se faça de bobo comigo!

STROESSNER: Também vim de Assunção para inaugurar a ponte, mas, sobretudo, porque queria muito rever o amigo. Pensei que passaríamos juntos uma manhã muito divertida.

MÉDICI: Já que estamos sozinhos no meio desta ponte, e debaixo de um sol intenso, vou ser direto e insistir naquele assunto… Anteontem, no meu palácio, recebi umas fotos… fotos tiradas recentemente…

(Simultaneamente, os dois secam o rosto suado com um lenço de pano.)

STROESSNER: Agora é você quem está agindo como um… um… Médici, acredita mesmo naquela história?

MÉDICI: Na história do monstro? Sim! Ou melhor… não! Mas preciso ter certeza absoluta de que o monstro não foi pescado pelos paraguaios, sabe, Stroessner. Será que não há algo de estranho vagando hoje pelo Paraguai? Vagando, nadando… ou boiando…

STROESSNER: Então os brasileiros pensam mesmo que o Paraguai é, digamos, a Escócia da América Latina, um lugar de monstros! Para nós, paraguaios, o nosso país ainda é, com muito orgulho, a Suíça latino-americana, um país pacífico e…

MÉDICI (interrompendo o outro): Tenho comigo fotos… comprometedoras, meu caro general paraguaio. Eis uma delas! Como eu disse, foi tirada recentemente. Chegou-me às mãos anteontem!

(Médici tira do bolso da jaqueta uma pequena foto e a entrega a Stroessner, que a examina avidamente tirando e pondo os óculos escuros.)

STROESSNER: Isso me interessa muito, muito!

MÉDICI: Eu digo a mesma coisa, caríssimo parceiro. Na verdade, só vim à fronteira hoje por causa disso. Não foi por causa da ponte, que não é grande coisa, convenhamos… Queria esclarecer esse assunto. Definitivamente, compreendeu, Stroessner?

STROESSNER: Onde foi tirada? Não reconheço o cenário.

MÉDICI: Examine melhor, por favor.

(O ditador paraguaio examina a foto demoradamente. Depois a devolve a Médici.)

STROESSNER: Está sugerindo que foi tirada em território paraguaio? Por espiões brasileiros, imagino…

MÉDICI: Uma coisa de cada vez, por favor. Foi tirada, sim, em território paraguaio. E recentemente! No Brasil não temos isso…

STROESSNER: O quê? Lagos tão grandes como o lago Ypacaraí?

MÉDICI: Ah, então reconheceu o lago! É o famoso lago azul que agora é verde, não?

STROESSNER: Nessa foto o lago está negro, não me pareceu ser o nosso lago.

MÉDICI: Então você não reconheceu o lago Ypacaraí, famoso em toda a América Latina? Precisa de óculos Stroessner, óculos de grau, sabe.

STROESSNER: Digamos que seja o lago Ypacaraí…

MÉDICI: Estamos nos entendendo, homem! Tem um monstro aqui, não tem? Nesta foto, quero dizer.

(Médici lhe entrega a foto. Stroessner caminha até uma das muretas da ponte e, apoiado nela, examina demoradamente a foto, dando as costas para Médici.)

STROESSNER: Você parece acreditar que estou tentando esconder do Brasil algo precioso e perigoso…

MÉDICI: Um monstro é algo perigoso, sim! Não estou gostando nada dele, nada, mesmo!

STROESSNER (ainda examinando a foto): Não sabia que a pequena República do Paraguai poderia ameaçar tanto o Brasil, o maior país do mundo! (Vira-se.) Perdão, dei-lhe as costas!

MÉDICI: Você parece não se importar muito com o que se passa às suas costas, meu amigo. Mas eu me preocupo sempre com o que fazem atrás de mim! O que dizem de mim pelas costas! Sempre! Por isso quero esclarecer definitivamente esse assunto… escocês…

STROESSNER: Se tem um monstro no lago Ypacaraí, foram os gringos que botaram ele lá, não eu!

MÉDICI: Ah, então você está aceitando gringos no seu território, Stroessner? E nunca me contou nada! Com que intenção, hein?

STROESSNER: Não me interprete mal, Médici. Falo português, mas não tão bem quanto você! Não me entenda ao pé da letra, por favor!

MÉDICI: Vamos, diga logo quantos são esses gringos e o que eles pretendem obter montando uma base militar no Paraguai.

STROESSNER (abrindo os braços trêmulos): Estou… pasmo! Médici, pare com isso enquanto é tempo!

MÉDICI: E ainda trouxeram com eles uma mascote, a Nessie! Decerto porque perceberam que você gosta muito de pescaria… e que ficaria feliz pescando um monstro desses no fim de semana!

STROESSNER: Homem, você está delirando, inventando histórias! Fui apenas irônico quando usei a palavra “gringos”… Não temos gringos no Paraguai… E os índios não são gringos…

MÉDICI: Eu, delirando, Stroessner? E essa foto? O que você me diz dessa foto, homem!

STROESSNER: Você certamente reconhece que é preciso dispor de muito recurso financeiro e tecnológico para conseguir transportar a Nessie para cá! Você admite isso, não é? Que potência faria uma coisa dessas? Gastar uma fortuna para… para… quê? Beneficiar talvez o turismo no Paraguai, que anda mal das pernas?

MÉDICI: Custaria muito mais do que construir uma hidrelétrica no rio Apa…

STROESSNER: Pois então, você disse tudo, meu velho amigo! Nos dias atuais, com a crise do petróleo, não parece viável trazer a Nessie para cá! Aliás, nem consigo imaginar como se poderia fazer tal coisa!

MÉDICI: Mas isso foi feito, tenho provas! Sinto muito ter de colocá-lo contra a parede agora, num dia de grande alegria para as nossas duas pátrias, cada vez mais unidas; porém, a segurança nacional é a minha principal preocupação neste momento! Então sou obrigado a pressioná-lo sem meias palavras… na esperança de arrancar de você tudo o que sabe! Assim, voltaremos a ser bons amigos e não lamentaremos ter erguido juntos esta bela ponte da amizade!

(O ditador brasileiro tira mais fotos do bolso da jaqueta e as entrega a Stroessner.)

STROESSNER: Sou o maior interessado em pôr esse assunto… monstruoso… em pratos limpos, Médici. Pode estar certo disso, meu presidente! A verdade, a verdade verdadeira acima de tudo!

MÉDICI: A verdade verdadeira acima de tudo! Agora examine essas outras fotos que lhe passei.

STROESSNER: Por falar em pratos limpos, logo vão nos chamar para o almoço. A República do Paraguai preparou um saboroso banquete para o presidente do Brasil!

MÉDICI: Não tente mudar de assunto, Stroessner, nem me subornar com o famoso milho paraguaio. Examine de uma vez as fotos e me diga a sua opinião. Estou esperando. Não tenho fome, esqueça por enquanto a fumegante sopa paraguaia…

STROESSNER (segurando as fotos que ainda não examinou; tenta devolvê-las a Médici, que as recusa com um gesto): Não quero que este assunto caia em ouvidos argentinos de jeito nenhum! Não quero nossos vizinhos portenhos envolvidos nesta brincadeira, Médici. Conheço-os melhor do que você, pois há décadas eu…

MÉDICI (interrompendo-o): Não envolverei os argentinos nisto, Stroessner. É um assunto que interessa unicamente ao Paraguai. E, é claro, ao Brasil! Afinal, somos o maior parceiro comercial do Paraguai, se não estou enganado. Por isso, me esclareça tudo agora!

STROESSNER: Confesso que essa notícia do monstro me deixou zonzo, Médici. Completamente zonzo. Estou até ouvindo um zumbido estranho! Pois, aparentemente, a única pessoa que ainda não viu essa famosa Nessie do lago Ypacaraí sou eu!

MÉDICI: Se ainda não viu a Nessie paraguaia, então abra os olhos, homem! Veja agora a danada da Nessie nessas fotos que lhe passei. O longo pescoço está mais nítido nelas do que na primeira que você examinou.

STROESSNER (examinando rapidamente as fotos): Continuo acreditando que não temos monstro nenhum no território nacional, nem na água, nem na terra, nem no ar!

MÉDICI: Isso é o que você pensa, generalíssimo! Seus inimigos internos estão certamente envolvidos nisso. Estão tramando alguma coisa às suas costas. Você deve me agradecer por ter lhe aberto os olhos sobre isso!

STROESSNER (ainda examinando as fotos): Inimigos internos! Essa é boa! Eles não existem, Médici, não num país como o Paraguai, a Suíça latino-americana. Essa notícia de que agora a Nessie está no lago Ypacaraí só pode ser invenção de algum jornalista ou escritor comunista… Algum conterrâneo meu está querendo transformar a nossa pacífica Suíça numa… numa Escócia qualquer! Ah, já sei, foi o Augusto Roa Bastos, só pode ter sido ele o autor dessa história! Ele tem muita imaginação e não gosta nada de mim! E o malandro se exilou na Argentina; ai de mim!

MÉDICI: Bem, pelo menos você agora está convencido de que não foi o Brasil que pôs a Nessie lá no lago paraguaio. Isso posso lhe garantir, amigo Stroessner: não fomos nós!

STROESSNER (devolvendo-lhe as fotos): Só espero que não sejam os nossos inimigos soviéticos os autores dessa proeza! Não quero nem pensar nisso! Gela-me a espinha!

MÉDICI (com as fotos na mão): Reconheceu o lago Ypacaraí?

STROESSNER (tirando o quepe para coçar a careca): Bem, bem… a água escura não é a água azul do lago Ypacarí.

MÉDICI: Mas a foto está em preto e branco, homem teimoso! Venha comigo, vamos examinar juntos as fotos.

(Médici pousa uma mão no ombro do colega paraguaio e o conduz até uma das muretas da ponte, onde espalha as fotos com impaciência, uma ao lado da outra. Os dois então examinam as fotos.)

STROESSNER: Poderia ser um rio turvo qualquer, Médici, inclusive o rio Apa, que neste momento corre marrom bem debaixo de nós! Não se parece muito com um lago plácido da Suíça da América Latina.

MÉDICI: É um lago, homem teimoso! E tenho tanta convicção disso que aposto uma hidrelétrica com você que é o lago Ypacaraí, que agora está verde!

STROESSNER: Não aposto hidrelétricas!

MÉDICI: Claro que não, pois a construção de uma arruinaria a economia do Paraguai! O que não é o nosso caso…

STROESSNER: E se você, Médici, enganado por seus auxiliares, estivesse dando ouvidos a uma invencionice popular em vez de se dedicar a coisas realmente importantes, que interessam aos nossos dois países, como a construção de novas grandes hidrelétricas? Cedemos a água e vocês entram com a tecnologia. Precisamos de energia, homem, não apenas para industrializar nossos países, mas também para vender ao mundo!

MÉDICI: Como fala esse líder latino-americano! Mais até do que Fidel Castro! O amigo está sugerindo por acaso que… “me passaram as pernas pelas costas”? Essa é boa, Stroessner, muito boa!

STROESSNER: Nas águas da América do Sul vejo hidrelétricas, caro Médici, não vejo monstros escoceses! Você é que veio com essa história da Nessie… cujo rabo ainda cresce!

MÉDICI: O que você está dizendo, Stroessner? Parece que agora delira. É o sol quente, é?

STROESSNER: Era só o verso de um limerick, mas deixa isso para lá, meu amigo. Não estamos no Reino Unido, estamos na América do Sul e quero conversar com você como conversávamos nos velhos bons tempos. Vamos sonhar com novas hidrelétricas! Temos tanta água fluindo por toda parte… e até sob nossos pés, agora mesmo!

MÉDICI: Uma hidrelétrica é um sonho, mas a Nessie… é o nosso pesadelo! Temos de despertar desse pesadelo, e já!

(Stroessner apoia as duas mãos na mureta da ponte, como se estivesse se sentindo mal. Puxa o lenço de pano do bolso da calça e seca o rosto, mas ao fazê-lo lança no rio todas as fotos. Ele não vê o incidente, assim como Médici, que também está secando o rosto com um lenço de pano.)

STROESSNER: Uma tontura momentânea, Médici, mais forte do que as outras… mas estou me sentindo melhor.

MÉDICI: Você está é muito pálido, Stroessner! Não vai me bater as botas agora no meio desta ponte, vai?

STROESSNER: Sou uma máquina bem azeitada, Médici. Ainda vou governar o meu Paraguai por muitos e muitos anos! Sinto-me perfeitamente bem, estou funcionando às mil maravilhas! Quem sonha que a minha corda já acabou, vai cair do cavalo!

(Stroessner tira um espelhinho do bolso da jaqueta, onde se examina demoradamente aproximando-o e afastando-o da face à medida que faz caretas.)

MÉDICI: Espero sinceramente que sim, meu amigo, mas temo que aquele monstro possa vir a ser um grande obstáculo no seu caminho daqui para a frente… O Paraguai não é mais o mesmo, meu velho. Mas aqui estou para ajudá-lo! Nas horas boas e nas horas ruins!

STROESSNER (vendo que as fotos desapareceram da mureta): Ah, você guardou as fotos… Bem, elas não esclareceram nada, a meu ver.

MÉDICI: Cadê as fotos? (Passa uma mão pela mureta.) Desapareceram como por encanto, Stroessner! Isso é magia!

(Então ambos procuram as fotos examinando primeiro a ponte e depois o rio Apa, que é um rio silencioso.

Quando lançam seus corpos para fora da mureta, com uma perna levantada para trás, uma ema surge no território paraguaio e, sem hesitar, atravessa a ponte trotando. Logo desaparece no território brasileiro.

Naturalmente, os dois não veem a ave veloz, pois estão de costas para ela.)

STROESSNER: Aqui não estão mais, Médici!

MÉDICI: Caíram no rio! Como fui descuidado deixando-as soltas nesta mureta!

(Ambos voltam a examinar a correnteza do Apa.)

STROESSNER: Nossos historiadores contam que a água do Apa era cristalina antes da Guerra do Paraguai…

MÉDICI: Pode ser, Stroessner, mas não vim aqui para falar disso e ouvir a eterna choradeira paraguaia por causa dessa guerra perdida!

STROESSNER: Não se exalte, Médici, você ficou vermelho como um tomate! Só gostaria que você se lembrasse de que este lugar tem um profundo significado histórico para nós, paraguaios, pois perto daqui os soldados brasileiros mataram barbaramente o nosso presidente Francisco Solano López, na guerra…

MÉDICI (interrompendo-o): Parece que os paraguaios só conseguem pensar nessa desgraçada guerra de cem anos atrás, mesmo que o seu território esteja sendo invadido por monstros alienígenas!

STROESSNER: Você diz cada barbaridade, Médici! Agora a Nessie não é mais a Nessie, virou num passe de mágica monstro alienígena! Não esperava ouvir essas coisas de você, meu amigo. Não, não mesmo, meu caro! É o sol quente?

MÉDICI (visivelmente excitado): Ocorreu-me outra hipótese agora… e essa nova hipótese, Stroessner… me parece mais plausível do que a de que o monstro é um alienígena. Ouça!

STROESSNER: Sim? Estou esperando, Médici. (Um breve silêncio.) Estou sem palavras. Não sei mais o que responder, o que comentar… ponderar…

MÉDICI: E se o monstro for uma engenhoca russa, um robô espião? Pense nisto. Ele na verdade não deveria nunca ter emergido durante o dia e mostrado a cabeça e o pescoço, mas o fez por alguma razão, por precipitação, talvez, uma pane nos motores, e foi fotografado…

STROESSNER: Bom, prefiro que você culpe os russos, é um alívio para mim, embora, é claro, eu tema os russos tanto quanto você. Não queria tê-los no Paraguai de jeito nenhum! Mas, por favor, brigue com eles e não comigo! Se você quiser mandar um submarino ou coisa que o valha para escrutinar o fundo do lago Ypacaraí, darei de bom grado a minha autorização. Quero pôr tudo em pratos limpos! E ficarei grato se você puser todos os russos para fugir da América do Sul o quanto antes! Mas deixe, peço-lhe de coração, o monstro no lago Ypacaraí, será uma grande atração turística que alavancará a economia da região!

MÉDICI: Que homem falante, nossa mãe! E pensar que estava morrendo instantes atrás!

STROESSNER: Médici, cuide-se, você está ficando vermelho de novo como um pimentão! Poupe seu coração, meu amigo. Não pense tanto nos russos, eles vão enlouquecê-lo antes que possa regressar a Brasília! Pense nos americanos, eles estão do nosso lado!

MÉDICI: Ainda não é hora de alertar os americanos, caro presidente! O que eu sei é que ficamos neste momento sem aquelas preciosas fotografias! Mas, lembre-se, Stroessner, também sou uma máquina muito bem azeitada! Estou funcionando às mil maravilhas!

STROESSNER: Assim espero, meu amigo, e fico feliz em ouvi-lo dizer isso!

MÉDICI: Que nós dois possamos exercer sempre otimamente a nossa função de presidentes de duas nações livres e prósperas. Mas aquelas fotografias, hein…

STROESSNER: Devem ter caído no Apa! Culpa minha, Médici. Foram levadas embora pela correnteza. A essa altura devem estar bem longe daqui.

MÉDICI: Culpa, minha, Stroessner, afinal, fui eu quem as deixou soltas na mureta da ponte! O vento as levou!

(Permanecem imóveis no meio da ponte; o ditador brasileiro tira o quepe e coça suavemente a cabeça.)

STROESSNER: Não quero sugerir que você tenha sido enganado deliberadamente pelo Serviço Nacional de Informação brasileiro, mas…

MÉDICI (interrompendo-o bruscamente): As fotos eram autênticas, Stroessner! Ninguém me passa a perna, sabe!

STROESSNER: Mas elas foram mesmo tiradas no meu Paraguai… pelos seus espiões, Médici?

MÉDICI: Está querendo sugerir que poderiam ter sido tiradas no Uruguai ou na Argentina?

STROESSNER: Em algumas fotos, se não em todas, o monstro me pareceu bem menor do que o dinossauro escocês… bem menor, insisto!

MÉDICI: Então era só um brinquedo de criança, é isso? Por acaso está querendo me ridicularizar perante o Exército Brasileiro, Stroessner?

STROESSNER: Bem, as fotos foram tiradas de longe… O curioso é que a cara do monstro me pareceu muito familiar! Sim, já vi aquela cara antes, juro!

MÉDICI: Claro que é familiar, pois se não é a Nessie, é um dinossauro muito parecido com ela!

STROESSNER: Não se parece muito com a Nessie, a meu ver, mas… bem, já encontrei essa cabecinha em algum lugar! Admito isso, Médici!

MÉDICI: Estamos avançando, homem! Confesse tudo de uma vez, Stroessner! Vamos acabar logo com isso! Já chega de bancar o palhaço!

STROESSNER: Não me entenda mal, por favor. Disse apenas que a cabeça do monstro, ou do suposto monstro, sei lá, me pareceu familiar… assim… como se fosse a cabeça de um bicho até comum no Paraguai… mas não afirmei que a Nessie paraguaia era de fato real e que morava no lago Ypacaraí!

MÉDICI: Querendo agora dar para trás, Stroessner?

STROESSNER: Não me obrigue a confessar o que não sei, meu amigo. Ainda não admiti a existência desse monstro no sagrado território paraguaio!

MÉDICI: Pense melhor, meu amigo. Pense!

(Em pé no meio da ponte, os dois generais refletem e suspiram, ambos esfregando os olhos demoradamente.

Nisso, de trás de uma das muretas da ponte, estica-se o longo pescoço de uma ema; a cabecinha da ave curiosa arregala os olhos enquanto contempla os dois ditadores imóveis.

Os dois param de coçar os olhos e voltam a pôr os óculos escuros; a convite de Médici, caminham em silêncio até a outra mureta da ponte. Apoiam despreocupadamente as costas nela, voltando-se para o outro lado, porém não veem a ema atrás da mureta defronte, pois ela despareceu antes que eles pudessem fixar os olhos nela.

A ema então ressurge, muita alta, às costas deles. Mas eles não a percebem, pois ela desparece subitamente, sem fazer ruídos ou lançar sua sombra sobre a ponte.)

STROESSNER: Ainda não consegui identificar aquela cabecinha e aquele longo pescoço… mas, acho eu, é de um animal que conheço, tenho certeza!

MÉDICI: Pense, meu caro general, e me esclareça tudo logo! Preciso saber que bicho é esse, Stroessner, que se parece e não se parece com a Nessie! Um híbrido! Não sei se essa notícia me tranquiliza ou inquieta mais. Na verdade, o mistério só aumenta, à medida que discutimos o assunto! Mas pressinto que você, seu velhaco, está finalmente prestes a me fazer a revelação que estou esperando há tanto tempo!

(A ema reaparece na mureta defronte a eles. Seu pescoço parece ainda mais longo.

Os dois generais a veem, mas não se movem. Estão como que petrificados. Mal respiram.

A ema apenas os encara, curiosa.)

STROESSNER (falando baixo): É ela, Médici!

MÉDICI (também falando baixo): É a Nessie! Então ela está solta na fronteira! Solta por aí! Eu sabia!

STROESSNER (falando um pouco mais alto e logo em voz normal): Ela pode ter vindo do Brasil, isso sim! Não sabemos ainda de que lado da fronteira ela veio!

MÉDICI (falando em voz normal): Será um dinossauro de verdade, como que saído das brumas escocesas?

STROESSNER: É melhor não falarmos muito alto, esse bicho pode ser selvagem!

MÉDICI: Vamos ficar em posição de sentido!

STROESSNER: Para mostrar que somos generais, gosto disso!

(Os dois ficam prontamente em posição de sentido diante da ema, que continua olhando para eles imperturbável. Parece sorrir levemente. Seus olhos são enormes.

Os generais estão tensos, vigilantes.)

MÉDICI: Agora devemos sacar nossas armas! Mas com a máxima discrição, general. Com a máxima discrição. Um, dois e já!

(Eles procuram discretamente suas armas apalpando a cintura e as coxas, mas não as encontram.)

STROESSNER: Estamos desarmados, meu amigo! Podemos lançar contra ela os nossos quepes, e olhe lá!

MÉDICI: Só em último caso, Stroessner. Chamaremos agora os nossos soldados! Eles estão armados até os dentes!

STROESSNER: Ufa, ela continua calma! Devemos tomar cuidado… qualquer gesto suspeito de nossa parte pode deixá-la furiosa! Subirá na ponte e nos atacará! Os nossos soldados correrão para cá, mas poderá ser tarde demais!

MÉDICI: Logo os meus soldados avistarão a Nessie e atirarão nela! Será a nossa salvação. Stroessner será salvo pelo Exército Brasileiro!

STROESSNER: Os meus soldados atirarão nela também, Médici. São muito bons de pontaria!

MÉDICI: Mas por que não atiraram ainda? Por quê?

STROESSNNER: Acho que esse bicho está querendo nos hipnotizar, Médici!

MÉDICI: Deixe-o tentar, Stroessner! A mim ninguém hipnotiza. Nunca! Daqui a pouco lançarei o meu sapato na cara desse monstro, ele vai ser só!

STROESSNER: Temos de fazer algo para atrair a atenção dos tahachis! Eles não estão olhando para cá!

MÉDICI: Não teriam adormecido enquanto conversávamos a sós aqui na ponte? Falamos tanto assim? Hum… Provavelmente tomaram um bom café da manhã e agora não querem saber de mais nada!

STROESSNER: Bem, prometi a eles um bom almoço, e ficaram contentes. O café da manhã não foi… muito substancioso, não. Foi um erro de nossa parte!

MÉDICI: Claro, seu pão-duro, os paraguaios a essa altura já desmaiaram de fome!

(De repente, a ema mexe a cabeça, olhando rapidamente para o lado do Brasil e depois para lado do Paraguai; faz isso várias vezes.

Os dois soldados, nas extremidades da ponte, desmaiam em câmara lenta.

Os generais permanecem onde estão, em posição de sentido.)

STROESSNER (abandonando lentamente a posição de sentido): Você percebeu, Emílio, que a Nessie está paradinha bem no meio da fronteira líquida entre o Brasil e o Paraguai? Pode me dizer por acaso de onde ela veio, ou para onde pretende ir, quando lhe der vontade de ir embora daqui? Neste momento histórico, ela não é nem brasileira nem paraguaia. Você não pode dizer que sou dono dela!

MÉDICI (abandonando a posição de sentido): Esse bicho deve ser comilão, Stroessner… não será nada fácil alimentá-lo… mas ficarei com ele, Alfredo! Afinal, o Brasil é o celeiro do mundo; se não conseguirmos alimentar essa coisa, ninguém mais vai conseguir…

STROESSNER (dirigindo-se à ema): Nessie, agora você é do… (Aponta para Médici.)  …é do Emílio, aqui do meu lado!

MÉDICI: Ah, agora é minha! E antes? Era sua? Admite isso, Alfredinho? Está tratando esse monstro com muita intimidade!

STROESSNER (recobrando a antiga postura de general): Nada disso! Não queira pôr na minha boca o que eu não disse nem sugeri, Médici!

MÉDICI: Você é um osso duro de roer, Stroessner!

STROESSNER: Você me fará um enorme favor se contar isso para a sua mascote aí na frente!

(Durante algum tempo, os três personagens se encaram sem fazer gestos ou emitir sons.)

MÉDICI: Não é um bicho selvagem, Stroessner! Pelo menos não tão selvagem quanto eu temia. Estou até mais tranquilo agora. Muito mais tranquilo, mesmo sem a presença dos meus soldados. Por falar nisso, cadê a minha tropa?

STROESSNER: Os nossos pobres soldados desmaiaram de fome! (Olha várias vezes para as duas extremidades da ponte): Para onde olho, vejo um soldado caído no chão!

MÉDICI: Vão se levantar, não dou um minuto para que isso aconteça. Então vão jogar uma grande rede na Nessie! Não deverá ser fácil capturá-la, mas com um pouco de valentia e sorte…

STROESSNER: Não é a Nessie, Médici! Não é, mesmo! Agora estou reconhecendo essa cara! Essa cabecinha!

MÉDICI: Sabe que estou achando esse bicho muito manso… Não é a Nessie, você tem razão! Mas que parece ela, parece!

STROESSNER: A cabeça da Nessie deve ser maior do que as nossas duas cabeças juntas!

MÉDICI: Deve ser apenas um filhote da Nessie! Decerto acabou de sair do ovo e está ainda um pouco tonto!

STROESSNER: Um filhote dela? Hum… não sei, não!

MÉDICI: Já pensou se a Nessie estiver pondo ovos em todo o Paraguai?

STROESSNER: A Nessie e seus ovos são seus, Médici. Agora é assunto brasileiro!

MÉDICI: Não é bem assim, Stroessner. Por enquanto só adotei esse espécime aí, que me pareceu manso e simpático!

STROESSNER: Se eu fosse você, Médici, ficava com toda a prole da Nessie. Esse tipo de monstrinho combina com o solo brasileiro, sabe… O Paraguai se contentará com um ou dois espécimes apenas…

MÉDICI: Deixarei então um casal no Paraguai… e não precisa me agradecer.

STROESSNER: Será que se come a carne disso? Talvez os ovos sejam comestíveis, e garanto que não são pequenos…

MÉDICI: Como sempre penso nos amigos, e nos paraguaios em particular, posso mandar construir aqui na fronteira um grande parque dos dinossauros… Isso atrairá turistas, e será benéfico para a economia dos dois países vizinhos!

STROESSNER: Esse bicho está muito parado, Médici! E se ele for só um… como você costuma dizer… robô? Já pensou nisso? Um robô espião! Soviético? Ou até mesmo norte-americano?

MÉDICI: Vamos capturá-lo em breve, Stroessner, e então os meus veterinários dirão exatamente o que ele é. Ou o que ele não é, enfim. O que me alegra agora é que eu não estava enganado. Este cafundó está cheio de seres esquisitos, meu amigo! Um verdadeiro pesadelo escocês, admita!

STROESSNER: O que faremos agora, meu caro Médici? Não quero ficar parado aqui a manhã toda e ser examinado indefinidamente por esse monstrinho sob o sol mais ardente do ano!

MÉDICI: Vamos aguardar o Exército voltar a si, o que já deve estar acontecendo. (Olha para o soldado brasileiro caído no chão.) Não quero agir precipitadamente e espantar essa gracinha! Tem uma cara engraçada, não acha?

STROESSNER: Isso ele tem, uma cara engraçada de ema!

MÉDICI: De ema? Não compreendo!

(De repente, a ema encolhe o pescoço e desaparece debaixo da ponte.

Os dois generais então correm para a mureta e lançam o peito condecorado para fora dela, a fim de examinar o rio.)

STROESSNER: Desapareceu como por encanto! Não era real, Médici! Era só uma alucinação! Esse sol está assando os nossos miolos!

MÉDICI: Que extraordinário! O rio está subindo, Stroessner. Deve estar chovendo muito na cabeceira dele!

STROESSNER: Talvez a ponte esteja afundando, Médici! Vamos sair daqui!

MÉDICI: Jamais farei isso, homem! Seria ridicularizado pelo mundo. Ninguém vai rir de mim pelas costas! Vão dizer que tenho os melhores engenheiros, mas que quando eu inauguro uma ponte, ela afunda!

STROESSNER: Talvez ela esteja afundando muito lentamente… e, nesse caso, podemos aguardar um pouco.

MÉDICI: Venha examiná-la comigo. Milímetro por milímetro!

(Os dois caminham lado a lado pela ponte, indo e vindo com as mãos nas costas entre as duas muretas; quando se aproximam de uma delas, param e lançam um olhar sobre o rio, depois recomeçam a caminhar.

De repente, Médici começa a pular no meio da ponte. Stroessner olha para ele alarmado.)

STROESSNER: Está querendo provar o quê, Médici? Que ainda é um rapazinho que gosta de pular corda?

(Médici interrompe os pulos, ofegante e zonzo; sem poder falar, dirige-se cambaleando para uma das muretas e nela apoia as costas, todo trêmulo; depois se recupera rapidamente.)

MÉDICI: Viu, viu! Esta ponte não cairá jamais! Jamais! Os meus pulos reviraram os infernos e despertaram os espíritos da Guerra do Paraguai! E a ponte ainda está firme no mesmo lugar.

(Os dois soldados, nas extremidades da ponte, voltam a si, mas estão debilitados demais e não conseguem se pôr de novo em pé; então apenas se arrastam um pouco, viram-se de bruços e movem os braços para a frente e para trás, como se estivem nadando no rio.

Depois se viram de costas e suspiram; então permanecem assim, com o rosto voltado para o sol.

Protegem o rosto com o braço, que pousam sobre os olhos.)

STROESSNER: A ponte me parece muito firme, Médici. Não precisa fazer mais nenhum teste para provar isso. Desse jeito você ainda baterá as botas, meu velho. Para seu regozijo e tranquilidade, posso afirmar de todo coração que não vi nenhuma rachadura nela. Também não ouvi nenhum estalo suspeito… tirando as suas sapatadas. Talvez a ponte seja mesmo baixa… Afinal, o rio Apa não é nenhum rio Paraná… Então os seus engenheiros fizeram uma ponte bem baixa, não mais alta do que uma vaca ou um cavalo…

MÉDICI: Claro, Stroessner, a ponte é pequena, baixa… o rio é raso, nada caudaloso… então…

STROESSNER: Então você concorda agora comigo que aquele bicho era só uma alucinação? Hein? Não tente fugir do assunto falando da ponte e dos engenheiros brasileiros!

MÉDICI (secando o rosto com o lenço): Era real, muito real, homem! Um dos nossos espiões o fotografou, você não se lembra disso, meu amigo?

STROESSNER: Ah, aquelas fotos que caíram na água… Voltamos então à estaca zero, ao ponto de partida, ao lago Ypacaraí! Estamos andando em círculo! Você ainda espera uma confissão minha, não é verdade, general Médici? Como se fosse verdade o boato de que estou criando monstros secretamente no Paraguai!

MÉDICI: Exatamente, criando monstros às minhas costas e às minhas custas, Stroessner. Às minhas costas e às minhas custas, e isso não posso tolerar!

STROESSNER: Ouvindo-o falar desse jeito, começo a acreditar que esta ponte da amizade está fadada a rachar ao meio mais cedo do que se podia prever; e que quando ela começar a ruir sob as nossas botas, cada um de nós terá de pular para o seu lado!

MÉDICI: Você está usando sapato social, Stroessner. Como eu. Por que tiramos as botas, hein?

STROESSNER: Porque estamos no meio de uma celebração, de uma festa, é claro! Mal inauguramos a nova ponte que servirá para unir mais e melhor as duas pátria amadas! Aliás, nem cortamos a faixa ainda!

MÉDICI: É verdade, não vi ainda a faixa, até me havia esquecido dela! Não temos de cortar uma? Tampouco vi a tesoura. A tesoura geralmente é grande, brilhante. Onde está a faixa, homem?

STROESSNER: Acho que você está enganado. A tesoura para cortar a faixa não precisa ser grande; não é tesoura de jardineiro.

(Olham ao redor si, procurando a faixa e a tesoura que será usada para cortá-la.

A ema reaparece de trás de uma mureta.

Outras duas surgem de trás da mureta defronte. São grandes, com pescoço longo.

O general brasileiro, após vê-las, começa a girar como um pião, e não para mais.

O general paraguaio está atônito e como que paralisado, mas move de repente a cabeça de um lado para o outro examinando as emas.)

MÉDICI: Não posso parar de girar, não posso parar de girar!

STROESSNER: Mas por que você não pode parar de girar, homem? Assim você vai ficar tonto logo! E perderá sangue pelo nariz! E vomitará o café da manhã!

MÉDICI: Não quero nenhum monstro me examinando pelas costas! Não suporto isso!

(Médici fica tonto e cai sentado no chão.

Stroessner se aproxima solícito para ajudá-lo a levantar-se.)

STROESSNER: Esse homem endoideceu! Girar desse jeito! Coisa de gente doida, nossa! O pior é se ele cair da ponte!  Vão me acusar injustamente de tê-lo jogado no rio!

MÉDICI: Largue-me, seu chato! Deixe-me ficar aqui sentando! Estou tonto, tonto! Se abro os olhos, vejo umas manchinhas escuras se aproximando e subindo… ou descendo… Se fecho os olhos, vejo grandes vultos… São aqueles monstros? Diga-me! Eles estão tentando me atacar?

STROESSNER (examinando as emas, que continuam paradas no mesmo lugar olhando com grande interesse para ele): Não, não! Só estão olhando para a gente. Ainda não tentaram subir na ponte, parece milagre! Devem estar pensando que somos dois velhos tolos! Elas parecem sorrir, juro! Estão se divertindo às nossas custas!

MÉDICI: Isso não, isso não! (Ergue os dois braços.) Vamos, meu amigo, me ajude a me pôr de pé outra vez. Estou trêmulo!

STROESSNER: Só se você me prometer que não vai girar de novo. (Ajuda-o a levantar-se.) É tolice sua não querer dar as costas para esses bichos aí… Eles estão nos rodeando, é impossível você ficar de frente para todos eles ao mesmo tempo. Ouviu o que eu disse, Médici?

MÉDICI (com as mãos nas costas): Ai, ai! Que dor nas costas, ai! Droga, era só o que me faltava! Voltar entrevado para Brasília, numa cadeira de rodas! Parece que me acertaram uma paulada, sabe? É por isso que não gosto de dar as costas para ninguém!

STROESSNER: Esta inauguração de uma ponte da amizade está se revelando um… verdadeiro pesadelo, meu companheiro de infortúnio!

MÉDICI: Não seja melodramático, Stroessner. Já estou me sentindo melhor. (Ficando de joelhos.) É só eu me erguer agora, que já ponho ordem no mundo!

STROESSNER: Nem me lembro mais do que estávamos falando quando você rodopiou e caiu… (Estende uma mão para Médici, ajudando-o a pôr-se finalmente de pé.) Ah, sim, eu perguntava, ou iria perguntar, se essas emas…

MÉDICI (atônito e pondo as mãos nos ombros de Stroessner): Como?! Stroessner, você disse emas! Então você confirma que elas são emas!

STROESSNER (olhando aturdido ao redor para examinar as aves, que permanecem no mesmo lugar): Eu disse mesmo emas? Emas com “e”, “m”, “a”, “s”? Assim, foi isso?

MÉDICI (secando o rosto com a manga da jaqueta): Isso muda tudo, Stroessner! Por que não me disse isso antes, por quê?

STROESSNER: Elas são meio gigantes, não pensei que fossem emas! Depois, você encheu minha cabeça com minhocas, dizendo que eu criava a Nessie no lago Ypacaraí, e que tinha uma foto para provar isso, quando era só a foto de uma ema tomando banho num rio! Que palhaçada, general Médici!

MÉDICI: Não será um daqueles extraordinários bichos africanos, um avestruz?

STROESSNER: Aquele bicho grandalhão que enfia a cabeça na areia quando quer se esconder?

MÉDICI: Exato! Talvez tenham fugido de um circo ou de um zoológico…

STROESSNER: Bom, não são os filhotes da Nessie, isso sabemos agora. Estou inclinado a apostar com você que são emas mesmo. Elas costumam comer cobras nesta região, mas geralmente são menores. Ou pelo menos eu imaginava que fossem menores…

MÉDICI: Hum, se alguém me enganou, vai ser punido severamente, ouça bem o que estou lhe dizendo. (Passa o dedo indicador rente ao próprio pescoço, para mostrar como a punição será drástica.)

(As emas mexem o pescoço, bastantes agitadas. Depois se acalmam de novo.)

STROESSNER: Isso é assunto seu, Médici, mas o que eu queria mesmo dizer é que não tenho nada a ver com essas emas aí! Elas estão no território delas, você tem de reconhecer isso. São tão brasileiras quanto paraguaias! Sempre viveram aqui, desde que o mundo é mundo!

MÉDICI: Como assim, Stroessner? Podem ter vindo do Paraguai, ora essa! Não é tão simples saber a nacionalidade delas! Nem tampouco por que apareceram aqui nesta ponte justo agora, num momento tão solene! De repente estou me sentindo num circo!

STROESSNER: Sabe por que você está se sentindo num circo, Médici? Será que ousarei dizer? Bem… porque seus elogiados engenheiros construíram uma ponte muito baixa! Isto parece piada, Médici! Uma ema dentro do rio consegue erguer a cabeça mais alto do que a ponte! A ponte é mais baixa do que uma ema comum em pé com o pescoço esticado para cima!

MÉDICI: Esses engenheiros incompetentes vão se ver em maus lençóis comigo! Posso lhe garantir isso! É o que você queria ouvir, Stroessner?

STROESSNER: O rio talvez seja raso como um pires; por isso os engenheiros brasileiros pensaram que uma ponte bem… bem pequena serviria, quebraria o galho… A consequência disso é que agora estamos vendo a cabeç das emas…

MÉDICI: De fato, esta ponte não é muito grande, mas… mas… sim… é claro… poderia ser bem maior, imponente, grandiosa! Não vejo nela a marca do meu governo!

STROESSNER: Será que não inauguramos a ponte errada, Médici? Tudo está tão confuso e estranho hoje! Esta ponte nem tinha a faixa para a gente cortar… lembra-se? Até comentamos sobre isso há pouco.

MÉDICI (berrando): Ninguém me fará de palhaço, ninguém me fará de palhaço!

(Imediatamente, novas emas surgem dos dois lados da ponte, com o pescoço erguido por trás das muretas.)

STROESSNER (visivelmente alarmada): Psiu, homem! Cale-se! Você está atraindo a atenção de todo mundo! Não grite como um endemoninhado! Veja só quantas emas apareceram depois dos seus berros pavorosos!

MÉDICI: Não engulo sapo, meu amigo! Se é para esbravejar, esbravejo sim! Mas também… Que situação, Stroessner! Que situação!

STROESSNER: O pior é que já é hora do almoço, e essas emas estão com fome! Posso ver pelos olhos delas! E agora estão lançando o pescoço para a frente, tentando nos pegar!

(Os dois examinam as emas, e elas, de fato estão inclinando o pescoço longo na direção dos dois ditadores, que então se movem para o centro da ponte a fim de ficar o mais longe possível dos bicos.

Stroessner começa a fazer gestos com as mãos, para mantê-las um pouco mais afastadas.

Médici bate ora um pé, ora o outro no chão, para afugentar as aves famintas.)

MÉDICI: Dois generais espantando emas! E nenhum soldado para nos ajudar! A que ponto decaímos, hein, Stroessner! Não será tudo isto um sonho? (Médici tira os óculos escuros, como que para perceber melhor a realidade.)

STROESSNER: Não tire os óculos escuros, Médici! As emas são muito traiçoeiras e se sentem atraídas por coisas brilhosas: olhos, medalhas, insígnias…

MÉDICI: Um especialista em emas! Claro, elas são suas, Stroessner! Seus bichinhos de estimação. Vieram correndo atrás de você! Você deve criá-las num daqueles seus latifúndios no Paraguai!

STROESSNER: Vamos fazer de conta que não ouvi a última observação… Mas assumo que entendo um pouco de emas! Li tudo sobre elas na Enciclopédia Britânica… Nós, da elite paraguaia, temos esse hábito, desde o final da Guerra da Tríplice Aliança, de ler todos os volumes dessa magna obra para buscar em seus verbetes alguma confissão dos ingleses sobre sua responsabilidade na deflagração da guerra que destruiu a nossa pátria… (Grita.) Não pare de bater os pés, homem! Os bichos estão se aproximando mais da gente! E os nossos soldados não aparecem! Devem mesmo estar desmaiados! Que pesadelo!

MÉDICI (batendo mais ruidosamente os pés e gritando para se fazer ouvir): Você disse alguma coisa sobre cobras… que elas se alimentam de cobras. Será que pensam que somos duas jararacas?

STROESSNER (parando de agitar freneticamente as mãos): Comem cobras e botões dourados. Veja só isto, Médici! (Arranca dois botões da jaqueta e lança um deles por cima de uma das muretas da ponte.) Fique olhando! (Lança o segundo botão por cima da outra mureta.)

(Rapidamente, as emas desparecem sob a ponte para caçar os botões que caíram no rio.)

MÉDICI: Ufa, nos livramos delas! Não aguentava mais bater os pés! Acho melhor nos despedirmos, Stroessner. Agradeço muito o banquete que você queria oferecer em minha homenagem, mas preciso voltar a Brasília imediatamente. Sabe por quê? (Repete o gesto de passar o dedo indicar rente à própria garganta.)

(De repente, todas as emas reaparecem famintas de trás das muretas da ponte.)

STROESSNER: Agora é a sua vez de alimentar as emas com os botões dourados, Médici. Já perdi dois e não quero voltar para Assunção feito um mendigo, sem nenhum botão na farda!

MÉDICI: Essa é boa, as emas são suas e agora pede a mim que as alimente com botões! A troco de que, homem? Quer me deixar nu no meio desta ponte, é isso?

(As emas lançam ousadamente seu pescoço na direção dos dois generais.)

STROESSNER: Dê então a elas suas insígnias, suas medalhas! Dê qualquer coisa, desde que brilhe ao sol!

MÉDICI (arrancando da jaqueta uma insígnia e uma medalha douradas): Que homem insistente! Mas se o preço para voltar para casa é esse, então tomem! (Lança por cima das muretas a insígnia e a medalha.) Façam bom proveito. Tenho um monte disso no meu palácio! Não me fará falta!

(Rapidamente, as emas desaparecem sob a ponte para caçar a insígnia e a medalha que foram lançadas no rio.

Os dois soldados voltam a si, apoiam-se nos antebraços e depois começam a erguer-se do chão, lentamente, até se sentarem, mas não parecem ainda capazes de pôr-se de pé.)

STROESSNER: Eu também posso esbanjar insígnias e medalhas, Médici! (Arranca da jaqueta uma insígnia e uma medalha.) Agora veja! (Lança-as no rio, a insígnia para um lado e a medalha para o outro.)

MÉDICI: É bom vê-lo de bom humor, meu caro Stroessner. Sabe por quê? Porque tive uma ideia e quero agora comunicá-la a você, antes que nossos Exércitos se ergam do chão! (Aponta para ambos os soldados que tentam em vão erguer-se, cada um numa extremidade da ponte.)

STROESSNER: Sim, estou de bom humor, pois agora sinto que tudo acabará bem para nós, meu amigo. Nossos Exércitos se levantam! E as emas finalmente se foram! Por assim dizer, elas não queriam outra coisa da gente senão serem condecoradas com vistosas medalhas!

MÉDICI (rindo muito): Você é uma pândega, meu velho! Tem uma veia cômica britânica!

STROESSNER: Mas ouça mais, meu amigo! As emas estão também com nossas insígnias, como sabe. E se elas de repente acharem que são também generais? Generais do Exército!

MÉDICI (ainda rindo muito): Você ainda me matará de rir, homem! Que veia cômica! Você parece um velho general do século XIX, um daqueles que lutaram na Guerra do Paraguai! Os historiadores dizem que eram muito cômicos, sabe. Só por isso você merece uma estátua! (De repente, fica sério.) Tenho uma proposta seríssima para lhe fazer. Ouça!

(Ambos os soldados se põem de pé e começam a limpar a farda.)

STROESSNER (apontando para os dois soldados, um em cada extremo da ponte): Fale logo, meu caro, porque eles acordaram de vez! E teremos agora de dar um jeito na nossa vida!

MÉDICI: Quero que você declare publicamente que essas emas… (Elas reaparecem detrás de ambas as muretas.) Que essas emas aí…

STROESSNER: Sim? Fale logo, presidente do Brasil! Mas saiba desde já que isso não lhe sairá de graça. Isso já posso lhe adiantar.

MÉDICI: Pago o que você pedir, depois que você declarar publicamente, por meio do rádio e da televisão, que essas emas são suas e que vocês as trouxe aqui para alegrar a cerimônia de inauguração da nossa nova ponte da amizade!

STROESSNER: Não me custará nada declarar isso, Médici. Mas sairá caro para você! Talvez eu peça uma nova hidrelétrica…

MÉDICI: Dou-lhe duas! Duas hidrelétricas novinhas! Mas faça o que lhe peço. Volte para Assunção imediatamente e chame a imprensa! Assim, sairemos os dois gloriosos deste triste episódio!

STROESSNER: Para dar veracidade ao que você me pede, vamos fazer uma festa agora. Pediremos aos soldados que corram pela ponte, de cá para lá, brincando com as emas!

MÉDICI: Que ideia! Esses bichos não gostam de brincar, gostam de picar. Mas soldado é para isso mesmo. (Dirige-se ao seu soldado.) Hei, recruta, venha cá! (O recruta atende prontamente ao seu chamado e se aproxima correndo.) Comece a correr de cá para lá, brincando com as emas! Dê uns saltos e uns olés!

(O soldado faz o que ele pediu, e começa a correr perto das muretas dando pulos e gritinhos. As emas se mexem, agitadas. Algumas tentam bicá-lo.)

STROESSNER: Mandarei o meu entrar também na brincadeira! (Dirige-se ao seu soldado.) Mitã,[2] corra também com ele! Venha brincar com as ñandus![3]

(O soldado paraguaio começa a correr imediatamente, saltando e gritando ao longo da ponte, sempre indo e vindo junto das muretas, como aliás continua fazendo o soldado brasileiro. Ambos levam bicadas das emas.)

MÉDICI: Que algazarra, que festa! Fardas e plumas. Até parece um carnaval brasileiro bem carioca, Stroessner! Vou ficar com saudade!

STROESSNER (rindo feliz): Lembre-se, Médici, duas hidrelétricas para o Paraguai, duas! Novinhas!

MÉDICI: Está bem, homem insaciável! Só quer energia, energia! Daí a pouco você será chamado de “ditador elétrico”!

STROESSNER: Talvez as futuras gerações me chamem de “ditador iluminado”. O que não será nada mau, não é, Médici.

MÉDICI: Adeus, Stroessner. Estou voltando para Brasília. Deixe a festa rolar na ponte! Até as emas perderem as plumas e os soldados, a… Adeus!

(Após um rápido aperto de mão, ambos se separam, afastando-se de costas para seus respectivos países. Dão adeusinhos um para o outro…)

STROESSNER: Vida longa, Médici!

MÉDICI: Vida longa, Stroessner!

(Ambos desaparecem.

A ema que, tempos atrás, havia cruzado a ponte, ressurge de repente, voltando do Brasil. Está acompanhada de crianças brasileiras uniformizadas (as mesmas que apareceram no início da peça); enquanto os soldados gritam e batem palmas no meio da ponte, a ema regressa correndo para o Paraguai.

Crianças paraguaias uniformizadas (as mesmas que apareceram no início da peça) vêm ao encontro das crianças brasileiras e se abraçam. Depois saltitam e gritam felizes da vida.

Os dois soldados, exaustos de tanto correr de cá para lá junto das muretas, desmaiam de novo.

As crianças levam um susto, vendo-os estirados no chão, e começam a gritar alto; depois voltam correndo para os seus respectivos países.

As emas, amedrontadas pelos gritos das crianças, ou de repente desinteressadas do que ocorre na ponte, vão sumindo uma a uma…)

 

(Peça originalmente publicada, ao lado de outras duas, que também falam de ditaduras e tiranos, no livro As emas do general Stroessner e outras peças, Editora Iluminuras, 2017.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Tahachi (pronuncia-se “tarrachi”): soldado, em guarani. [N. do A.]

[2] Mitã: criança pequena, em guarani.

[3] Ñandus (ou nhandus):  ema, em guarani e espanhol.