Beckett e Joyce. Pode entrar! – Vitor Alevato do Amaral

Beckett e Joyce. Pode entrar!

Vitor Alevato do Amaral (UFF)

 

Resumo: Dois dos nomes mais conhecidos da literatura do século 20, os irlandeses Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce (1882-1941) mantiveram importante relação intelectual e de amizade. Beckett quem escreveu um dos primeiros textos críticos sobre “Work in Progress”, o ensaio “Dante… Bruno. Vico.. Joyce” (1929), e participou da tradução de “Anna Livia Plurabelle” para o francês (1931). Durante uma sessão de trabalho na qual Joyce lhe ditava passagens do que viria a ser Finnegans Wake (1939), Beckett não teria entendido que o “pode entrar!” dito por Joyce não deveria fazer parte do texto da obra, mas se tratava apenas de uma reação espontânea a uma batida à porta. Se isso é verdade, então Beckett escreveu uma parte de sua relação com o Finnegans Wake por meio de um mal-entendido que, mais do que simplesmente anedótico, revela um pouco do método de composição de Joyce. Nesta fala, apresentarei alguns fatos marcantes da relação Beckett-Joyce que podem ser importantes para o estudo de suas obras. Convido você, sem mal-entendido, a vir junto.

 

Beckett est l’envers de Joyce. Même ciel. Autre lumière. Ici, polyphonie. Là, monodie.

Ludovic Janvier (2006, p. 104)

 

Introdução

A relação entre Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce (1882-1941) não corresponde à novidade. Meu objetivo nesta fala, especialmente preparada para uma mesa redonda do evento “Samuel Beckett e tradução: teatro, prosa, música, corpo e performance” (UFSC, 3 de outubro de 2018), é apresentar ou relembrar alguns episódios da relação entre os dois irlandeses considerando tanto suas biografias quanto suas obras. O que apresentarei é sobretudo uma tentativa de síntese. O texto está divido em quatro partes: a primeira aborda brevemente a relação pessoal entre os dois escritores; a segunda, o papel de Beckett como sucessor de Joyce; a terceira, o uso da língua inglesa por ambos escritores; a quarta, a relação entre “Dia de hera na sala do comitê”, de Joyce, e Esperando Godot, de Beckett. Minha leitura se dá a partir de uma perspectiva joyciana que pode apresentar fragilidades desde já abertas a complementações e correções pelos beckettianos.

 

  1. Beckett na vida e na obra de Joyce

Beckett chegou a Paris em outubro de 1928, foi apresentado a Joyce por Thomas MacGreevy – cujo posto de professor na École Normal Supérieur Beckett tinha ido ocupar – e já no mês seguinte passou a visitar o apartamento de Joyce em Paris (Maddox, p. 243; Mercier, 1977, p. 36; Knowlson, and Knowlson, p. 44). Sua participação na intimidade da família de Joyce foi significativa e envolveu diversos acontecimentos. A relação de amizade desenvolvida entre os dois pode explicar, por exemplo, a posição de Beckett contrária à publicação das polêmicas cartas eróticas trocadas entre Joyce e sua companheira Nora Barnacle (Maddox, p. 397).

Mas o episódio-chave dos primeiros anos de convívio foi a relação entre Beckett e Lucia Joyce, filha de Joyce, que levou ao rompimento temporário entre os dois escritores. Lucia, entregue à promiscuidade (Maddox, p. 251) e “com fome de sexo” [1], como ela mesma definiu seu “problema” (Ellmann, 1983, p. 649), nutriu por Beckett um amor não correspondido. Em maio de 1930, Lucia convidou Beckett para almoçar à espera de ter com ele um momento a sós, mas Beckett chegou acompanhado de um amigo, o que fez com que Lucia abandonasse o restaurante antes do final do almoço sem dizer palavra. Em razão disso, Beckett sentiu-se forçado a deixar claro a ela que as visitas regulares ao seu apartamento tinham como interesse único a companhia de Joyce. Como Nora entendesse que Beckett brincara com os sentimentos da filha, convenceu Joyce a pôr fim às visitas, e a interdição durou um ano inteiro[2] (Ellmann, 1983, p. 649; Maddox, pp. 253-254). Os dois escritores viriam a reconciliar-se, mas, infelizmente, como lembra Maddox (p. 254), “Joyce não viveu o suficiente para saber que Beckett seria um dos amigos mais leais de Lucia até o fim de sua vida”.

Sobre a amizade com Joyce, Beckett lembrava-se, em 1989, que

 

[…] do [primeiro encontro] em diante nos encontramos com bastante frequência. Ainda posso me lembrar de seu número de telefone! Ele vivia perto da École Militaire. Eu costumava descer às vezes de manhã da École Normale e procurar o zelador, que costumava dizer, […] “O sr. Joyce telefonou e quer que o senhor entre em contato”. (Knowlson, and Knowlson, p. 44).

 

E durante um desses encontros na residência de Joyce, enquanto o autor de Ulysses ditava passagens do “Work in Progress” (mais tarde Finnegans Wake), Beckett não teria percebido que o come in! (pode entrar!) subitamente dito por Joyce não fazia parte do ditado, mas se tratava apenas de uma reação espontânea a uma batida à porta. Se isso é verdade, então Beckett escreveu uma parte de sua relação com Finnegans Wake por meio de um mal-entendido revelador do método de composição de Joyce, que preferiu deixar o equívoco no texto (Ellmann, 1983, p. 649).

Mas onde estaria, no Finnegans Wake, a tal ordem para entrar? Ela simplesmente não está em nenhuma passagem que possa ter ocupado Joyce no período em que Beckett o ajudou, como afirma Hugh Staples (p. 421) em “Beckett in the ‘Wake’”, explicando que a tal inserção deveria ter ocorrido no primeiro capítulo do segundo livro. Mesmo ampliando a busca, a revisão de todos os come-in’s em Finnegans Wake não revela nenhuma ocorrência que se pareça com um equívoco: “coocom in their combs for the jennyjos…” (238.32-33)[3], “Kerse come in back bespoking…” (322.01); “(come in, come on, you lazy loafs)” (393.27); “The house was Toot and Come-Inn by the bridge called Tiltass…” (512.34-35); “Then the court to come in to full morning” (566.24-25); and “When we come in the presence” (623.09-10).

Todavia, Staples (p. 422) acredita que este relato mereça uma correção. Joyce não teria dito “come in”, mas “what’s that?”, presente em Finnegans Wake: “But, the monthage stick in the melmelode jawr, I am (twintomine) all thees thing. Up tighty in the front, down again on the loose, drim and drumming on her back and a pop from her whistle. What is that, O holytroopers? Isot givin yoe?” (223.08-11)”[4]. Staples (p. 422) compara o trecho citado com o do manuscrito de Joyce percebe que neste a passagem figurava com outra pontuação: “But up tightly in the front, down again in the loose, drim and drumming on her back and pop from her whistle what’s that. O holytroopers?”. Para permitir que a distração de Beckett permanecesse, Joyce teria ajustado a pontuação do trecho, com a inserção de um ponto final após “whistle”, e expandido a forma contrata “what’s”, própria de uma reação espontânea, para “what is” [5]. Staples sugere ainda que Joyce jamais teria interrompido uma sessão de trabalho permitindo que alguém entrasse, sendo muito mais provável que a quebra de sua concentração o levasse a resmungar “o que é isso?”.

O relato tardio do próprio Beckett sobre o episódio, em 1989, difere sutilmente do que ele contara em entrevista a Ellmann, em 1954. Beckett já não parece ter estado mais tão seguro quanto ao que foi dito, o que reforça o argumento de Staples:

 

[Joyce] ditou algumas passagens de Finnegans Wake para mim a certa altura. Isso foi mais tarde quando ele morava naquele apartamento. E durante o ditado, alguém bateu à porta e eu disse alguma coisa. Tive que interromper o ditado. Mas não tinha relação nenhuma com o texto. E quando eu li o texto para ele com a frase do tipo “Pode entrar”, ele disse “Deixe assim”. (Knowlson, and Knowlson, p. 45).

 

A presença de Beckett no Finnegans Wake teria sido ainda marcada de outra forma, como sugere Barbara Reich Gluck (p. 28). Joyce teria inserido o próprio nome de Beckett na obra, por exemplo, em “Come on, ordinary man with that large big nonobli head, and that blanko berbecked fischial ekksprezzion” (64.30-31), e “You is feeling like you was lost in the bush, boy? […] Bethicket me for a stump of a beech if I have the poultriest notions what the farest he all means” (112.03-06) (meus itálicos).

Porém, a importância de Beckett para Finnegans Wake é maior do que podem sugerir esses casos até anedóticos. Beckett participou da tradução para o francês de uma parte do oitavo capítulo de Finnegans Wake, publicada em 1931 sob o título de “Anna Livia Plurabelle” (O’Neill, p. 41), e contribuiu para o importante volume de ensaios sobre o “Work in Progress”, intitulado Our Exagmination Round His Factification for Incamination of Work in Progress (1929). Como este ensaio, para a especialista em Joyce, Margot Norris (p. 161), Beckett “fornece os antecedentes filosóficos e filológicos” do “Work in Progress” e “demonstra como [Dante, Bruno e Vico] modificaram ou destruíram a natureza dos rótulos, das categorias tradicionais, dos enquadramentos conceituais, das divisões e oposições convencionalmente requeridas para se obter algum sentido da história, da teologia e da linguagem”. A autora também ressalta que apesar de a proposta de Exagmination ser a de não explicar o texto de Joyce, Beckett apresentou um esquema para as quatro partes que viriam a compor Finnegans Wake dez anos mais tarde, algo que só pôde ser feito porque Beckett àquela altura contou com “informações privilegiadas” do próprio Joyce (Norris, pp. 161, 163-164). Em 1937, Beckett ainda ajudou a revisar as provas de galé de Finnegans Wake, recusando-se, contudo, a atender ao pedido de Joyce para organizar outra obra sobre o livro antes de sua publicação (Maddox, p. 326).

 

  1. Beckett: o herdeiro

Em 1971, a James Joyce Quarterly, principal periódico dedicado à publicação de trabalhos sobre a obra de Joyce desde 1963, dedicou um de seus números (vol. 8, no. 4) a Beckett. David Hayman (p. 275), organizador dessa edição, afirmava que Beckett, apesar das diferenças de escrita e personalidade, àquela altura já começava a ser considerado como “o mais notável sucessor de Joyce”.

Hayman (p. 275) também sublinhava o sucesso de Beckett precisamente no campo em que Joyce fracassou, o teatro, o que teria contribuído para que Beckett não precisasse se posicionar como competidor de seu compatriota. Se, na poesia, não se pode dizer que Joyce tenha propriamente fracassado, já que não foi nessa arte que ele depositou grandes esperanças, no teatro ele realmente foi malsucedido. No campo da dramaturgia, apesar de algumas tentativas como autor e tradutor, a peça Exiles (Exilados) (1918) sobreviveu como claro testemunho de sua falta de traquejo para a criação destinada aos palcos.

Como Hayman, Hugh Kenner também ressaltaria o papel de sucessor, ou mais exatamente, herdeiro, que Beckett viria a desempenhar em relação a Joyce. Em seus ensaios de 1962, compilados em Os comediantes estoicos (The Stoic Comedians), o autor tratou da herança de Joyce deixada para Beckett, mas apontou também para a dívida que os dois tinham com Gustave Flaubert. Joyce, o herdeiro imediato, principalmente, mas Beckett não menos. E o já referido número da James Joyce Quarterly dava o flaubertianismo de ambos como fato óbvio (Hayman, p. 275). Kenner (p. xiii) assim definiu o estoico: “é aquele que considera, sem pânico ou indiferença, que o campo de possibilidades à sua disposição é grande, talvez, ou pequeno, talvez, mas certamente fechado”.

Joyce teria herdado de Flaubert “a fascinação pelo enciclopédico e pelo meticuloso”, que lhe permitiram uma maneira de “criar uma imagem da cidade”, no caso Dublim, e “deram aos seus livros uma curiosa pureza de conceito, que permitiu a eles valer-se mesmo das acidentais características do próprio livro, de forma que o livro impresso não é mais o registro ou depósito de uma história contada por alguém, nem como em Flaubert um arquivo científico sobre um caso, mas um artefato essencial que declara pela sua forma inerente a realidade essencial que pretende apresentar” (Kenner, p. 62). Kenner acentuou com isso o fato de que Joyce pertencia, e sabia que pertencia, ao mundo das palavras impressas e que para ele o objeto livro não era apenas um meio.

Os limites que o estoico percebe estão dados pela enciclopédia, no caso de Flaubert, e pelo dicionário e pelos fatos, no caso de Joyce. Flaubert era um organizador de ideias, o buscador do mot juste (Kenner, p. 30), das palavras necessárias para a organização das ideias; Joyce não estava preocupado em encontrar as palavras exatas, ele já as tinha, como afirmou, mas em como ordena-las; ele era o organizador das palavras escritas e dos fatos que podia inventariar com elas.

Para Kenner (p. 70), “Beckett avançou de onde Joyce parou”, isto é, do impasse até onde Joyce tinha levado a ficção, e tentou resolver o problema de como lidar com um impasse: “ele é o comediante do impasse, como Joyce é do inventário e Flaubert da enciclopédia”. O próprio Beckett traçou a linha que o separa de Joyce em uma entrevista a Martin Esslin: “Joyce era um sintetizador que tentava atrair o quanto pudesse. Eu sou um analisador que tenta deixar de fora o máximo possível” (Gussow, 1981, p. 5). Em outra entrevista, ele disse:

 

[…] a diferença é que Joyce era um grande manipulador de material – talvez o maior. Ela estava fazendo com que as palavras executassem o máximo absoluto de trabalho. Não há uma sílaba que seja supérflua. No tipo de trabalho que eu faço, eu não sou o mestre do meu material. Quanto mais Joyce sabia mais ele podia. Ele tende para a onisciência e onipotência enquanto artista. Eu estou trabalhando com a impotência, a ignorância. Não creio que a impotência tenha sido explorada no passado. (Shenker, p. 3).

 

Kenner encontrou um exemplo de como Beckett avançou do ponto até onde Joyce levara Ulysses. Tomando o penúltimo episódio de Ulysses, “Ítaca”, como ponto de partida, Beckett teria se afastado da comédia de inventário em seu livro Watt (1953). A maneira como Leopold Bloom entra em casa e como Watt se move na direção do leste guardam semelhanças e diferenças (Kenner, p. 77). Cito os dois trechos comentados por Kenner, o de Ulysses na tradução de Caetano Galindo, o de Watt em minha tradução.

 

Apoiando os pés no muro anão, ele [Bloom] escalou as grades da área, comprimiu o chapéu na cabeça, agarrou dois pontos da mais baixa união entre barras e travessas, desceu o corpo gradualmente por seu comprimento de um metro e setentesseis centímetros para cerca de oitentesseis centímetros do piso da área, e permitiu que seu corpo se movesse livre no espaço separando-se da grade e se agachando por se preparar para o impacto da queda (Joyce, 2012, pp. 945-946)[6].

 

A maneira de Watt avançar para o leste, por exemplo, era virar o tronco o máximo possível para o norte e ao mesmo tempo jogar a perna direita o máximo possível para o sul, e então virar o tronco o máximo possível para o sul e ao mesmo tempo jogar a perna esquerda o máximo possível para o norte, e novamente virar o tronco o máximo possível para o norte e jogar a perna direita o máximo possível para o sul, e novamente virar o tronco o máximo possível para o sul e jogar a perna esquerda o máximo possível para o norte, e assim por diante, repetidamente, muitas e muitas vezes, até que chegasse ao seu destino, e pudesse sentar-se. Então, primeiro ficando de pé sobre uma perna, depois sobre a outra, movendo-se para frente, um impetuoso tardígrado, em linha reta. Os joelhos, nessas ocasiões, não se dobravam. Podiam, mas não se dobravam. Não havia joelhos que se dobrassem melhor do que os de Watt quando queriam, não havia qualquer problema com os joelhos de Watt, como podia parecer. Mas durante as caminhadas eles não se dobravam, por alguma razão obscura. Não obstante esse fato, os pés caíam, calcanhar e sola juntos, chapados no chão, e o deixavam, pelas vias irregulares do vento, com manifesta repugnância. Os braços estavam satisfeitos com o bamboleio, em perfeita equipendência[7].

 

Kenner pôde concluir que Beckett é mais geral do que Joyce. Watt não avança para o leste da maneira que Bloom avança para dentro de casa. O movimento de Watt não se pode “verificar”. Ao mesmo tempo, Beckett é mais específico do que Joyce, pois qualquer homem poderia ter dado aquele salto de Bloom, mas apenas Watt poderia ter ido a leste como o fez. A razão estaria em que Beckett não trabalhava com fatos, como Joyce, mas com possibilidades (Kenner, pp. 80-81).

O legado de Joyce para Beckett também foi endossado por outro estudioso de Joyce, John Paul Riquelme (p. xxiv), que no ensaio introdutório ao livro de Fritz Senn, Joyce’s Dislocutions (As dislocuções de Joyce), ressaltou como Joyce escreveu, sobretudo em Finnegans Wake, em uma língua percebida como estrangeira mesmo pelos leitores que têm o inglês como língua materna, e como essa escrita configura “uma parte central do legado que Joyce deixou para o seu jovem contemporâneo mais criativo, Beckett, que escreve em inglês através do processo transformador de compor em outra língua”. Da mesma maneira que Joyce escreveu sua obra tardia em um inglês estrangeiro, Beckett, pelo artifício de se autotraduzir, teria se expressado em inglês “de formas surpreendentes e estrangeiras” (Riquelme, p. xxiv).

No Brasil, Dirce Waltrick do Amarante, em “Joyce e Beckett: pés diferentes no mesmo sapato”, ressalta justamente a complexidade gerada pelo encontro das obras dos dois irlandeses. A autora se concentra nos “aspectos comuns” entre os dois escritores, mas reconhece que “muitos estudiosos” valorizam principalmente as suas “diferenças” (Amarante, 2015, pp. 65-66). Qualquer que seja a abordagem, é válido lembrar a lição deixada por Ellmann em sua sequência de ensaios sobre Wilde, Yeats, Joyce e Beckett, nos quais o autor preferiu alertar para a complexa relação de Beckett com seus predecessores, pois Beckett, além de não representar o resultado previsível da leitura dos outros três irlandeses, ainda nos faz “considerar ou reconsiderar os escritores que o precederam” (Ellmann, 1985, p. 106).

 

  1. O inglês hibérnico

Para entender como Beckett recebeu a herança de Joyce, é preciso abordar também um tema tão fértil quanto o emprego do inglês hibérnico pelos dois escritores, que é ponto de encontro e desencontro entre Beckett e Joyce. O inglês hibérnico, isto é, o inglês irlandês, se manifesta na fala e na escrita particulares dos irlandeses e pode ser percebido na pronúncia, no vocabulário e na sintaxe. Normalmente, adquire maior ênfase e frequência no uso da língua em situações informais.

Vivian Mercier, em “Beckett’s Anglo-Irish Stage Dialects” (Os dialetos anglo-irlandeses de Beckett para o palco), analisou o dublinês nas obras dramáticas de Beckett. Resumidamente, o crítico demonstra que, no caso de Esperando Godot (En Attendant Godot é publicado em 1952, Waiting for Godot em 1956), o texto em francês é “mais idiomático e coloquial” do que sua tradução para o inglês (Mercier, 1971, p. 311). Mercier (1971, p. 312) cita o exemplo de “Ce serait un moyen de bander”[8], fala de Vladimir no primeiro ato da peça, que teria em inglês como equivalente informal “It’d give us a hard-on” (algo próximo a “deixaria a gente de pau duro”) ou “It’d make your micky stand for you”, ecoando o monólogo interior de Molly Bloom no Ulysses – “make his micky stand for him” (U 18.1509-1510)[9], que em uma das traduções par ao português passou a “pra fazer a coisinha dele ficar de pé” (Joyce, 2012, p. 1102) –, mas não “It’d give us an erection” (nos daria uma ereção), como fez Beckett (1986, p. 17) em sua autotradução para o inglês.

Analisando as peças de Beckett originalmente escritas em inglês – All That Fall (1957),  Krapp’s Last Tape (1958), Embers (1959), Happy Days (1961), Words and Music (1962), Play (1963) e Eh Joe (1966) –, Mercier (1971, pp. 312-314) constatou que o escritor não era dado ao uso do inglês coloquial, mas que em Happy Days o inglês hibérnico pode ser notado, principalmente na fala da personagem Winnie, como nos destaques da passagem a seguir: “Oh I know you were never one to talk, I worship you Winnie be mine and then nothing from that day forth only titbits from Reynolds’ News. […] Ah well, what matter, that’s what I always say, it will have been a happy day, after all, another happy day” (Beckett 1981, p. 46; meus itálicos, exceto por Reynolds’ News).

Quanto às quatro principais obras de Joyce – Dubliners (1914), A Portrait of the Artist as a Young Man (1916), Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939) –, a crítica não teve muito trabalho para descobrir nelas a presença do inglês hibérnico. Seriam inúmeros os casos a citar (cf. Hedberg; Wales).

O que poderia explicar o fato de Beckett não ter lançado mão do inglês hibérnico para traduzir uma expressão mais vulgar da língua francesa em Esperando Godot quando em The Old Tune (1960), sua adaptação para o inglês de La Manivelle, de Robert Pinget, é possível encontrar, na percepção de Mercier (1971, pp. 315-316), “algo do mais puro dialeto de Dublim”? Não posso arriscar qualquer resposta, mas vale chamar atenção para o fato de que no texto em inglês de Esperando Godot o inglês hibérnico se manifesta, por exemplo, pela omissão do pronome relativo that com valor de sujeito, como a que se encontra em “’Twas my granpa [that] gave it me” (Beckett, 1986, p. 46). Esta e outras ocorrência pude discernir com minhas limitações de falante de inglês como língua estrangeira. Mas, Nicholas Grene (p. 140) relacionou onze ocorrências em que o inglês hibérnico pode ser encontrado na mesma peça.

Talvez a crença na possibilidade, salientada por Kenner, possa explicar o desapego de Beckett por, digamos assim, inventariar os usos da língua pelos falantes dublinenses. Talvez tenha sido sua maneira de dizer, como na poesia de Emily Dickinson (pp. 60-61), “I dwell in Possibility —”, “Habito a Possibilidade —”, na tradução de Augusto de Campos. Ou a censura, oficial ou não, pode ter tido seu papel, considerando que Beckett, em 1953, suspeitava que fosse impossível montar na Irlanda a tradução integral de Esperando Godot para o inglês devido a “certas cruezas de linguagem” (Beckett, apud Grene, p. 137). A censura moral parece ter afetado Beckett e Joyce de formas distintas.

 

  1. Esperando Parnell

Em carta de 1906 escrita ao seu futuro editor Grant Richards, Joyce (1975, p. 88) afirmou que “Dia de hera na sala do comitê” (“Ivy Day in the Committee Room”) era seu favorito em Dubliners. Nele, as personagens interagem – aliás com marcante uso do dublinês – exclusivamente dentro do espaço fechado da sala do comitê, apenas iluminada pela lareira, que Jack, o zelador, tenta manter acesa com algum esforço, e por algumas velas. O cenário é minimalista: uma sala onde se encontram uma mesa pequena no centro com alguns papéis em cima, candelabros para ajudar na precária iluminação, no máximo …… cadeiras e a cópia de um discurso político afixado em uma das paredes. Joyce, talvez estrategicamente, não menciona a existência de janelas. Entre as oito personagens, duas entram e saem: o garoto e o padre Keon; seis entram e lá permanecem: o sr. Joe Hynes, que se ausenta por uns minutos e retorna antes do fim do conto, o sr. John Henchy, Crofton e Lyons; e apenas duas estão em cena desde o início do conto assim permanecem: Jack e o sr. O’Connor. O leitor toma conhecimento do que se passa do lado de fora apenas pelo relato de cada homem que entra. Sabe, por exemplo, que chove.

Pensando no conto como uma peça de teatro, verificamos que o espaço cênico é bem definido por Joyce: “Uma sala desnuda veio à visão […]. As paredes da sala eram vazias exceto pela cópia de um discurso eleitoral. No meio da sala estava uma pequena mesa sobre a qual papéis estavam empilhados”. O entra-e-sai de atores é bem orquestrado. Aliás, ao entrar em cena, o padre Keon é descrito como “Uma pessoa semelhante a um pobre clérigo ou um pobre ator”. Os efeitos da iluminação pelo fogo são indicados com precisão. É uma peça em um ato; dura o tempo de dois cigarros: o sr. O’Connor enrola o fumo, acende o primeiro cigarro, atira a guimba na lareira, enrola mais fumo, acende o segundo cigarro e, no fim do conto, parece estar se preparando para acender o terceiro.

Se o potencial cinematográfico de “Os mortos” (“The Dead”) já foi comprovado por John Huston em 1981, o apelo para o drama beckettiano de “Dia de hera” é o que demonstra Ray Leonard no artigo “A Committee Room. A Table. Evening: Using Beckett’s Waiting for Godot to Read Joyce’s ‘Ivy Day in the Committee Room’” (“Uma sala de comitê. Uma mesa. Fim de tarde: o uso de Esperando Godot, de Beckett para a leitura de ‘Dia de Hera na sala do comitê, de Joyce’”). Leonard imagina Beckett, ao terminar a leitura do conto de Joyce, perguntando-se como aquilo tudo se comportaria no palco.

Beckett imediatamente retiraria todos os elementos supérfluos, ficando apenas com a mesa. A “estrutura da ação” seria mantida. Quanto às personagens, oito seria um número exagerado. O conto de Joyce termina com seis pessoas no mesmo espaço, dificultando a marcação. Beckett manteria apenas Hynes, Henchy, o padre e o garoto. Hynes e Henchy estariam, no final das contas, apenas esperando pela cerveja que estava por ser entregue. Beckett retiraria as personagens da sala e as levaria para o meio de uma clareira perto de uma estrada, e acabaria optando por substituir a mesa por aquilo que a originou, isto é, uma árvore. (Leonard, pp. 33-34). Tudo absolutamente coerente no mundo criativo do dramaturgo que, como disse Tom Stoppard referindo-se a Esperando Godot, “redefiniu o ponto mínimo do que poderia ser o teatro. […] Historicamente, as pessoas davam por certo que para se ter um evento teatral válido era necessário trabalhar com x. Beckett fez isso com x-5” (Gussow, 1995, p. 6).

Para Leonard (p. 34), Esperando Godot e “Dia de Hera” têm em comum “o paradoxo de decidir esperar como meio de fazer alguma coisa em um contexto onde não há o que fazer”. Com a entrada de Beckett, o autor se propõe a fazer uma leitura distante da visão exclusivamente política, pós-colonial ou saudosista do conto de Joyce e afirma que Esperando Godot “oferece um esquema, um método de leitura para ‘Dia de Hera’” (Leonard, pp. 34-35).

É seis de outubro, Dia de Hera, aniversário da morte de Charles Stewart Parnell, ocorrida em 1891, e um grupo de homens reunidos na sala do comitê passa o tempo falando sobre as atuais eleições municipais em Dublim e discutindo se a Irlanda deve ou não receber a visita do Rei Eduardo VII. Em um ponto todos parecem concordar, que tudo seria diferente se o líder nacionalista estivesse vivo. Pelo que esperam, então, pela volta de Parnell, aquele cujo “espírito renascerá ao amanhecer”, como promete o poema lido por Hynes ao final do conto, ou pela cerveja, que finalmente é entregue por uma personagem identificada apenas como “um garoto” (a boy)? Enfim, eles esperam, pois o garoto (o mesmo garoto?) deve voltar no dia seguinte, como ordenou Jack.

 

Conclusão

Está claro que a relação entre Beckett e Joyce não pode ser entendida como a que se passa entre mestre e discípulo. Ambos escritores eram demasiadamente grandes e particulares para caberem nas funções de professor, no caso de Joyce, e aluno, no caso de Beckett. No contato entre Beckett e Joyce, dois irlandeses amantes do silêncio, que se compreendiam sem precisar dizer muito um ao outro, vida e obra se imiscuem e formam um texto denso, cheio de camadas, enigmas e curiosidades. Com este texto, tentei trazer quatro possibilidades de aproximação entre Beckett e Joyce. Muito ficou de fora, como algum comentário sobre More Pricks than Kicks (1934), obra de Beckett da qual já em 1938 o galês Dylan Thomas (p. 186), em certa medida outro herdeiro de Joyce, se lembrava “mais por Joyce do que por acaso”. Não tenho acompanhado, no Brasil, o estudo do diálogo entre as obras dos dois autores, mas a elaboração deste artigo me deu a impressão de que ainda há o que ser feito. Para citar um exemplo, um livro clássico e tão importante quanto Os comediantes estoicos ainda não foi traduzido para o português. Em vez de esperar, vamos fazer alguma coisa. Vamos entrando, por que não?

 

 

 

Obras citadas

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[1] Todas as traduções realizadas para este artigo são de minha responsabilidade. Os créditos das demais encontram-se nas “Obras citadas”.

[2] Na versão de Ellmann, Lucia teria convidado Beckett para jantar em seu apartamento enquanto seus pais estavam fora.

[3] Finnegans Wake é dividido em quatro livros, cada um com respectivamente oito, quatro, quatro e um capítulo. As referências à obra são feitas por meio dos números de página e linha separados por um ponto, como de praxe.

[4] “Mas a montagem mensual flui ao meliodia do dia, eu sou (panta vintenove mimos) todas essas coisas. No alto, tesa na frente; rebaixada, frouxa, sonhos e tamborilar nas costas delas e um estalo de seu apito. Que é isto, Ó holytrúpecas? Isol lhe deu pista?” (Joyce, 2002, p. 21). Os cinco volumes da tradução de Donaldo Schüler têm paginação própria, mas também conservam, no rodapé, entre colchetes, a paginação-padrão de Finnegans Wake).

[5] José Roberto O’Shea, que coordenava a mesa redonda, pediu oportunamente que observássemos a diferença prosódica sugerida pela grafia das duas reações: “what’s that?” no manuscrito e, posteriormente, “what is that?” na versão publicada. A forma manuscrita, ao ser pronunciada, aproxima-se mais de uma reação espontânea do que a forma final, o que ajuda a sustentar a explicação de Staples.

[6] “Resting his feet on the dwarf wall, he climbed over the area railings, compressed his hat on his head, grasped two points at the lower union of rails and stiles, lowered his body gradually by its length of five feet nine inches and a half to within two feet ten inches of the area pavement and allowed his body to move freely in space by separating himself from the railings and crouching in preparation for the impact of the fall” (U 17.84-89).

[7] “Watts’s way of advancing due east, for example, was to turn his bust as far as possible towards the north and at the same time to fling out his right leg as far as possible towards the south, and then to turn his bust as far as possible towards the south and at the same time to fling out his left leg as far as possible towards the north, and then again to turn his bust as far as possible towards the north and to fling out his right leg as far as possible towards the south, and then again to turn his bust as far as possible towards the south and to fling out his left leg as far as possible towards the north, and so on, over and over again, many many times, until he reached his destination, and could sit down. So, standing first on one leg, and then on the other, he moved forward, a headlong tardigrade, in a straight line. The knees, on these occasions, did not bend. They could have, but they did not. No knees could better bend than Watt’s, when they chose, there was nothing the matter with Watt’s knees, as may appear. But when out walking they did not bend, for some obscure reason. Notwithstanding this, the feet fell, heel and sole together, flat upon the ground, and left it, for the air’s unchartered ways, with manifest repugnancy. The arms were content to dangle, in perfect equipendency” (Beckett, pp. 30-31).

[8] Em francês:

Estragon: Si on se pendait ?

Vladimir : Ce serait un moyen de bander.

Estragon (aguiché) : On bande ?” (Beckett, 1973, p. 21).

[9] (U 18.1509-1510) deve ser lido como Ulysses, capítulo 18, linhas 1509 e 1510, como é comum citar a partir da edição de Hans Walter Gabler.