Esculturas verbais: a poesia de Carl Andre e Richard Long – Sérgio Medeiros

ESCULTURAS VERBAIS: A POESIA DE CARL ANDRE E RICHARD LONG

                                                          Sérgio Medeiros*

 

       O volume intitulado Serra Brancusi, publicado em 2011, propõe uma discussão sobre a escultura moderna e contemporânea justapondo as esculturas em mármore, bronze, madeira e gesso do mestre romeno às esculturas em aço do artista norte-americano Richard Serra (1939-    ), que é definido ali como um escultor minimalista, enquanto Constantin Brancusi (1876-1957) reafirma sua posição de pai da escultura moderna. Esse diálogo entre os dois artistas amplia uma declaração do norte-americano, que afirmou, ao rememorar seus anos de formação, ter realizado desenhos no estúdio de Brancusi, preservado, com várias esculturas famosas, em Paris – ele o teria visitado quase diariamente durante um mês, pois, nessa ocasião, começara a perceber a obra do seu predecessor como um manual ou guia pleno de valor potencial.[1]

         Gostaria de discutir esse papel de guia que Serra atribui a Brancusi mostrando, a seguir, como outro nome importante do minimalismo, aqui entendido grosso modo como um tipo de abstração surgidoem Nova York e Los Angeles durante os anos 1960, reivindicou “A coluna infinita” de Brancusi como um modelo a ser copiado e reinventado naquele momento. Refiro-me ao também norte-americano Carl Andre (1935-   ), que transformou, nos anos 1960, a coluna de Brancusi num poema visual, ou numa escultura verbal, alargando as fronteiras do que se entendia então por escultura. Andre é um minimalista, não sei se o único, que não abriu mão do termo “escultura”. Na mesma época, um artista britânico, sem se referir diretamente à obra de Brancusi, criava, na Inglaterra, um tipo de escultura verbal que espero poder justapor à de Carl Andre e, quem sabe, à mítica “A coluna infinita” já mencionada. Trata-se de Richard Long (1945-    ), cuja obra pressupõe o registro fotográfico, uma estratégia que Brancusi também adotou em seu estúdio parisiense para criar esculturas “móveis” (chamadas “grupos móveis”), após receber breves lições de Man Ray. Situado entre o minimalismo e a arte conceitual, a obra de Richard Long não se encaixa bem nessa última denominação, mas com certeza dialoga com algumas das criações mais fundamentais de Carl Andre.

       Em suma, Brancusi, quase se pode concluir, não apenas representa a escultura abstrata do início do século XX, como anuncia, pioneiramente, uma postura estética que apenas os anos 1960 explorariam em toda a sua radicalidade, se considerarmos, como pretendo fazer, as obras de Andre e Long, e claro, também a de Richard Serra, da qual, no entanto, não poderei falar aqui. Não falarei porque sua obra não explora, até onde sei, a escultura verbal que gostaria de relacionar diretamente com “A coluna infinita” de Brancusi, embora o seu poema verbovisual “Verb List 1967-68” pudesse ser lembrado aqui.

       Começarei com as esculturas verbais de Carl Andre. Esse artista, no início de sua carreira, estava interessado principalmente em poesia moderna: leu com proveito Ezra Pound e os poetas chineses que este traduziu para o inglês a partir dos trabalhos do linguista Ernest Fenollosa.[2] Andre confessou numa carta de 1963 a Reno Odlin que tinha vocação para a poesia no sentido religioso da palavra.[3] Assim, confirmando essa vocação, sua obra poética, ainda que algo “invisível” se considerarmos o conjunto de sua produção como escultor, representa um sério investimento naquilo que ele certa vez chamou de “qualidade das palavras”, considerando-a como uma das suas preocupações como poeta.[4] Não encontrei ainda um livro que reunisse toda a poesia de Carl Andre, embora haja reproduções de poemas visuais importantes desse artista nos livros dedicados à sua escultura.

       Não apenas a produção poética de Pound, mas também a sua produção ensaística foi importante para Andre nesse início dos anos 1960. Ele leu evidentemente, entre outros escritos de Pound, o pioneiro ensaio que este dedicou à obra de Brancusi[5] e, depois disso, passou a considerar o poeta norte-americano como o primeiro crítico de escultura no século XX, algo amplamente reconhecido, aliás, pelos especialistas.

       Publicado originalmente em 1921, o ensaio de Pound destaca, entre outros aspectos relevantes da obra de Brancusi, o processo de purificação da figura, ou seja, a “revolta” da sua arte contra o retórico e o colossal na escultura. Brancusi abandonou, segundo Pound, um certo tipo de monumentalidade e de solidez que herdara do passado e enveredou, em diálogo com a chamada “arte primitiva”,  por uma pesquisa em torno do aéreo, de que resultou, entre outras obras hoje clássicas, seus famosos pássaros, formas abstratas como longas hélices pousadas em bases diminutas. O escultor declarou certa vez, não por acaso, que procurara durante toda a vida a essência do voo.[6] Mais do que isso, ao fazer uso também da forma ovóide abstrata, Brancusi teria, segundo avaliou Pound, proveitosamente meditado sobre uma forma pura que fosse livre de todo peso e que, em sua liberdade, se assemelhasse às formas da geometria analítica. De certo ângulo, essa forma ovóide pareceria levitar, fora ou acima do pedestal…

 

L’Oiseau dans l’espace, 1941, bronze poli, Centre Pompidou, Paris 

       De mármore ou de bronze polido, os pássaros e os ovos de Brancusi não esgotam a sua contribuição à escultura do século XX. Caberia citar agora a mítica obra que conhecemos em diferentes versões sob o título “A coluna infinita”, a qual Carl Andre teria tentado colocar, a certo momento, deitada no chão, dando origem, assim, ao seu minimalismo a meu ver mais brancusiano, aquele que se espalhou para fora das galerias e ganhou o ar livre. Mas não apenas isso: o escultor norte-americano também buscou transformar a coluna num poema visual, numa escultura verbal, conforme podemos ver numa série de escritos dos anos 1960 em diante.

       A coluna de Brancusi não é uma obra única, mas um conjunto de esculturas que varia muito em tamanho e que, ao atingir sua altura máxima, em data posterior ao ensaio de Pound, reintroduziu o monumento na arte moderna, mas inserindo na solidez vertical uma forte ondulação. A obra “Pássaro no espaço” tampouco é obra única, mas uma série. O conceito de série é fundamental para Brancusi, assim como também será fundamental para Carl Andre e todo o movimento minimalista, que dispôs no chão ou sobre paredes unidades idênticas, num processo repetitivo ou serial.

       A construção do “voo vertical”, por meio do mármore e do bronze cuidadosamente polido (em certo sentido a escultura parece ter sido feita por uma máquina e não por mão humana), exigiu, é claro, para que a obra ficasse em pé, uma base ou um pedestal, na elaboração do qual Brancusi investiu grande esforço artístico, de modo que essa base acabou adquirindo um valor equivalente ao da própria escultura que pousava sobre ele. A escultura parecia às vezes, em razão do tamanho diminuto ou do caráter heteróclito da base, à beira do desequilíbrio.

 

       Endless Column Version I, 1918, oak, The Museum of Modern Art, New York

       Esse pedestal, essa base, não só variava em sua forma, como também poderia não ser simples, mas um conjunto de duas ou três peças sobrepostas, recorrendo o escultor, neste caso, a materiais como madeira, pedra, mármore… A base de madeira, em contato com o chão, por exemplo, poderia ser em zigue-zague, anunciando ou sugerindo uma sequência de formas romboidais, a qual só se concretizaria, porém, em toda a sua força expressiva, mais tarde. Contrastando com a escultura perfeita e luminosa, a rústica base que, no seu formato mais simples, é constituída, podemos afirmar, apenas de duas “pirâmides” em madeira, ou de um rombóide, já pode ser considerada uma manifestação inicial da coluna que será a marca registrada da maturidade de Brancusi. Com o passar dos anos, essa figura de um romboide se tornará o princípio construtor das bases mais típicas e gerará, finalmente, uma escultura independente, que passará a ser exibida sozinha, enquanto manifestação cabal de uma coluna vertical que, idealmente, como falarei, tenderá ao infinito. Numa versão ao ar livre nos arredores de Paris, a coluna foi esculpida no tronco de uma árvore e atingiu sete metros de altura, e, posteriormente, numa versão erguidaem Târgu Jiu, na Romênia, em 1937, ela foi feita de ferro fundido e aço e  alcançou quase 30 metros de altura. Ou seja, os seus módulos, todos idênticos entre si, foram se multiplicando ao mesmo tempo que aumentavam de tamanho. Fiel à estratégia de repetir uma forma básica numa sequência ininterrupta que tenderia ao infinito, Brancusi chegou a sonhar em erguer em Chicago, como coroamento da sua arte, uma coluna que teria inicialmente cerca de 400 metros de altura e que seria, na verdade, um aranha-céu sem fim, ao qual cada nova geração acrescentaria um novo módulo…

       Podemos resumir agora os avatares da coluna infinita: inicialmente, simples pedestal para o pássaro que voa, depois uma coluna independente de madeira ou mármore e, finalmente, um monumento de altura crescente. Na condição de audacioso projeto arquitetônico, a coluna infinita chegou a interessar a pelo menos um magnata norte-americano, que quis erguê-la nos Estados Unidos, país que reconheceu antes da França a importância da obra de Brancusi.

 

       Endless Column/La colonne sans fin, 1937, Târgu Jiu, Romênia

       O minimalismo, conforme se sabe, aboliu o pedestal e colocou a escultura diretamente no chão, às vezes não exatamente em pé, mas deitada, conforme vemos, obviamente, nas construções de Carl Andre, cujo projeto artístico consistiu, num dado momento, em deitar a coluna infinita que ligava o Céu à Terra. Mas, antes de deitar a coluna infinita, Carl Andre propôs em madeira algumas variações desse monumento em pé, explorando a sua ondulação, ou seja, o seu perfil em zigue-zague– este é criado, no caso da versão original de Târgu Jiu, pela repetição de 15 módulos romboidais inteiros, mais um sexto cujas metades são separadas horizontalmente. Uma das metades toca o chão sugerindo estar nele enterrada, enquanto a outra metade aponta para as nuvens, como se estivesse enterrada no azul. Temos aqui o apogeu da série, algo que guiará o modus operandi dos artistas minimalistas, como já disse. Além das versões em madeira, o escultor norte-americano também esboçou uma coluna infinita feita de palavras e criou, assim, uma poderosa versão verbal da obra de Brancusi, a qual se tornou um de seus textos visuais mais conhecidos.                      

       Datilografado numa folha simples e trazendo no alto o seguinte título: “Essay on Sculpture for E C Goossen 1964”, Carl Andre oferece ao leitor/espectador uma sequência vertical de 91 substantivos, divididos em duas colunas “em pé”. As palavras foram cuidadosamente distribuídas de modo que ambas as colunas ganhassem uma ondulação em zigue-zague equivalente àquela criada pela série de figuras de romboides sobrepostos que é a matriz estrutural da coluna infinita erguida num parqueem Târgu Jiu, Romênia. No entanto, Carl Andre cortou de cima a baixo a coluna de Brancusi, oferecendo ao leitor não os losangos originais, mas, podemos supor, a metade de cada módulo, como se o monumento tivesse sido dividido cirurgicamente a partir de seu eixo central. A segunda coluna espelha a primeira, mas não é a parte que falta: não podemos juntar as duas para reconstituir a coluna plena de Brancusi. A primeira coluna é feita de 46 palavras, e a segunda, de 45.

Essay on sculpture for E. C. Goossen, 1964

       Gostaria de chamar a atenção para as palavras da primeira coluna, mas não é simples traduzi-las para o português, pois têm mais de um significado e buscam registrar, no seu conjunto, a história da escultura tal como a entende Carl Andre: arco (linha curva); arco ou abóbada, ou colunata; nave de igreja, ou plateia de teatro, ou corredor ou galeria; ponte; banco ou margem; globo, esfera; caixa ou escaninho; viga, trave, suporte etc. Temos, nessa primeira coluna “em pé”, uma lista de palavras aparentemente não conectadas entre si, mas que, parece-me, ecoam aspectos decisivos tanto da obra de Brancusi quanto da obra de Carl Andre no campo da escultura, vista aqui de modo abrangente.

       Numa exposição de Carl Andre em Haia, na Holanda, em 1969, um “poem essay” de feitura similar foi impresso no catálogo, pois o artista percebera, nesse momento, uma relação entre a sua escrita poética e as suas esculturas, algo que os estudos mais recentes, aliás, também estão enfatizando. Alistair Rider chega a afirmar, num capítulo do livro Things In Their Elements, que Carl Andre, desde o princípio de sua carreira, nunca teria separado na verdade o poema visual da escultura abstrata, por isso ele foi levado, já no início dos anos 1960, por uma declarada aversão à prosa, ou por uma resistência ao comentário discursivo, a usar arranjos de palavras não conectadas logicamente entre si para descrever, ou apresentar, suas esculturas.[7] Em outros termos, o poema denominado “ensaio” teria se tornado, ao lado de outros que o artista escreveu na mesma época e também depois, num meio, supostamente claro ou eficaz, de introduzir o público no universo das esculturas abstratas. Neste caso, os poemas parecem anunciar e/ou elucidar aqueles trabalhos que o artista dizia comportarem essencialmente “a mere aggregation of particles”, uma mera combinação ou arranjo de partículas.[8]

       De fato, as duas colunas verbais, se agora as imaginarmos repentinamente “deitadas” — colunas infinitas no chão –, anunciariam, no plano conceitual, uma das esculturas mais clássicas de Carl Andre: refiro-me ao arranjo de tijolos refratários (de argila muito pura) colocados em fila no chão, arranjo que pode ondular se o chão for acidentado, como ocorre geralmente em áreas abertas (não evidentemente em galerias de arte) – deparamo-nos aqui com uma repetição “infinita” de uma mesma unidade, que é um “objeto encontrado” à maneira de Marcel Duchamp, o tijolo. A partir dessa constatação, pode-se afirmar que as listas de palavras aleatórias (aparentemente aleatórias) de Carl Andre procuram anunciar, descrever ou recriar a aparência de certos objetos precisos, ou seja, as esculturas abstratas do artista, que podem ser às vezes “listas” de tijolos ou de placas de metais, construções que não são sempre, porém, monocromáticas. Acredito que seja perfeitamente cabível relacionar esse poema visual aos “caligramas” de Guillaume Apollinaire e considerá-los similares a esses esboços de poesia visual do início do século XX, assim como também poderíamos relacioná-los à poesia concreta internacional (brasileira, alemão, norte-americana etc.)[9], embora Carl Andre afirme que o seu “ensaio” poético derivou principalmente de Pound, e, eu afirmaria, talvez de Cummings e William Carlos Williams, de quem ele foi também leitor. Gertrude Stein foi outra referência importante para Carl Andre, ao lado de James Joyce.

       Em suma, como conclui Rider, na obra de Carl Andre o texto e a escultura estão fundamentalmente ligados entre si de muitos modos. O mesmo diálogo, como ainda mostrarei, embora brevemente, também constato na obra de Richard Long, um artista contemporâneo de Andre que trabalha com palavras “para serem vistas”. Retomo, porém, o comentário do poema anterior.

       Chamo agora a atenção para a segunda coluna e para a sua tipografia, a qual, como a primeira, exibe uma margem denteada, ondulante, que presta um evidente tributo, como já afirmei, à coluna de Brancusi com seu perfilem zigue-zague. Nãome deterei, porém, no vocabulário dessa segunda coluna, que é um pouco menor do que a antecedente, mas podemos verificar, novamente aqui, que as palavras foram estrategicamente escolhidas contando-se o número de letras, a fim de que o desenho serrilhado à direita ficasse perfeitamente visível para o leitor.

       Num outro poema visual de 1965, “Conquest Display”, temos não duas colunas, mas cinco colunas de palavras datilografadas, dispostas de tal forma que as palavras criam, no espaço entre duas colunas cheias, uma coluna vazia; ou seja, neste caligrama, mais complexo que o anterior, letras e espaços em branco se somam para originar visualmente losangos. 

      

“Conquest Display”, 1965

       Lemos aqui, cabe ainda dizer, um poema “participativo”, vazado, digamos assim, num eu-coletivo, o mesmo que redigiu, quero crer, o poema-receita “Dream of the Monument for Che Guevara”, de 1968. Alguns textos de Carl Andre se servem de um vocabulário que, como neste exemplo, remete a um óbvio “contexto político”, enquanto o poema anterior circunscrevia sobretudo uma poética, o universo da arte escultórica. Nos dois casos, embora as palavras não estejam conectadas entre si como numa frase ou sentença, provêm, no entanto, de um imaginário que podemos considerar homogêneo, por isso a escolha das palavras de cada lista específica — universo político e universo estético — se torna, do ponto de vista semântico, menos casual do julgaríamos à primeira vista.

       Das listas de palavras gostaria agora de passar aos tijolos refratários que, reunidos em filas ordenadas no chão de uma galeria ou ao ar livre num jardim (neste caso eles certamente “ondularão” livremente, como afirmei), compõem algumas das esculturas mais características de Carl Andre. São esculturas que se arrastam pelo chão, como uma coluna deitada, e anunciam, além disso, algo que também caracterizará a obra de Richard Long, especialmente a sua poesia, que descreve os passos do artista que incansavelmente vão e vêm por gramados, estradas e áreas desérticas de difícil acesso, deixando neles um traço longo. 

 

Lever, 137 firebricks, 1966

  A respeito da ostensiva horizontalidade de seu trabalho, Carl Andre declarou: “Priapus is down on the floor”, aludindo às suas esculturas que, compostas de tijolos ou de placas de metal, escorrem pelo chão.[10] O longo traço no chão é também uma das características importantes do trabalho de Richard Long, cuja obra “A Line Made by Walking”, de 1967 — ela já foi considerada (e nisso ela não é diferente da obra também inclassificável de Carl Andre) Conceptual Art, Arte Povera, Performance ou Body Art, Land Art etc.[11]  –, consiste numa foto, não particularmente boa, tirada pelo próprio artista, do rastro feito por seus próprios pés num gramado, o que originou, neste caso, apenas uma longa linha que, se quisermos, poderia sugerir vagamente uma coluna infinita deitada. A arte de Long está na superfície da Terra sobre a qual ele caminha. Para conseguir o rastro, o artista andou sem parar, indo e vindo, durante vinte minutos, num campo fora de Londres.

       Depois dessa experiência, Long se firmou como artista em movimento constante e fez caminhadas cada vez mais longas, dentro e fora da Inglaterra, e passou a visitar áreas desérticas ou de difícil acesso em diferentes países a fim de realizar performances em todos os continentes. Como predecessores de Long, poderia citar filósofos e artistas “andarilhos”, como, dentre os que mais admiro, Jean-Jacques Rousseau e os poetas japoneses Matsuo Bashô e Taneda Santoka, sem falar de Charles Baudelaire, mas a lista é enorme e não devo tentar ser exaustivo agora, porém sabemos o quanto o pensamento e a caminhada podem estar indissoluvelmente ligados na cultura do Ocidente e do Oriente[12]. A arte contemporânea (para ficarmos só nela) deve parte de seu impulso à caminhada solitária de artistas como Richard Long, que é nosso tema, um artista que busca tocar o mundo de diferentes maneiras, com os pés e as mãos. Mais recentemente, um artista brasileiro, Marcelo Moscheta (1976-    ), vem-se destacado entre os “artistas viajantes” do século XXI. Desses artistas contemporâneos, pode-se afirmar que estão ligados à Land Art dos anos 1960 e 1970, e certamente dialogam com Richard Long.

       Acredito ver um reflexo do monumento sinuoso de Brancusi numa fotografia de Richard Long de 1988, portanto muito mais recente do que a mencionada anteriormente, que é de 1967 – nessa segunda foto os pés do artista não seguem a linha reta, mas exploram o terreno como que casualmente, criando um tipo de zigue-zague ou de percurso torto, caprichoso, sem rumo certo. Sobretudo, a foto destaca o isolamento do artista, que parece ter escolhido a completa solidão para realizar essa escrita no chão de uma área remota do Saara. Como provavelmente poucos o acompanhavam, apenas a foto testemunha a existência dessa obra efêmera, que o vasto deserto, logo depois de tirada a foto, apagou ou diluiu. Brancusi, lembro mais uma vez, foi um escultor que utilizou sistematicamente, no início do século passado, a câmera fotográfica como um elemento integrado à escultura. Nas mãos dele, a câmera se tornou um precioso instrumento que lhe permitiu compor e recompor esculturas e pedestais, criando no estúdio, diante da lente, diferentes configurações de peças nômades, que pareciam em eterno movimento naquele espaço do qual ele relutava afastá-las.

 

“Walking Without Travelling: The Sahara, 1988”

       “Unlike some land artists, he has never made permanent changes to the land or moved great quantities of earth”, lemos no prefácio de Walking the Line, de Richard Long, livro volumoso e esplêndido que traz, além de fotos das suas caminhadas pelo mundo, também textos e poemas que escreveu nessas ocasiões.[13] Pois o registro de seus deslocamentos pela Terra não é apenas fotográfico, mas também verbal. E, às vezes, exclusivamente verbal. O que sobra da performance é um texto que será posteriormente oferecido ao leitor/espectador. Nesses textos e poemas constatamos que Long não está apenas tocando o chão com os pés, mas também com as mãos. Numa dada performance, por exemplo, ele poderá chutar pedras a fim de criar uma linha na paisagem, ou segurar pedras nas mãos, levando-as a seguir de um lado para outro, antes de depositá-las novamente no chão. O brasileiro Marcelo Moscheta realizou há pouco uma expedição artística ao deserto de Atacama, no Chile, onde, como foi amplamente divulgado dias atrás, alinhou pedras e as fotografou, realizando um gesto similar ao de Richard Long.[14]

       Não posso deixar de citar aqui um conhecido poema em prosa de Jorge Luis Borges que é um pequeno exemplo de Land Art, talvez um dos mais perfeitos que conheço, e uma prova de que seu autor foi genuinamente um “poeta andante”, tal como Richard Long, para quem o mundo se move e o artista também, e a escultura pertence ao reino do imaterial, pois é um traço que não perdura, já que logo desaparece, e outra coisa não se espera dela:

 

“O deserto 

 

“A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide me inclinei, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais adiante e disse em voz baixa: Estou modificando o Saara. O ato era insignificante, mas as palavras nada engenhosas eram justas e pensei que fora necessária toda a minha vida para que eu pudesse pronunciá-las. A memória daquele momento é uma das mais significativas de minha estadia no Egito.”[15]

 

       Para encerrar esta breve apresentação da obra de Richard Long, citarei um poema do artista inglês que descreve sua estada em Portugal, país que ele percorreu a pé, assim como, no início do século XX, Costantin Brancusi também havia percorrido a pé parte da Romênia e da Alemanha para chegar a Paris, seu destino final. O poema é um registro de uma performance realizada na primavera de 2001, e descreve as pedras que o artista empilhou ao longo de um percurso de 430 milhas, passando por diferentes localidades, devidamente nomeadas no poema. Diria desta obra que se trata de longa escultura feita com os pés que reuniu à margem do caminho várias outras esculturas de pedras feitas com as mãos, e tudo isso foi objetivamente registrado no poema final, que é fiel espelho da caminhada.

 

“Portuguese Stones, Spring 2001” 

       Diferentemente de alguns poemas que Carl Andre escreveu nos anos 1960, datilografando-os em folhas que o artista depois expôs e divulgou, permitindo quase sempre que se fizesse deles apenas uma ou outra cópia com papel-carbono, os textos de Long são, parece-me, muito mais acessíveis de modo que o leitor de hoje pode lê-los nos livros e nas paredes de galerias e museus como textos impressos convencionais, em diferentes cópias e tamanhos. Num ensaio esclarecedor, Paul Moorhouse afirma que a obra de Long tem sido avaliada como uma redefinição radical dos limites da escultura, porém, mais do que isso, parece-me importante destacar, desse texto, a observação do crítico segundo a qual a obra imaterial de Long não teria acontecido se a caminhada não tivesse sido realizada por ele, se o corpo do artista não tivesse realmente se deslocado pelo tempo e pelo espaço. Ou seja, a sua obra de arte tem, sim, uma existência concreta, ainda que breve, e não deveria ser considerada arte conceitual no sentido estrito do conceito.[16]

       Além de fotos e textos, Long também tem se servido de outras estratégias para registrar os traços reais de suas caminhadas pela Terra, como, por exemplo, mapas, mas esse assunto ficará para outra ocasião, assim como ficará para outra ocasião a análise do poema mais ambicioso de Carl Andre, “America Drills”, cujo tema mais visível é a violência da colonização da América do Norte e o extermínio de parte de sua população indígena, inclusive dos seus nomes, que o poema recupera.     

 

[Este texto foi lido no dia 6 de junho de 2013, no Congresso Internacional “Coleções Literárias: Textos/Imagens, realizado na UFSC, Florianópolis (SC).]          

 

* Poeta, ensaísta, tradutor e professor de literatura na UFSC.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ALZUGARAY, Paula. “Sociedade de artistas exploradores”. Revista Isto É, São Paulo: Editora Três, 29 de maio de 2013

ANDRE, Carl. Cuts: Texts 1959-2004. Cambridge: The MIT Press, 2005

BORGES, Jorge Luis e María Kodama, Atlas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010

LONG, Richard. Walking the Line. Nova York: Thames & Hudson, 2002

MEDEIROS, Sérgio. O choro da aranha etc. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013

POUND, Ezra. Literary Essays. Nova Tork: New Directions, 1968

RIDER, Alistair. Carl Andre: Things In Their Elelements. Londres: Phaidon Press, 2011

ROELSTRAETE, Dieter. Richard Long: A Line Made by Walking. Londres: Afterall Books, 2010

SOLNIT, Rebecca. Wanderlust: A History of Walking. Nova York: Penguin Books, 2000

TABART, Marielle. Brancusi: L’inventeur de la sculpture moderne. Paris: Galimmard, 1959

WICK, Oliver. Serra Brancusi. Ostfildern/Alemanha: Hatje Cantz Verlag, 2011        



[1] Serra Brancusi, Olivier Wick, editor (Hatje Cantz), p.19.

[2] Carl Andre: Things In Their Elements, Alistair Rider (Phaidon Press), p. 145-148.

[3] Cuts: Texts 1959-2004, Carl Andre (The MIT Press), p. 192.

[4] Cuts, op. cit., p. 196.

[5] “Brancusi” in Literay Essays, Ezra Pound (New Directions), p. 441-445.

[6] Brancusi: L’inventeur de la sculpture moderne, Marielle Tabart, p. 59

[7] Things In Their Elements, p.133 e seguintes.

[8] Idem, p. 73.

[9] Idem, p.138 e seguintes.

[10] Não abordarei aqui a dramática relação de Carl Andre com a artista cubana Ana Mendieta. O final trágico de Mendieta, lido à luz da obra de Andre, é assunto do meu livro de poesia O choro da aranha etc. (7Letras), ao qual remeto o leitor.

[11] Richard Long: A Line Made by Walking, Dieter Roelstraete (Afterall Books), p. 2.

[12] Wanderlust: A History of Walking, Rebecca Solnit (Penguin Books).

[13] Walking the Line, Richard Long (Thames & Hudson, p. 9

[14] “Sociedade de poetas exploradores”, Paula Alzugaray (revista Isto É), 29 de maio de 2013, p. 126-7.

[15] Atlas, Jorge Luis Borges com María Kodama (Companhia das Letras), p. 117.

[16] Walking the Line, op. cit., p. 32-33