Arquitetando o Espaço na Literatura: a pintura de Salvator Rosa no conto “O Anacoreta Serapião” – Isabela Marchi Bazan e Mariana Marchi Bazan

Arquitetando o Espaço na Literatura:  a pintura de Salvator Rosa no conto “O Anacoreta Serapião”

 

 

Isabela Marchi Bazan*

e

Mariana Marchi Bazan*

 

 

O presente artigo tem como objetivo apresentar as afinidades entre o pintor italiano Salvator Rosa e o escritor alemão E.T.A. Hoffmann, nascidos respectivamente nos séculos XVII e XVIII. No conto Der Einsidler Serapion (1819), o autor alemão recorre aos afrescos do italiano, este distintamente mencionado na obra¹, a fim de arquitetar o espaço da narrativa. Pretende-se primeiramente descrever  um dos quadros do artista barroco, visto que esse remete ao início do conto e também traçar uma breve biografia do pintor. Em seguida, serão apontadas algumas teorias a respeito do espaço como elemento da narrativa, para enfim serem relacionadas as duas obras.

Nascido em julho de 1615, na cidade de Arenella, aos arredores de Nápoles, Salvator Rosa foi pintor, ator, poeta e músico do Barroco. Tal movimento cultural e artístico foi marcado pelas angústias e incertezas do homem europeu, que desdobraram-se das tensões religiosas da época, as quais eclodiram a partir da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, liderada pela Igreja Católica.

Esse estilo artístico surgiu na Itália no final do século XVI e início do século XVIII, período no qual destacaram-se grande nomes como Caravaggio, Velázquez, Rembrandt e Vermeer. Assim como o primeiro, “homem de temperamento impetuoso e irado, extremamente suscetível à menor ofensa e até capaz de apunhalar um desafeto“ (GOMBRICH, 2015, p. 391), Rosa se revelou um artista de forte personalidade. Consoante à romancista irlandesa Lady Morgan (1855), Rosa combinava em suas obras os elementos supremos com os mais nobres instintos do homem intelectual, e desenvolvia suas grandes habilidades artísticas com espírito de independência e também com impávida resistência às perseguições despóticas e às intrigas de rivais. Em resposta a um patrocinador em 1666, o pintor afirmou:

“Eu não pinto para enriquecer a mim mesmo, mas puramente para minha própria satisfação. Eu preciso me permitir ser arrebatado pelo entusiasmo e usar meus pincéis somente quando me sentir extasiado”. (SCHARFSTEIN, 1919, p. 206, tradução nossa)

Devido a suas distintas características, Rosa também aparece como herói no conto Signor Formica, parte da coleção Die Serapionsbrüder, escrita por Hoffmann.

Reflexo da personalidade e também do contexto histórico, as telas do italiano retratam, em sua grande maioria, paisagens envoltas por mistérios e com fortes contrastes entre luz e sombra que desencadeiam uma atmosfera dramática e sinistra. Outra peculiaridade do movimento barroco recorrente nas obras do pintor é a intensa espiritualidade, tais como cenas de martírio, êxtase e aparições miraculosas representadas respectivamente em The Martyrdom of St. Bartholomew2, St. Francis in Ecstasy3, estetambém reproduzido por Caravaggio e considerado o nascimento da arte barroca, e Tobias and the Angel4. Nota-se ainda a frequente reprodução da figura de heremitas como em Landscape with a Hermit5, Hermit Contempling a Skull6 e Diogenes throwing away his drinking cup7, este centrado na figura de Diógenes de Sinope, filósofo grego que abdicou de todos os bens materiais e passou a morar em extrema miséria nas ruas da cidade de Atenas pregando sua filosofia de auto-suficiência e buscando o que chamava de “homem de verdade”, ou seja, aquele que vivesse sua essência.

 

A pintura

 

Criada por volta do ano de 1640, a obra Landschaft mit Reisenden8,de Salvator Rosa, reproduz uma cena, na qual dois viajantes montados a cavalo certamente perguntam a três prováveis camponeses alguma direção. No plano de fundo, observa-se o entardecer marcado por cores claras e vibrantes, tais como as nuvens brancas e alaranjadas, o azul-celeste e montanhas também azuladas cujo delineamento impreciso se confunde com o céu. Tais elementos contrastam fortemente com o primeiro plano, onde nota-se o predomínio de cores sóbrias e monocromáticas, como tons de marrom e verde, os quais ilustram a natureza. A reprodução de árvores grandes de troncos curvados e volumosas folhagens criam um ambiente sinistro, melancólico e misterioso devido às sombras que projetam no solo, implicando, portanto, uma paisagem desalumiada. Contudo, percebe-se no solo a diminuta quantidade de grama e a existência de pedras de diferentes formatos e tamanhos, entre nas quais se escoram os três camponeses. O primeiro deles, situado mais ao fundo e à esquerda, está sentado e debruça seu braço direito sobre uma das rochas. Apesar de praticamente encoberto pelas sombras das árvores, nota-se que ele veste um chapéu bege e uma camisa branca, possui barba comprida e loura, pele caucasiana e aparência jovem, e direciona seu olhar a um dos viajantes. À sua direita, encontram-se uma ferramenta agrícola e um cesto coberto por uma toalha, provavelmente disposto com alimento. Ainda à direita, faz-se notar o segundo camponês, porém em pé sobre uma pedra grande, a qual o mantém numa posição ereta e à mesma altura que os viajantes montados a cavalo. Esse traja calças brancas, uma camisa vermelha rasgada e um chapéu bege e grande. Seus pés estão descalços, sua pele também é caucasiana e seus cabelos são negros, e assim como o primeiro, aparenta estar na juventude. Seus braços estão cruzados para trás e uma mão segura um de seus pulsos, o que transmite a ideia de destemor e tranquilidade em relação aos viajantes, assim como seu olhar direcionado a eles. Bem como o primeiro camponês descrito, o terceiro também se senta sobre uma das pedras, apoiando-se nesta com a mão direita, enquanto faz um apontamento com a esquerda. Ele veste um casaco amarelo repleto de rasgos, calças beges, botas compridas e um chapéu azul. Sua pele é clara e seus cabelos e barba grisalhos, o que indica sua idade mais avançada, também evidenciada por sua postura curvada. Sua cabeça e seu olhar estão direcionados aos homens a cavalo, os quais também mantêm contato visual com o senhor. O viajante mais ao fundo monta num cavalo marrom e de grande porte. Diferentemente da simplicidade dos camponeses, este cavaleiro traja uma camisa azul, chapéu bege, calças marrons, botas, um lenço branco em volta do pescoço e carrega consigo uma fita dependurada em seu peito e uma bolsa, na qual apóia as mãos. Percebe-se por meio de sua feição, que sua atenção está completamente direcionada ao camponês mais velho, embora provavelmente não seja ele quem dialoga com o senhor, mas sim o viajante a cavalo branco, o qual com sua mão direita aponta para as montanhas. Esse veste uma camisa caqui atravessada por uma fita, um lenço branco em volta do pescoço, um chapéu bege adornado por penas azuis, botas marrom escuro com esporas, e um pano vermelho que aparentemente segura com as mãos. Por causa de seu posicionamento, pouco se vê de seu rosto, apenas o nariz e os cabelos compridos que caem sobre o lenço. Devido ao contraste entre a cor de seu cavalo e as cores de seus trajes, de preponderância sóbria,  nota-se um maior destaque a este cavaleiro, além de estar posicionado no centro da obra.

Em contraposição à robustez dos cavalos,  há dois cães esguios e medianos que pouco são perceptíveis, devido às sóbrias cores de suas pelagens, e suas disposições inclinadas, partindo para um ponto menos elevado. Mais à frente, seguindo a direção do apontamento, há um casal provavelmente de camponeses. A mulher carrega sobre a cabeça um jarra e traja um vestido longo até as canelas. Ao seu lado esquerdo, encontra-se o homem, provavelmente seu marido, o qual carrega uma trouxa, usa um chapéu escuro, calças e uma camisa, e direciona seu olhar ao que a mulher carrega, talvez um objeto ou até mesmo uma criança enrolada numa toalha.  Ambos seguem em direção ao primeiro plano da pintura.

 

 O espaço

 

Segundo Luis Alberto Brandão (2007), o termo “espaço” é pertinente em diversos âmbitos do conhecimento, como na Física, na Geografia, na Filosofia e na Literatura. Nesta, porém, não se costuma questionar tal conceito, visto que frequentemente “é dado como categoria existente no universo extratextual […] atribuindo ao espaço características físicas, concretas”. Define-se, deste modo, espaço cuja criação é de autoria humana como cenário e espaço cuja existência independe do homem como natureza (BORGES, 2008). Entretanto, há também sentidos mais abstratos de níveis sociais e psicológicos. O último se estende à atmosfera ou ambiente, “ou seja, projeções, sobre o entorno, de sensações, expectativas, vontades, afetos de personagens e narradores […]” (BRANDÃO, 2007, p. 207), que se associam aos espaços físicos. Paralelamente a essas abstrações, a topoanálise se propõe a estudar o espaço como “instrumento de análise para a alma humana”  (BACHELARD, 1978, p. 197). Em A Poética do Espaço, o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard, toma a casa, abrigo fundamental à vivência do homem e, portanto, “um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem”, como meio de conhecer a essência da imaginação, ou ainda, imagem poética, descrita pelo autor como “um ser próprio, um dinamismo próprio” (ibidem, p. 183). Sob essa perspectiva, “a casa é nosso canto do mundo”  (ibidem, p. 200) e está “em nós assim como nós estamos” nela (ibidem, p. 197), ou seja, o conceito de casa não se restringe apenas ao concreto, ela se estende à abstração no sentido de memória e imaginação, sendo portanto, o indivíduo reflexo da casa e vice-versa. À vista disso, esse espaço muito nos revela acerca das personagens.

Como mencionado anteriormente, as produções artísticas de Rosa exercem influências bastante significativas na construção do espaço do conto Der Einsiedler Serapion. de E.T.A. Hoffmann. No início da narrativa, o narrador vagueia por uma floresta nas proximidades de B*** e subitamente se descobre desnorteado. Quanto mais andava, menos rastros humanos encontrava. De repente avista uma paisagem mais iluminada, onde se depara com um homem de longa e negra barba que veste um hábito eremita marrom, um largo chapéu de palha e encontra-se sentado numa rocha próxima ao pé de uma montanha com as mãos unidas numa postura reflexiva. Essa enigmática e intrigante figura provoca no narrador um leve arrepio, pois nunca vira algo daquela natureza, vista apenas em quadros ou conhecida somente por livros. O narrador compara, então, a cena a anacoretas do tempo da antiga cristandade reproduzidos por Salvator Rosa, reforçando, assim, a natureza selvagem e o ambiente de caráter sinistro e misterioso promovido pelo próprio espaço físico, ou seja, a floresta, e pela situação de agonia e espanto que a personagem experiencia. A passagem exposta remete, por conseguinte, à pintura descrita no começo do presente artigo, corroborando, desta maneira, as afinidades dos artistas. Nota-se as semelhantes minúcias entre as obras, tais como o contraste de luzes, ilustrado no quadro pelo entardecer no plano de fundo em contraposição às sombras das árvores no primeiro plano, e aludido pelo narrador ao subitamente se deparar com o clarão; o homem de longa barba sentado sobre uma rocha trajando um chapéu de palha e roupas de tons sóbrios, e a desorientação tanto dos cavaleiros quanto da personagem.

Páginas adiante, é delineado o espaço onde mora o eremita Serapião, o qual fora encontrado pelo narrador em seu jardim trabalhando com uma enxada e uma pá, em plena harmonia com os animais da floresta. Ao se aproximar, o eremita o conduz a um local musgoso próximo à sua cabana e para onde leva pão, um cacho de uvas e um jarro de vinho, os quais saboreia sentado sobre um pequeno banco de madeira. Nas palavras de Bachelard, “até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela” (ibidem, p. 200). Cabe a nós, pois, viver a primitividade dela, independente de sua riqueza, e para tanto é preciso apenas deixar-se guiar pelos sonhos. Em consonância a essa dimensão, a modesta cabana de Serapião, construída pelo próprio, pode nos revelar sua nobre concepção de vida, análoga à filosofia de Diógenes, citado anteriormente, o qual habitava um mero barril. Tal fato é inclusive ilustrado por Salvator Rosa no quadro Alexander before Diogenes9, o qual retrata o encontro entre Alexandre, o Grande, e o filósofo, à frente de sua habitação. Não somente a cabana, mas também a natureza é apresentada como moradia do eremita, corroborando a grandeza de sua visão de mundo.

Por fim, almejou-se por meio deste artigo esboçar relações entre as artes de Rosa e o conto Der Einsidler Serapion sob a perspectiva do espaço como elemento da narrativa. Depreende-se, assim, a relevância de se ater à organização do espaço, desde sua constituição mais concreta à mais abstrata, com o intuito de melhor compreendê-lo.

 

Bibliografia

 

BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. Trad. de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Disponível em: <http://charlezine.com.br/wp-content/uploads/2012/10/38-Bachelard-Cole%C3%A7%C3%A3o-Os-Pensadores-1978.pdf> Acesso em: 26 maio 2014.

BORGES, Ozíris Filho. Espaço e Literatura: introdução à topoanálise. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/067/OZIRIS_FILHO.pdf> Acesso em: 10 maio 2014.

BRANDÃO, Luis Alberto. Espaços Literários e suas Expansões. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_txt/ale_15/ale15_lab.pdf> Acesso em: 20 maio 2014.

GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Tradução de Álvaro Cabral. [Reimpr.]. – Rio de Janeiro: LTC, 2015.

HOFFMANN, E.T.A. Der Einsiedler Serapion. Disponível em: <http://www.zeno.org/Literatur/M/Hoffmann,+E.+T.+A./Erz%C3%A4hlungen,+M%C3%A4rchen+und+Schriften/Die+Serapionsbr%C3%BCder/Erster+Band/Erster+Abschnitt/%5BDer+Einsiedler+Serapion%5D> Acesso em: 8 maio 2014.

HOFFMANN, E. T. A. “O Anacoreta Serapião”. In: _____. Obras Primas. Tradução Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Estação Liberdade, no prelo.

LAMBERT, Gilles. Caravaggio: Um génio além de seu tempo. Köln: Taschen, 2010.

SCHARFSTEIN, Ben-Ami. Art Without Borders: A Philosophical Exploration of Art and Humanity. Chicago: The University of Chicago Press, 1919. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=o5iosEBJWfEC&printsec=frontcover&dq=ben+ami+scharfstein&hl=pt-BR&sa=X&ei=9KCDU7LMF-a-sQTou4GQBA&ved=0CE8Q6AEwBA#v=onepage&q=ben%20ami%20scharfstein&f=false> Acesso em: 12 maio 2014.

SYDNEY, Lady Morgan. The Life and Times of Salvator Rosa. London, 1855. Disponível em:<http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=8p4VAAAAYAAJ&oi=fnd&pg=PR1&dq=salvator+rosa&ots=S8MHHe7_ar&sig=pvBz4hN8g8lMfTv5Sonq11h2uOk#v=onepage&q=salvator%20rosa&f=false> Acesso em: 12 maio 2014.

1 “[…] Pois lá estava sentado à minha frente, em pessoa, o anacoreta dos velhos tempos da cristandade, nas selvagens montanhas de Salvator Rosa.”.

2 ROSA, Salvator. The Martyrdom of St. Bartholomew. Data incerta. Harrach Collection, Rohrau.

3 ROSA, Salvator. St. Francis in Ecstasy. Data incerta. Óleo sobre tela. 66.675 x 49.53 cm. The Phillips Collection, Washington, Estados Unidos.

4 ROSA, Salvator. Tobias and the Angel. Óleo sobre tela 236, 7 x 339,3 cm. National Gallery, London, United Kingdom.

5 ROSA, Salvator. Landscape with a Hermit. 1660. Óleo sobre tela. National Gallery, London, United Kingdom.

6 ROSA, Salvator. Hermit Contemplating a Skull.1640-1649.Óleo sobre tela.Christ Church, University of Oxford.

7 ROSA, Salvator. Diogenes throwing away his drinking cup.1651.Óleo sobre tela. Statens Museum for Kunst, Dinamarca.

8 ROSA, Salvator. Landscape with travellers asking the way. 1640. Óleo sobre tela.108,03 x 174,2 cm. National Gallery, London, United Kingdom.

9 ROSA, Salvator. Alexander before Diogenes. 1643. 56,2 x 39,8 cm. 1662. Victoria and Albert Museum, Londres, Reino Unido.

 

* As autoras são mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Literatura (PPGLit) da UFSC.