Etnopoética: da Vanguarda à Poesia “Primitiva” – Dirce Waltrick do Amarante
Florianópolis, 06 de junho de 2011
ETNOPOÉTICA: DA VANGUARDA À POESIA “PRIMITIVA”
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Num ensaio de 1972, intitulado “Uma proposta acadêmica”, o poeta, performer e ensaísta norte-americano Jerome Rothenberg defende a seguinte tese: “Por um período de vinte e cinco anos, digamos, ou durante o tempo necessário para uma nova geração descobrir onde ela vive, retire as grandes epopéias gregas dos currículos de graduação universitária & as substitua pelas grandes epopéias americanas”. A proposta de Rothenberg consistia assim em: “Estudar o Popol Vuh onde hoje se estuda Homero, & estude Homero onde hoje se estuda o Popol Vuh.”
A disciplina “Genealogias Dramáticas Americanas”, concebida sabiamente pela professora Alai Garcia Diniz, quando da elaboração do projeto pedagógico do curso de Artes Cênicas da UFSC, tem grande afinidade com as idéias de Rothenberg e, por isso, pode se beneficiar delas. O objetivo da disciplina é, em linhas gerais, estudar as origens do nosso teatro americano não de uma perspectiva europeia ou etnocêntrica, mas a partir da intersecção cultural, que inclui, obviamente, a cultura indígena, com seus elementos narrativos e performáticos.
Jerome Rothenberg, um dos pais do movimento chamado “etnopoética”, que ganhou fôlego e maturidade nos anos 1960 nos Estados Unidos, faz questão de lembrar que, “… as origens que buscamos (…) já não são gregas, nem mesmo indo-europeias, mas levam a todos os tempos e lugares.” “Dizer isso”, prossegue o poeta e performer, “não é negar a história, pois nós estamos, na realidade, envolvidos com a história, com o sentido de nós mesmos ‘no tempo’ e em relação a outras formas da experiência humana além da nossa própria. O modelo – ou melhor a visão — é que se modificou: distanciou-se de uma ‘grande tradição’ centrada num único fluxo de arte e literatura no ocidente, para uma tradição maior que inclui, às vezes como seu fator central, culturas pré-letradas e orais por todo o mundo, (…)”.
Não era exatamente isso que afirmava, no século XIX, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche em seu livro A Gaia Ciência? Dizia ele: “o caráter geral do mundo é (…) por toda a eternidade, o caos, não no sentido da falta de necessidade, mas da falta de ordem, articulação, forma, beleza, sabedoria, ou como se chamam todos esses humanismos estéticos.”
Dessa afirmação resulta uma outra questão: o que seria então o contemporâneo em meio a esse caos? Segundo o ensaísta francês Roland Barthes, “o contemporâneo é o inatual”.
Nessa mesmo sentido, o filósofo italiano Giorgio Agamben afirma que o contemporâneo, “o verdadeiro contemporâneo, aquele que aparece verdadeiramente a seu tempo, é aquele que não coincide perfeitamente com ele nem adere às suas pretensões e, nesse sentido, se define como inatual; mas, precisamente por essa razão, precisamente por esse afastamento, por esse anacronismo, está mais apto que os outros a perceber e compreender o seu tempo.” Agamben adverte para o fato de que “essa não-coincidência, essa ‘discronia’, não significa naturalmente que o contemporâneo viva num outro tempo nem que ele seja um nostálgico, o qual se reconhece melhor na Atenas de Péricles ou na Paris de Robespierre ou do marquês de Sade do que no tempo onde ele foi designado a viver. Um homem inteligente detesta sua época, mas sabe que pertence a ela irrevogavelmente. Ele sabe que não pode escapar dela. A contemporaneidade é assim uma relação singular com seu próprio tempo, ao qual se adere tomando-se sempre certa distância.” Ou seja, a contemporaneidade seria para Agamben “a relação com o tempo a que se adere por meio da defasagem e do anacronismo”.
O termo etnopoética, tema desta comunicação, tal como proposto e definido por Rothenberg em meados dos anos 1960, parece retomar e antecipar as questões acima, já que nasceu da tentativa de reformular a idéia de primitivo e primitivismo no contexto da cultura ocidental pós-moderna, numa espécie de imersão no caos para liberar o tempo da linearidade, ressaltando o anacronismo, o tempo múltiplo que aponta para todas as direções, o que implica e exige a necessidade de reflexão acerca das nossas genealogias culturais. Para esse autor, “primitivo significa complexo” e abarca “todas as margens da poesia canônica ocidental, tais como manifestações literárias e rituais diversas, sejam elas judaicas, negras, ciganas, ameríndias, ou mesmo no caso da poesia visionária de figuras como Blake ou Rimbaud.”
Poder-se-ia dizer que a etnopoética seria, grosso modo, aquilo que Erza Pound chamou de “vortex”, ou seja, “local de intersecções culturais & fusões, no qual ‘toda experiência se acumula’ para fazer de presente & passado algo novo”.
Portanto, o antropólogo Pedro Cesarino, que colaborou com a premiada diretora Cibele Forjaz no espetáculo “Vem vai: o caminho dos mortos”, lembra que “se a ‘etnopoética’ herda os caminhos abertos pelos modernistas, dadaístas e futuristas, ela também é fruto não apenas da convivência de Jerome Rothenberg com poetas dos mais diversos movimentos e tendências, mas com biólogos, antropólogos e filósofos.”
O fato é que, como diz esse poeta e perfomer norte-americano, “quando o ocidente começou a descobrir – e saquear – mundos ‘novos’ e ‘antigos’ além dos seus limites, um extraordinário contra-movimento passou a acontecer no próprio ocidente. Ao lado das ideologias oficiais que impulsionaram o homem europeu ao ápice da pirâmide humana, havia alguns pensadores e artistas que encontraram outros meios de fazer e agir, entre outros povos, tão complexos quanto quaisquer encontrados na Europa e que foram, com frequência, apagados virtualmente da consciência europeia.”
As culturas ditas “primitivas” e “selvagens, no sentido de estarem num “estágio abaixo do bárbaro” eram ao mesmo tempo, lembra Rothenberg, “os modelos para experiências políticas e sociais, ressurgimentos religiosos e visionários, e formas de arte e de poesia tão diferentes das normas europeias a ponto de parecerem revolucionárias de uma perspectiva ocidental posterior.”
Ao reunir poéticas que, partindo do ocidente, buscam mostrar “nossos diversos ocidentes não oficiais e não conhecidos”, a etnopoética poderia ser vista também como a “estética dos excluídos”, como faz ressalta Rothenberg.
A respeito da “poesia primitiva”, Jerome Rothenberg afirma que “onde quer que você a encontre entre os ‘primitivos’ [aqueles que vivem numa sociedade na qual os poetas são os principais técnicos do sagrado] envolve um senso extremamente complicado de materiais e estruturas”.
Por isso mesmo, de acordo com o poeta norte-americano, “é muito difícil decidir quais são precisamente os limites da poesia ‘primitiva’, uma vez que frequentemente não há nenhuma atividade diferenciada como tal, mas as palavras ou vocábulos fazem parte de uma ‘obra’ total maior que pode continuar por horas, até mesmo dias, numa direção. O que nós separaríamos como música & dança & mito & pintura também é parte dessa obra.” A necessidade da separação de elementos é, aliás, uma questão dos nossos interesses e preconceitos, não dos deles.
Desse modo, ao se tentar fazer a tradução ou se propor uma interpretação desses múltiplos elementos perdemos sempre a noção de obra total, já que elas (tanto a tradução quanto a interpretação) costumam apresentar apenas uma parte dessa obra, um ângulo apenas da visão da obra. O fato é que a natureza coletiva da poesia primitiva é em grande medida inseparável da quantidade de matérias que uma única obra pode empregar.
A respeito da tradução do poema “primitivo”, por exemplo, ela, “quando impressa, pode mostrar apenas o elemento ‘significativo’ do poema, frequentemente não mais do que uma linha simples e isolada. No entanto, na prática, esta linha será provavelmente repetida até que a sua carga tenha sido esgotada. Essa mesma linha também pode ser alterada foneticamente e as palavras podem ser distorcidas de suas formas ‘normais’”.
Pode-se dizer que todos esses recursos criam um vazio cada vez maior entre a “poesia ‘original’ e a tradução. A obra possivelmente não terminará com uma simples linha. Todas essas linhas de duração considerável se movem em direção a um cerimonial. Portanto um poema pode se unir ao outro formando uma única obra.
Na poesia primitiva, a propósito, o poeta pode ser também um dançarino, cantor, mágico, ou tudo o que o evento exija dele. Portanto, o poeta “domina uma série de técnicas que podem fundir as proposições aparentemente mais contraditórias”.
Acima de tudo há um sentimento de unidade que cerca o poema “primitivo”, apesar da estrutura diferenciada, há uma unificação de perspectiva ligando:
Poeta e homem
Homem e mundo
Mundo e imagem
Imagem e palavra
Palavra e música
Música e dança
Dança e dançarino
Dançarino e homem
Homem e mundo
Etc.
Jerome Rothenberg compara a poesia “primitiva” à poesia moderna de muitas maneiras. Em ambas essas práticas discursivas existe uma arte mínima de envolvimento máximo. Existem elementos compostos, os quais são individualmente articulados (vejamos, por exemplo, o trabalho do compositor norte-americano John Cage, com Merce Cunningham).
Uma outra aproximação entre a poesia moderna e a primintiva reside no fato de as técnicas do poeta não se limitarem a manobras verbais, elas também operam por meio do canto, do som não verbal (esse é o caso da poesia dadaísta de Kurt Schwitters, por exemplo), de signos visuais e atividades variadas que remetem ao evento ritual (como se vê na poesia concreta, de Augusto e Haroldo de Campos, entre outros). Hoje, de fato, o poeta está inserido em todos os meios e compõe poemas pictóricos, poemas em prosa, faz happenings, teatro total.
Há que se recordar ainda que, se na poesia primitiva o poeta é o xamã, o dono dos sonhos, hoje o artista cria através do sonho – existem os xamanismos individuais, performances psicodélicas, etc.
Por fim, não poderia deixar de mencionar aqui a perfomance que Jerome Rothenberg chama de modelo ritual. A performance, termo adotado nos anos 1960, transpassa todas as nossas artes, e as próprias artes começam a se fundir e perder suas antigas distinções. A performance surge da influência de uma obra total, como vista na poesia primitiva, o que vem a demonstrar que nosso modelo de poesia, de arte, de fato se modificou: distanciou-se de uma “grande tradição” centrada num único fluxo de arte e literatura do ocidente, para uma tradição maior que inclui culturas pré-letradas e orais por todo o mundo.
Em 1917, Tristan Tzara, dadaísta, exigiu uma “grande obra negativa de destruição” contra uma tradição excessivamente textualizada que remeteria ao paradigma do renascimento da cultura e da história. Tzara lançou uma coletânea de poemas africanos e oceânicos selecionados, os quais eram cantados nas performances dadaístas realizadas no Cabaré Voltaire em Zurique. Aos agentes mais antigos do gosto – os portadores dos valores ocidentais numa época de caos – isto foi visto como uma piada, mas era uma primeira e importante tentativa, quase séria demais, de se chegar a uma nova antologia clássica, que circularia oralmente.
Um século depois do dadaísmo, um grande número de artistas contemporâneos fazem uso da performance e dos modelos rituais.
Segundo Jerome Rothenberg “a tendência em direção à performance remonta à nossa herança pré-humana”. Com isso surge uma rejeição da idéia de “progresso” artístico e, portanto, incentiva-se a união da vanguarda com os rituais tradicionais. Com a destruição dos limites de gênero que disso resultou, abriu-se o caminho para um movimento contínuo e não mais uma barreira entre música e ruído, entre prosa e poesia; entre dança e locomoção normal, aqui tudo é teatro, como diria Hans-Thies Lehmann. A propósito, hoje, nem a tecnologia mais avançada (som e imagem produzidos eletronicamente, por exemplo), nem recursos hipoteticamente primitivos (pulso, respiração, o som da pedra contra a pedra, da mão na água) estão bloqueados para o artista que deseja usá-los. Enfim, não há hierarquia de meios nas artes visuais, nenhuma hierarquia de instrumentação na música, existe o pós-dramático, onde o teatro não é nem isso nem aquilo, para me valer das palavras de Lehmann. Não existem também gêneros mais avançados que os outros. Existem infinitas experiências, que são também éticas e políticas, num círculo que remete de uma coisa à outra, sem fim.
* Professora do curso de Artes Cênicas da UFSC