Hugo Cabret – Passado e Presente em uma Cena da Adaptação Cinematográfica – Diogo Berns

Hugo Cabret – Passado e Presente em uma Cena da Adaptação Cinematográfica

Diogo Berns[1]

 

The Invention of Hugo Cabret é uma obra literária escrita pelo autor estadunidense Brian Selznick. A narrativa apresenta Hugo Cabret, um menino órfão de doze anos que mora em uma estação de trem em Paris no ano de 1931. Hugo passa a morar com o tio, Claude, após a morte do pai ocorrida em um incêndio no museu em que trabalhava. O tio, porém, morre afogado em um rio, sendo o corpo descoberto somente meses depois do ocorrido, fato apresentado próximo ao fim da narrativa. Durante esse tempo, Hugo tem a tarefa de realizar a manutenção dos relógios da Estação, tarefa essa que aprendeu com o tio. Guiado pela saudade do pai, também conserta o autômato, um robô mecânico, que o pai encontrou no museu. Para consertá-lo, Hugo rouba peças da loja de brinquedo de Georges Méliès, que foi um dos primeiros cineastas da história e agora trabalha na Estação de trem.  Hugo é apanhado por Méliès e torna-se amigo de Isabelle, uma menina que possui a mesma idade dele e mora com o vendedor. Em meio a toda essa situação, Hugo mantêm-se escondido na Estação com medo de que o Inspetor do local descubra que está sozinho e lhe envie para um orfanato.

Em The Invention of Hugo Cabret, imagens em preto e branco são intercaladas com palavras para contar a narrativa ao leitor. Por meio delas, Selznick faz uma homenagem ao cinema, especialmente aos primeiros anos da arte cinematográfica. Assim como na obra literária de Selznick, os livros ilustrados podem desenvolver no leitor distinções entre o ato de ler palavras e o de ler imagens, orquestrando o movimento dos olhos (HUNT, 2010, p. 234). As ilustrações podem colaborar para que o leitor perceba que as imagens possuem potencial para contar uma narrativa e que estão impregnadas de informações. Desse modo, essa intercalação condiciona o olhar e a atenção do leitor. Ela o faz notar que o signo imagético narra fatos ao leitor, mesmo sendo de modo diferente.

Figura 1 – Exemplo de Ilustração em The Invention of Hugo Cabret – Hugo e Isabelle observam o autômato desenhando

Fonte: Obra Literária The Invention of Hugo Cabret (SELZNICK, 2007, p. 238-239)

Em alguns momentos, passado e presente também se intercalam na mente de Hugo. Essa alternância ocorre em momentos em que Hugo nos expressa a saudade e a nostalgia diante da perda do pai e da vida que está levando na Estação. O mesmo ocorre na Adaptação Cinematográfica, lançada em 2011, dirigida por Martin Scorsese. O processo de transpor uma narrativa de campo verbal, como a literatura, para um campo não-verbal – o cinema – é um exemplo de tradução. Assim como um texto é traduzido de um idioma para outro, as narrativas escritas podem ser contadas também por meio de imagens. Isso é considerado tradução intersemiótica (JAKOBSON, 1969, p. 65). A adaptação faz parte desse estudo. Dessa forma, a intercalação da obra literária também foi levada em consideração na tradução para a obra cinematográfica.

A adaptação cinematográfica recebeu o título Hugo, sendo a narrativa apresentada em 126 minutos. É um filme colorido, sonoro, com áudio em inglês americano. Para este ensaio, escolhi uma breve cena do filme em que Hugo se lembra da morte do pai e de ter sido levado pelo tio para a estação. Para mim, expressa essa intercalação pontuada por alguns recursos cinematográficos que mencionarei ao longo do texto.

Figura 2 –Hugo se lembra do passado

Fonte: Filme Hugo (SCORSESE, 2011, 23’22”)

A tristeza de Hugo é expressa no quadro fílmico de diferentes formas. A variação de tonalidade da cor azul, por exemplo, aponta para um profundo abismo na vida do personagem. Para ele, as esperanças são poucas. Pobre Hugo – sozinho em um novo ambiente em que milhares de pessoas passam todos os dias, mas ele se esconde delas como medo de ir para um orfanato. Pobre Hugo – uma confusão de sentimentos – dor, raiva, angústia, nostalgia, saudade que o atormentam e o afligem. Hugo pobre – sem dinheiro; tendo de roubar para sobreviver, para ter forças de consertar o autômato na esperança da suposta mensagem que o pai lhe deixou antes de morrer. Pobre Hugo, Hugo pobre, a esperança é a maior riqueza que tem em meio a todo o caos.

Em Hugo, o uso da cor e da luz, contrastando entre o claro e o escuro fortalece o deslumbramento dos espectadores diante das imagens (SILVA, 2012, p. 301 – 302). O jogo entre luzes e sombras convida-nos a adentrar nas aflições que o personagem sente; faz nos unir às dores e ao sofrimento que carrega. O contraste entre a escuridão e a luz nos revela a profunda tristeza daquele instante. Hugo está como um vaso quebrado, partido, despedaço, todo em fragmentos. A dualidade nos lembra a intercalação da composição – imagens e palavras/ presente e passado. As cicatrizes permanecerão mesmo com o conserto do autômato. A iluminação que vem do canto esquerdo na parte superior ressalta os cabelos e os ombros de Hugo. A fumaça atrás dele confere dramaticidade, tornando a cena densa psicológica, emocionalmente. É como se houvesse uma aura, algo ou alguém zelando por ele. Em meio ao caos há uma chance, uma esperança; como se o pai estivesse presente, iluminando, guiando o caminho de Hugo. Doze anos: sem pai e mãe, abandonado em uma Estação de Trem, passando fome, com medo de ser apanhado pelo Inspetor do local ou qualquer pessoa; mas, o pior dos medos, de não concluir o que ele e o pai haviam começado: o conserto do autômato.

Ao lado direito, uma parte do Autômato está desfocada. A presença dele se deve ao fato da proximidade afetiva que Hugo tem com ele. É o último vestígio do pai. Ele olha fixamente para o autômato. O grande objetivo que tem é o de consertá-lo para descobrir a suposta mensagem que o pai lhe deixou. O menino nos é apresentado em foco, destacado pela importância do momento. Ali, perto dele, está a lembrança daquele que tanto ama, uma lembrança que Hugo observa com um imenso carinho, uma lembrança na qual se agarra com toda a força, disposto a lutar contra tudo e contra todos.

As palavras do tio, ditas anteriormente na Estação de Trem e diante do túmulo do pai de Hugo, ressoam na mente dele: “Time, time, time…”. O passado parece se unir ao presente, como o efeito de fusão no cinema. Um passado que não passa e que insiste em permanecer. O eco dessa voz o atormenta. A cada vez que ouve a palavra time torna-se mais cruel e difícil de lidar com a perda. Os olhos com lágrimas e as expressões faciais denotam a dor. Ah… Se, por ao menos um instante, tudo pudesse parar e, quem sabe, voltar no tempo. Talvez conseguisse salvar o pai do incêndio. Talvez não estivesse mais naquela solidão. Talvez não precisasse mais realizar a manutenção dos relógios da Estação. Talvez, talvez, talvez… Contudo, não há como voltar atrás. Os ponteiros dos relógios da Estação avançam a cada segundo. É preciso seguir a vida de acordo com o que eles indicam. Ao mesmo tempo que os ponteiros avançam, ganhando novas oportunidades, perde-se tanto, tanto tempo, tantas chances e, às vezes, até mesmo esperanças. O relógio prossegue, mas o pai não voltará fisicamente e a dor insistirá em permanecer a cada vez que o ponteiro dos segundos avançar, ecoando tic tac, tic tac, tic tac, transformando-se na voz que ressoa: “Time, time, time…”.

Hugo Cabret – seu cabelo pouco bagunçado, mais comprido que o habitual, demonstra-nos o desamparo, o abandono, o estado de solidão em que se encontra. Hugo: pobre menino, menino pobre, rico em esperança, esperança em rica abundância… Qual será o odor de seu casaco escuro após tanto tempo sem ser lavado, peregrinando pelos túneis e esconderijos da Estação? Qual o cheiro dele com essa umidade e frieza toda da Estação? Qual, Hugo, após se esconder durante esse tempo? Se a iluminação, se as lágrimas, se seu semblante nos chama a atenção para seu sofrimento, como seu odor nos impactaria por causa de seus tormentos?

A imagem e o som não se combinam com o objetivo de mostrar algo, mas sim significar alguma coisa (XAVIER, 2008 p. 67). A música em acordes menores, de forma lenta, pontua a melancolia, a tristeza, a saudade do menino. Ela auxilia na construção cênica, evidenciando a dor diante da perda, exprimindo nesses breves instantes a confusão de sentimentos, talvez até de revolta pelo comportamento do tio, que agora também não está na Estação. A trilha sonora nos convida a imergir na cena, vendo Hugo fechar, em determinado momento e de forma breve, os olhos com um profundo pesar. Fechamos nossos olhos também. Deixamo-nos que esse silêncio e essa escuridão nos leve para milhares de crianças órfãs abandonadas pelo mundo. Tantos Hugos escondidos nos túneis. Tantos Hugos peregrinando por Estações em busca de uma verdadeira vida. Tantos Hugos que se agarram a algo que fora jogado no lixo para dar sentido à existência.

O primeiro plano aproxima-nos de Hugo e, consequentemente, do estado emocional dele, fazendo-nos identificar com a situação pela qual passa o menino. Sentimos compaixão, porém, mais do que isso: sentimos na pele; compartilhamos e vivenciamos essa dor. No primeiro plano, o corpo do personagem aparece na tela por volta da altura do ombro até os cabelos. Podemos ver a pele do personagem, a expressão de dor, de solidão e, apesar das lágrimas, o brilho dos olhos do menino. Somos colocados frente a frente de Hugo. Tudo para. Não há o que se dizer nesse momento. Já fomos sensibilizados com esse passado e presente que nos aterroriza. Resta-nos torcer para que ele possa, definitivamente, consertar o Autômato, consertar Méliès, consertar os demais e a ele mesmo.

O primeiro plano e os demais enquadramentos moldam e delimitam o nosso olhar, afastando-nos ou nos aproximando do momento dramático em que nos é apresentado. Por vezes, somos aprisionados, sufocados e impactados. O enquadramento pode nos deixar imóveis ou nos fazer saltar diante do impacto da imagem. É um recorte de uma proporção cenográfica que culmina na expressão emocional do conjunto fílmico, que, neste caso, nos traz o sofrimento de Hugo.

Hugo: quem me dera, mesmo que eu tivesse todo o conhecimento, mesmo que eu tivesse obtido todos os títulos, prêmios e honras deste mundo, compreender, por meio de toda a composição fílmica desses poucos segundos, a tua dor. Quem me dera que seu passado e seu presente intercalados e, ao mesmo tempo fundidos em um só momento, ecoassem pra sempre em minha vida a profundidade de seu ser. Ah, Hugo Cabret, seria uma honra; seria uma intercalação tal como uma antifonia que glorifica ao transcendente, que acende a alma e a leva à plenitude.

 

REFERÊNCIAS

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. Tradução Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1969. 162 p.

HUGO (A Invenção de Hugo Cabret). Produção: Martin Scorsese, Jony Depp, Tim Headington e Graham King. Direção: Martin Scorsese. Roteiro: John Logan.  Intérpretes: Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz, Jude Law e outros. Estados Unidos, Paramount Pictures, 2011. Blu-ray, 126 min, Son., color. Legendado. Produzido por GK Films e Infinitum Nihil.

HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. Tradução Cid Knipel. Ed. Revisada. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 328 p.

SELZNICK, Brian. The Invention of Hugo Cabret. New York: Scholastic Press, 2007. 536 p.

SILVA, Alessandra Collaço. A Invenção de Hugo Cabret e a Reinvenção de Scorsese. EntreVer – Revista das Licenciaturas. Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 297-309, jul./dez. 2012

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 212 p.

 

[1] Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. É Mestre em Estudos da Tradução e Bacharel em Cinema pela referida Instituição. Cursa pós-Graduação lato sensu em Música Litúrgica na UNISAL (Centro Universitário Salesiano de São Paulo). Tem experiência em roteirização de games, videoaulas para ensino à distância e edição de som, direção e dublagem de audiobooks.