O Espelho

De Ronaldo Pinheiro Duarte*

Personagem 

VALKÍRIA

 

PRÓLOGO

 

(VALKÍRIA ACABA DE COMETER SUICÍDIO NO BANHEIRO. ESTÁ CAÍDA. VÁRIOS COMPRIMIDOS ESPALHADOS PELO CHÃO)

 

1ª CENA

E ÚNICA…

VALKÍRIA – (ÚLTIMO SUSPIRO DE VIDA) Aaaaaah! (TOCANDO-SE) Sei que estou aqui… Ainda estou aqui, (ESFREGA O ANTEBRAÇO NA BOCA) que horror! (OLHA PARA OS LADOS, TRISTEMENTE) E ainda estou s… Shiii! Isolar-me parecia uma boa idéia, render mais no trabalho, ganhar mais dinheiro ou somente por diversão, esta poderia ser sim uma ótima solução…! Mas foi isso! Que me levou a cometer esta loucura… Dói! (APERTA A BARRIGA) Como dói! Não agüentava mais viver só… Só preciso ver pessoas, ouvir pessoas, ao vivo! Nos últimos cinco anos o único contato que tive com gente foi pela internet ou televisão, música? Nem pensar, odeio! Sou publicitária, trabalho em uma rede de marketing e propagandas, pela internet mando e faço os meus trabalhos, tudo no computador. Notícias?

Recebia pela TV, mas agora acesso nos sites de notícias 24h. Família? Mora looooonge! (PÁRA) E-mail… Ultimamente adoro o meu banheiro, já contei: 1053 azulejos, quatro gavetas, uma torneira, uma pia, um armarinho, duas portinhas, uma “portona”, um suporte para toalhas e outro para papel higiênico, uma lâmpada sem lustre, uma escova de dente e uma de cabelo, utensílios em geral, uma cortina, uma saboneteira, um computador e um chuveiro com 102 furinhos que jorram água. (SUSPIRA) Adoro tomar banho! (TOMA UM BANHO IMAGINÁRIO) Mas de repente eu começo a ficar limpa, limpinha, tenho que desligar o chuveiro, então fecho o registro e a água vai embora (TRISTE) se esvai pelo ralo e eu fico só… Só seria bom se ela ficasse (SEM ENTENDER) mas ela vai… Telefone? Joguei fora, não sei ou nunca tive, não me lembro! (ORGULHOSA) Mas a linha eu tenho, (ESTUPIDAMENTE FELIZ) para a internet! (ALUCINADA) Eu como pela internet, me comem pela internet, amo pela internet, trabalho pela internet, estudo pela internet, converso pela internet… (CANSADA E REPENTINAMENTE HISTÉRICA) Eu odeio a internet! (SILÊNCIO) Quando eu peço comida… Pela internet. Não vejo o entregador… No começo era só uma brincadeira: o entregador vinha, eu espiava pela câmera de segurança conectada ao computador e sinistramente, antes que ele interfonasse… Eu abria o portão, quando batia em minha porta, eu colocava o dinheiro debaixo dela com um bilhete, “Deixe a comida e saia logo, odeio pessoas e sou perigosa!” (DA GARGALHADAS) Todos a deixavam e saíam correndo, (RI MAIS) era engraçado, Dói… Como dói! (APERTA A BARRIGA) Mas eu acho que não era realmente uma brincadeira. (PENSA) Depois? Bem…Depois começou a virar rotina, já não conseguia conviver com mais ninguém, então, todas as pessoas, conhecidas ou não que batiam em minha porta, recebiam um bilhete; eu fazia a mesma coisa, se fosse o correio, entregava um bilhete, se fosse o vizinho, deixava um bilhete, se fosse o gás, colocava um bilhete, se fosse o galão de água enfiava um bilhete, se fosse o síndico… (PÁRA E PENSA) O síndico nunca veio, engraçado, ele fazia a mesma coisa que eu, só que ao invés de bilhetes, ele entregava circulares! (PENSA) Poderíamos ter sido amigos… Enfim, arranjava qualquer desculpa para que não me perturbassem e consequentemente fossem embora, (PENSA) talvez fosse uma brincadeira… (SORRI) Era engraçado, como era engraçado! (DESANIMA) Mas acabou, não aparece mais ninguém por aqui, depois de um tempo a minha persistência foi tão grande que de um dia para o outro parou, simplesmente parou e eu fiquei só… Só não fico me lastimando por causa disso, Nunca! Tenho o meu trabalho, minha internet… Minha, meu… (PENSA) Meu banheiro, (SUSPIRA) ah, meu banheiro, ultimamente adoro o meu banheiro, faço muita coisa aqui, já comecei a contar em pés, os meus, o comprimento do papel higiênico, é difícil (ANDA SOBRE O PAPEL HIGIÊNICO) o banheiro é pequeno e tudo mais, mas não me abalo por causa disso, o faço como se fosse um desafio, adoro desafios, mas odeio música, se um dia falarem que eu gosto de música é mentira, eu gosto é do meu banheiro! Este cheiro, (SENTE O CHEIRO) hum! Cheiro de banheiro é agradabilíssimo, depois de um tempo a gente descobre que o cheiro de merda que tem no banheiro é mil vezes melhor do que o cheiro de merda que há nas pessoas! Ui! Me enoja, me enoja! Odeio as pessoas, não tenho saudades de ninguém, dói… (APERTA A BARRIGA) Dói! Se morressem não estaria nem aí, afinal de contas, eles é que pararam de me visitar, eu continuo aqui, como sempre, no meu banheiro! (SUSPIRA) E que banheiro este meu, é o banheiro mais lindo que já vi em toda a minha vida, se alguém o visse diria que é pequeno, mas eu não acho, aparentemente parece ser, mas eu estou só… Só com o chuveiro, a torneira, o vaso sanitário, a pia, as gavetas, os azulejos e todos nós cabemos aqui, (CONVICTA) Eu caibo aqui confortavelmente com todos eles, não sinto falta do espelho, isto é outra coisa que odeio, não suporto é espelho! (PENSA) Joguei fora, não sei ou nunca tive, não me lembro! Me atrapalhava, sempre tinha a impressão de que estava aqui dentro comigo, (TONTA APERTA A BARRIGA) Dói! Gosto mesmo é do chuveiro, este é o meu companheiro inseparável, demoro horas no banho, ele jorra água e eu adoro, (TOMA UM BANHO IMAGINÁRIO) ai como é bom! (INSINUANTE) Quero um caldeirão de água fervente que me banhe de uma vez só, me queime por fora e torre por dentro, que me dê energia e ao mesmo tempo me canse, que me murche todinhaaaaa… (TEM UM ORGASMO) Mas não vou tê-lo… (ENLOUQUECE DE TESÃO) Eu quero, eu quero! (DESESPERADA) Eu não agüento mais… (PENSA) Vou tomar banho! Hoje eu consigo, levarei como um desafio, adoro desafios! Ultimamente tenho tentado contar as gotículas de água que caem do chuveiro, (REPENTINAMENTE DESANIMADA) mas é muito difícil, acho que não vou conseguir, também achei que não conseguiria viver assim, mas até hoje sobrevivi…Ai… (MORIBUNDA APERTA A BARRIGA) estou morrendo, sei que estou, é notável, qualquer um que me visse agora perguntaria se estou morrendo, (PENSA) acho que sim! (PAUSA) Alguém tem que me ver! (FORÇA UMA TOSSE E FALA CADA VEZ MAIS ALTO) Estou mal, muito mal… (TOSSE MAIS ALTO) Socoooroooooo! Socorro! Socoooooorooooo! (PÁRA DE GRITAR INDIGNADA) Que saco! Ninguém, ninguém se quer para tocar a campainha e perguntar como estou! Moro num edifício com mais de setecentos apartamentos, 3.000 pessoas, onde nenhuma levanta a bunda suja da frente da televisão, para visitar uma vizinha em apuros! (REVOLTADA) Aaaaaaah! (SE ASSUSTA) Podem estar escutando música, eu odeio música, um bando de idiotas! (MUITO TONTA, APERTA A BARRIGA) Arggghhh música! (AGONIZA. TOSSE) Não estou agüentando, até o banheiro me faz mal, a pia não me quer mais, o vaso sanitário me odeia, ele fede, mas nem tanto quanto… (VAI MORRER) Ai! Acabou, para mim chega, está demorando demais… Acho que não faz efeito. (CAI, MAS DEPOIS LEVANTA-SE) De hoje não passa, eu não agüento, já sei! Vou levar como um desafio! Não quero mais ficar sozinhaaaaaaa!

(PEGA UM COPO. ENCHE COM ÁLCOOL E TOMA. ESPERA, ESTÁ ANSIOSA, ESPERA MAIS UM POUCO. FICA EXTREMAMENTE TONTA. NÃO CONSEGUE MAIS FICAR DE PÉ OU SENTADA. CAI NO CHÃO. ESTÁ MORRENDO. TOCAM A CAMPAINHA. ELA ASSUSTA-SE. ESTÁ ENTRE A VIDA E A MORTE. DESESPERA-SE. LUTA PARA FICAR VIVA. TOCAM A CAMPAINHA. COSPE, TENTA VOMITAR. DESESPERA-SE. TOCAM A CAMPAINHA. TENTA LEVANTAR. CAI, AGONIZA. TOCAM A CAMPAINHA. FICA LOUCA. ESTÁ MORRENDO. AGONIZA. TOCAM A CAMPAINHA. RASTEJA ,DESESPERADA, TENTANDO SOBREVIVER, MAS NÃO CONSEGUE. REALMENTE MORRE. TOCAM A CAMPAINHA).

 

 

THE MIRROR

 

 

PROLOGUE

 

(VALKIRIA HAS JUST COMMITTED  SUICIDE IN THE BATHROOM. SHE IS FALLING. LOTS OF BROKEN PARTS SPREAD ALL OVER THE FLOOR.)

1 Scene

The only one

Valkiria – (LAST BREATH OF LIFE) Aaahhhh!!! (TOUCHING HERSELF) I know I am here, I am still here (WHIPPING HER FOREARM OVER THE MOUTH) How terrible!! (LOOKING SADLY IN ALL DIRECTIONS) And I am still a… Aaahhh!! Isolate myself looked like a good idea, bring more work, earn more money or only just for fun, this could be an excellent solution. But that´s it… What made me do this madness!  Hurts (TOUCHING THE STOMACH) Hurts a lot.  I cannot stand to live al… All what I need is to see people, to hear people, alive. The last 5 years the only contact I had with people was through internet or television. Music?  Do not even think about it. I hate it. I am a publisher, I work for a marketing and advertising network, through the internet I make and send my work, all by the computer. News?  I used to receive through TV, but now I get it in the news sites 24/7. Family? Live faaar away (STOPS) E-mail! Lately I love my bathroom, already I counted:  1053 tiles, 4 drawers, one tap, one sink, a small closet, two doors, a towel holder, a toilet roll holder, a lamp without chandelier, a toothbrush, hairbrush, various small items, a curtain, a soap dish, a computer and a shower with 102 holes that spreads water. (SIGHS) I love to take showers (PRETENDS TO TAKE A SHOWER) But suddenly I start to feel clean, really clean, I have to turn off the shower, so I turn off the tap and the water disappears  (SAD) it runs out through the drain and I get al… All would be good if it could just stay a while, but it runs out. Telephone? I threw it out, I do not know or I never had one, I do not remember. But I do have a phone connection (STUPIDLY HAPPY) for the internet (ENLIGHTENED/JUNKY) I take food through the internet, they “take me”  through the internet, I  make love through the internet, I work through the internet, I study through the internet, I talk through the internet,  (TIRED AND SUDDENLY HYSTERIC) I hate the internet! (A BIG SILENCE) When I order food though the internet, I do not see the delivery-boy. In the beginning it was only a joke. I spied the delivery boy through the CCTV (CLOSED-CIRCUIT) connected to the computer and in an obscure way, just before he called, I opened the gate and when he knocked my door I slipped the money under the doorstep with a note saying “Drop the food and leave quickly, I hate people and I am dangerous.”  (LAUGHTER) They all dropped the food and ran away (LAUGHS EVEN MORE) was funny. Hurts, hurts a lot. (TOUCHES THE STOMACH) But I think it was not really a joke (THINKS) Later? Then it started to become a routine, I already could not stand to live with anyone, therefore everyone, known or unknown, received a note when they knocked on my door. I did the same thing. Being the postman, Left a note, being the neighbor passed a note, being the gas man I left a note, if it was the water man I slipped a note, if it was the residents representative (STOPS AND THINKS) The residents representative never came, funny, he did the same as I did, but instead of notes he left circular letters (THINKING) We could have been friends. Finally I made up whatever excuse for them not to disturb me and consequently they went away (THINKING) maybe it was a joke… (LAUGHING)  Was funny , it was really funny (CHILLING)  But it stopped, no one ever comes here anymore, after a while my persistence became so big that from one day to the other it stopped, just stopped and I became  al… All in all, I never pitied myself because of this.  Never!  I have my work, my internet. My, my (THINKING) my bathroom (BREATHS) Wow!!  My bathroom, lately I love my bathroom, I make many things here, I already start to count in feet, my feet, the length of a toilet paper roll, it´s difficult (WALKS OVER TOILET PAPER) The bathroom is small and all that, but I do not make a fuzz of it, I make it like if it was a challenge,  I love challenges, but I hate music, if one day they say I like music it is a lie,  what I like is my bathroom! This smell (FEELS THE SMELL IN THE AIR) Hummm!! Smell of bathroom is so nice, after a while people will discover that the smell of shit of the bathroom is 1000 times better than the smell of shit of human beings. Uiii!!! It disgust me, disgust me. I hate people, I do not miss anyone… Hurt.  (TOUCHES THE STOMACH) Hurts.  If they die, I would not even care, and after all, they stopped visiting me. I am still here as always in my bathroom (SIGHS) and what a bathroom, it is the most beautiful bathroom I have ever seen in my entire life. If someone saw it he would say it is small, but I do not think so, apparently it looks small, but I am al…, All one with the shower, the tap, the toilet, the sink, the drawers, the tiles, it all fits in here (CONVINCED) I fit perfectly in here, with all of these things, I do not miss the mirror, that´s another thing that I do hate, I cannot stand the mirror (THINKS) I threw it out, I do not know, or I never had one. I do not remember! I fumbled, I always had an impression that I were here with myself (TOUCHES THE STOMACH) Hurts. What I really like is the shower, this is my inseparable companion. I stay for hours in the shower, it sprays water and I love it (PRETENDS TO TAKE A SHOWER) Wow!!! It´s so nice!!!  (INSINUATING) I want a huge pot of hot cooking water, that showers me in one go,  that  burns me outside and cooks me inside, that gives me energy and at the same time makes me tired, that  softens me, totally!!! (HAS AN ORGASM) But I will not get it!!! (TURNED ON CRAZILY) I want, I want!!! (DESPERATELY) I cannot stand it anymore (THINKS) I will take a shower. Today I manage, I take it as a challenge. I love challenges. Lately I have tried to count the drops of water that drops from the shower (SUDDENLY DISCOURAGED)  but it´s very difficult, I think I will not manage to, I also thought it would not be possible to live like this, but until now I have survived.  Aiiii!!! (DYING, TOUCHES THE STOMACH) I am dying, I know I am, it is clear, anyone who saw me now would say I am dying (THINK) I think so!! (BREAK) Someone has to see me! (FAKECOUGHS AND TALKS EVEN LAUDER) I am feeling bad, really bad (COUGHS LOUDLY) Heeeelp!! Heelp!!! Heeeeeeelp!!! (STOP SCREAMING INDIGNANTLY)  It sucks. Nobody, nobody cares about ringing my doorbell to see how I am doing. I live in a building with more than 700 flats, 3000 persons, where not even one will lift his fat dirty ass from the sofa watching TV, to see a neighbor in trouble. (ANGRY) Aargh!! (SCARINGLY) They could be listening to music, I hate music, a gang of idiots, (VERY DIZZY, TOUCHES THE STOMACH) Arggghhh!!! Music!!! (AGONIZES AND COUGHS) I cannot stand it anymore, even the bathroom makes me feel bad, the sink does not want me anymore, the toilet hates me, it stinks, but not so much as a Hum … (WILL DIE) Aiiiii!!! It´s the end, it´s too much for me,  it takes too long. I think it didn´t work out… (FALLS BUT AGAIN GETS UP). Today will be the last one, I cannot stand it, I already know. I will take it as a challenge. I just don´t want to be aloooooooone…

 

(TAKES A GLASS, FILLS IT WITH ALCOHOL AND DRINKS WAITS, IS NERVOUS, WANTS A BIT MORE, GETS VERY DIZZY. CANNOT STAND UP OR SIT DOWN ANYMORE. FALLS ON THE FLOOR. IS DYING.  THE DOORBELL IS RINGING. SHE GETS SCARED. SHE IS BETWEEN LIFE AND DEATH. SHE IS DESPERATE. FIGHTS TO BE ALIVE. THE DOORBELL IS RINGING. SPITS, TRIES TO THROW UP, SHE IS IN DESPAIR. THE DOORBELL IS RINGING. TRIES TO GET UP. FALLS. AGONIZES.  THE DOORBELL IS RINGING. GETS CRAZY. IS DYING. AGONIZE. THE DOORBELL IS RINGING.  CREEPS. DESPERATELY. TRIES TO STAY ALIVE. SHE MANAGES. OPENS THE DOOR OF THE BATHROOM AND MEETS WITH THE AUDIENCE.)

Translator by Jens Nygard Nielsen

UM HOMEM

De Ronaldo Pinheiro Duarte

 

PERSONAGENS

PEDRO

HOMEM

MULHER

 

1ª CENA

 

(TODOS ESTÃO CONGELADOS: UM HOMEM CHAMADO PEDRO, CATATÔNICO, SENTADO NUM BANCO DE UMA RODOVIÁRIA. UM CORAL DE IGREJA AO FUNDO CANTA. UMA MULHER SAINDO COM UMA MALA. A PEÇA INICIA COM A ENTRADA DE UM HOMEM QUE SENTA AO LADO DE PEDRO. O RESTO DA CENA SEGUE, OU SEJA, A MULHER CONCLUI SUA SAÍDA DE PALCO)

 

HOMEM – O senhor está bem?

PEDRO – (FAZ QUE SIM COM A CABEÇA)

HOMEM – Bela música, não é mesmo?

PEDRO – (FAZ CARA DE DOR DE CABEÇA)

HOMEM – Não acha?

PEDRO – (FAZ QUE SIM)

HOMEM – O senhor não está bem, está?

PEDRO – (ANGUSTIADO) Não estou me sentindo muito bem.

HOMEM – O que o senhor está sentindo?

PEDRO – Umas palpitações, mas nada que um pouco de silêncio não resolva…

(PEDRO É INTERROMPIDO PELO HOMEM, QUE PRATICA A MESMA FALA E MOVIMENTOS ANTERIORES)

HOMEM – Bela música, não é mesmo?

PEDRO – (FAZ CARA DE DOR DE CABEÇA)

HOMEM – Não acha?

PEDRO – (FAZ QUE SIM)

HOMEM – O senhor não está bem, está?

PEDRO – (ANGUSTIADO, PERCEBE ALGO ESTRANHO) Não estou me sentindo muito bem.

HOMEM – O que o senhor está sentindo?

PEDRO – Umas palpitações, mas nada que um pouco de silêncio não resolva…

(PEDRO É INTERROMPIDO PELO HOMEM, QUE PRATICA A MESMA FALA E MOVIMENTOS ANTERIORES)

HOMEM – Bela música, não é mesmo?

PEDRO – (FAZ CARA DE DOR DE CABEÇA)

HOMEM – Não acha?

PEDRO – (DESCOBRE QUE ESTÁ VIVENDO ALGO QUE JÁ HAVIA VIVIDO) Como?

HOMEM – A música. Não acha o coral bom?

PEDRO – Eu? Tal… (TEM UM ATAQUE FULMINANTE E MORRE)

HOMEM – Meu Deus! Alguém acode, acode o homem aqui! (VENDO QUE NINGUÉM VIU AQUILO, DISFARÇA E VAI EMBORA. APAGAM AS LUZES)

 

2ª CENA

(TODOS ESTÃO CONGELADOS: PEDRO, CATATÔNICO, SENTADO NO BANCO DA RODOVIÁRIA. UM CORAL DE IGREJA AO FUNDO CANTA. UMA MULHER SAINDO COM UMA MALA. A CENA INICIA COM A ENTRADA DE UM HOMEM QUE SENTA AO LADO DE PEDRO. O RESTO DA CENA SEGUE, OU SEJA, A MULHER CONCLUI SUA SAÍDA DE PALCO)

 

HOMEM – O senhor está bem?

PEDRO – (FAZ QUE SIM COM A CABEÇA)

HOMEM – Bela música, não é mesmo?

PEDRO – (FAZ CARA DE DOR DE CABEÇA)

HOMEM – Não acha? (ASSUSTA-SE, A CENA CONGELA E PEDRO FALA AO PÚBLICO) Não pode ser, eu já passei por isso alguma vez n… (ASSUSTA-SE MAIS AINDA) Não pode ser, eu já passei por isso alg… (TAPA SUA PRÓPRIA BOCA, A CENA VOLTA AO NORMAL) Como?

HOMEM – A música. Não acha o coral bom?

PEDRO – Eu? Tal… (TEM UM ATAQUE FULMINANTE E MORRE)

HOMEM – Meu Deus! Alguém acode, acode o homem aqui! (VENDO QUE NINGUÉM VIU AQUILO, DISFARÇA E VAI EMBORA. APAGAM AS LUZES)

3ª CENA

(EM CENA, SOMENTE UM BANCO DE RODOVIÁRIA E A MULHER CONGELADA, SAINDO DE CENA. PEDRO ESTÁ MAIS À FRENTE FALANDO AO PÚBLICO)

 

PEDRO – Hoje pela manhã, tive um pressentimento, acho que não devo sentar, tenho a estranha sensação de que… (COMEÇA A RIR) Bem não importa! (SENTA. TODOS ESTÃO CONGELADOS: PEDRO, CATATÔNICO, SENTADO NO BANCO DA RODOVIÁRIA. UM CORAL DE IGREJA AO FUNDO CANTA. UMA MULHER SAINDO COM UMA MALA. A PEÇA INICIA COM A ENTRADA DE UM HOMEM QUE SENTA AO LADO DE PEDRO. O RESTO DA CENA SEGUE, OU SEJA, A MULHER CONCLUI SUA SAÍDA DE PALCO)

HOMEM – O senhor está bem?

PEDRO – (FAZ QUE SIM COM A CABEÇA)

HOMEM – Bela música, não é mesmo?

PEDRO – (FAZ CARA DE DOR DE CABEÇA)

HOMEM – Não acha? (ASSUSTA-SE, A CENA CONGELA E PEDRO FALA AO PÚBLICO) Vou morrer! (A CENA CONTINUA, PEDRO FALA AO HOMEM) Não, odeio! Não quero saber de música alguma!

HOMEM – A música. Não acha o coral bom?

PEDRO – (ENLOUQUECE) Já disse que não, eu odeio corais! Aliás este está me atormentando faz mais de meia hora.

HOMEM – (FALA O TEXTO DE PEDRO) Como?

PEDRO – Você falou… (ACREDITA QUE O HOMEM VAI MORRER, RI E RELAXA) Não tenho nada contra, mas não gosto, é uma opinião particular, entende? (DESTA VEZ OUVE-SE ALÉM DE TODOS OS RUÍDOS E DO CORAL, UM TIRO. PEDRO TEM UM ATAQUE FULMINANTE E MORRE)

HOMEM – Meu Deus! Alguém acode, acode o homem aqui! (VENDO QUE NINGUÉM VIU AQUILO, DISFARÇA E VAI EMBORA. APAGAM AS LUZES)

 

4ª CENA

(EM CENA, SOMENTE UM BANCO DE RODOVIÁRIA E A MULHER CONGELADA, SAINDO DE CENA. PEDRO ESTÁ MAIS À FRENTE FALANDO AO PÚBLICO CALMO E CONFORMADO)

 

PEDRO – Hoje vou morrer. Pressenti pela manhã, foi horrível. Nesses trinta anos nunca tive uma sensação assim, tão forte. Tenho medo, confesso, mas não vou deixar-me abalar por um simples dejavi. Acredito que as coisas podem ser mudadas, foi por isso que eu lutei a minha vida toda, as pessoas até me chamavam de louco e tal… Mas hoje estou determinado. Vou mudar tudo. Por exemplo: quando previ a cena hoje pela manhã… Estava sentado naquele banco… No qual por obra do acaso, iria sentar-me agora. Estava com a cara mais abatida que alguém pode alcançar, pois um coral de igreja estúpido atormentava-me os ouvidos. Coisa que até agora… (COMEÇA A CANTORIA. PEDRO PARALISA POR UM MOMENTO.EM SEGUIDA ACALME-SE) Isso tinha que acontecer, é de praxe… Um homem sentava ao meu lado  e começava a puxar uma conversa estranha. (TRIUNFANTE) Por isso resolvi esperar de pé… E mudar o horário da passagem! (ENTRA O HOMEM E VEM CAMINHANDOEM SUA DIREÇÃO) Cacilda! (ENGOLE SECO, SABE QUE É ESTE O HOMEM E DESESPERA. O HOMEM PASSA RENTE A PEDRO E SAI, PEDRO VOLTA A FALAR DESESPERADO) Era ele, eu tenho certeza que era. Putz! (PENSA) Espera aí! Ele não sentou, não falou comigo, não fedeu, não cheirou, taí! Eu posso ter mudado. É bem provável que já esteja tudo mudando e eu! Mudei o meu destino! (CHEGA UMA MOÇA E SENTA. PEDRO OBSERVA E RESOLVE SENTAR-SE)

MULHER – Boa tarde.

PEDRO – Oi.

MULHER – Você tem horas?

PEDRO – Ah… Sim! São 18:30h. (A CADA PALAVRA NOVA, ACHA QUE VAI MORRER)

MULHER – Obrigada. (ALIVIADO, PEDRO SORRI) O meu ônibus já está atrasado!

PEDRO – Prá variar, né? Muito… Quanto tempo?

MULHER – Ah! Mais de dois minutos…

PEDRO – Ah…

MULHER – O seu sai que horas?

PEDRO – O meu… Bem o meu sai às 19:15h.

MULHER – E para onde você vai?

PEDRO – Para Maringá.

MULHER – No Paraná?

PEDRO – É isso mesmo.

MULHER – Já fui para Maringá. Tenho amigos por lá.

PEDRO – Que bo… (É INTERROMPIDO PELO ANÚNCIO DA SAÍDA DO PRÓXIMO ÔNIBUS PARA MARINGÁ, ANUNCIAM QUE SAI ÀS 18:45H)

MULHER – Olhe! Está saindo um ônibus daqui a pouquinho.

PEDRO – Ah… Sim…

MULHER – Por quê você não pegou este?

PEDRO – Achei melhor não.

MULHER – E vai ficar esperando?

PEDRO – Vou.

MULHER – Estava lotado?

PEDRO – Não.

MULHER – Ah! Mas se fosse eu, pegava logo esse aí mesmo. Odeio ficar esperando.

PEDRO – …

MULHER – Ai meu Deus, tem cada um, vou te contar!

PEDRO – Bom… Para falar a verdade, eu fiquei com um pouco de medo de pegar aquele ônibus.

MULHER – Medo?

PEDRO – É! Bem… Não é assim, medo, é receio!

MULHER – Ah, sim! Um sujeito como você, que pelo jeito já é acostumado a pegar ônibus daqui prá lá, de lá prá cá, com medo! Ah… essa é boa!

PEDRO – Não é bem assim, é que… Ó! Eu vou contar, você promete que não vai achar graça?

MULHER – Claro! Ah. Deve ser superstição, acertei? Pode ficar tranqüilo, não brinco com as superstições dos outros não.

PEDRO – É isso mesmo. Hoje eu tive um pressentimento. Você acredita em pressentimentos?

MULHER – Mas é claro, quem já não teve um, não é mesmo?

PEDRO – É verdade! Você tem muitos também?

MULHER – (MENTE) Ah sim… Toda hora.

PEDRO – E você os leva em conta?

MULHER – Mas é claro. Bom… Mas fale vai, o que foi que você viu?

PEDRO – Eu pressenti que iria morrer.

MULHER – Nossa! É mesmo?

PEDRO – Não sei… Hoje quando acordei pela manhã. Senti uma coisa ruim, tive a estranha sensação de que se pegasse aquele ônibus, alguma coisa iria acontecer, então resolvi mudar o horário da minha passagem para mais tarde, é claro que ninguém gosta de ficar esperando, mas quem sabe assim as coisas talvez deixem de acontecer…

MULHER – Puxa vida! O senhor leva a sério mesmo esse negócio, hein!

PEDRO – Claro que levo. E você não?

MULHER – (RI) Claro que levo, mas não ia ficar aqui feito uma paspalha esperando não é?

PEDRO – A senhora acha graça…

MULHER – Mas quem é que não vai achar?

PEDRO – Mas fique a senhora sabendo que algumas coisas já mudaram!

MULHER – Ah, é? Como por exemplo…

PEDRO – Como por exemplo, nós estarmos conversando agora.

MULHER – Que bom, porque se o senhor tivesse morrido não estaria aqui agora jogando conversa fora comigo, eu estaria solitária, sem nada de bom prá fazer.

PEDRO – Nem me fale.

MULHER – O que mais?

PEDRO – O quê?

MULHER – O quê mais mudou?

PEDRO – Ah, sim! Só isso, eu acho… Ah, só que tem coisas que continuam na mesma.

MULHER – Como por exemplo…

PEDRO – Como por exemplo este coral irritante!

MULHER – Minha nossa! O senhor teve este desprazer por duas vezes hoje, uma em sonho e outra agora?

PEDRO – Em sonho não. Eu estava acordado, foi um pressentimento!

MULHER – Seja lá o que for. (RI)

PEDRO – Por quê você ri?

MULHER – Porque isso é coisa natural, do ser humano, de vez em quando acontece, mas nada para se levar a sério! Eu também já tive os mais diversos pressentimentos, mas todos, eu paguei para ver. E Pá! Nada com que eu devesse me preocupar, tudo foi como tinha que ser, pois é assim que eu acredito que as coisas são. Tudo é como tem que ser. Não tem mistério!

PEDRO – Então tá! Quem sabe a senhora não tem razão… (ANUNCIAM A SAÍDA DO ÔNIBUS DA MULHER)

MULHER – Olhe, meu ônibus! Desculpe, mas eu tenho que ir!

PEDRO – Mas é claro… Boa viagem prá senhora! (A MULHER VAI) E a propósito, nós não nos apresentamos, como é mesmo o seu nome?

MULHER – Ah! É melhor sermos desconhecidos para que eu não sinta saudades… (A ÚLTIMA FALA É DADA SAINDO. AO MESMO TEMPO, PEDRO DÁ UM GRANDE SUSPIRO E SENTA COMO UMA PEDRA, CATATÔNICO. O CORAL DE IGREJA CANTA AO FUNDO. A MULHER ESTÁ SAINDO COM A SUA MALA. UM HOMEM SENTA AO LADO DE PEDRO. A MULHER CONCLUI SUA SAÍDA DE PALCO)

HOMEM – O senhor está bem? (APAGAM TODAS AS LUZES)

 *Aluno de artes cênicas da UFSC.