O nonsense na tradução de “Le Piège de Méduse” – Marina Bento Veshagem

O nonsense na tradução de Le Piège de Méduse

Marina Bento Veshagem*

“Les Piège du Méduse”, Erik Satie (montagem de 1948, feita por John Cage)

http://www.youtube.com/watch?v=bKMkwFN0VVY

Erik Satie (1866 – 1925) escreveu uma única peça teatral em toda sua vida. “Le Piège de Méduse” é apresentada por Satie como uma “comédia lírica” e foi escrita em 1913, contexto de articulação dos movimentos de vanguarda na Europa. Constitui-se de quatro personagens que interagem em nove cenas intercaladas com sete partituras para piano, dançadas por um macaco empalhado. Mais do que dramaturgo, Satie foi músico, pianista e compositor francês, que costumava se apresentar no cabaré artístico Le Chat Noir, em Paris. O autor é citado como precursor de movimentos artísticos como o minimalismo, também da música repetitiva e do teatro do absurdo.

Erik Satie já foi Eric. A mudança de nome aconteceu provavelmente em 1879 – há pouco registro biográfico desta fase de Satie – e não sem propósito, pois o músico sabia bem o que representava essa alteração: foneticamente nada mudava, mas a atribuição de sentido ao novo “prénome” poderia ser outra. A nova grafia estaria relacionada às origens vikings de Satie, para as quais “Erik, O Vermelho”, foi o maior guerreiro. Para além disso, a forma de se designar rendeu ao pianista apelidos em diferentes momentos de carreira: “Esotérik” (como o chamou o escritor e humorista francês Alphonse Allais), na sua fase mística e precursora (1887 – 1895), e depois “Satierik” (preferiu Francis Picabia, pintor e poeta dadaísta), em uma nova etapa:

“Subitamente, o homem transfigura-se. 1900. À noite, nos cabarés de Paris, dedilha valsa ligeira (Je te veux, tendrement). Riso ou sorriso? Nova mudança. Troca a roupa elegante de veludo e o caquete de boêmio pelo fato escuro, o chapéu coco e o colarinho postiço de notário, complementados por indefectível guarda-chuva. O exterior envelhece. Ele rejuvenesce, velhíssimo na aparência heterônimo em pessoa. Enquanto Debussy produz obras-primas impressionistas como a Canção de Bilitis (1897) e os Nocturnos (1899), o riso de Satie começa a florescer em peças curtas e desconcertantes pela simplicidade e pelo tom paródico. Os títulos, antes enigmáticos, agora criticam, em poéticos disparates, a nomenclatura deliquescente de matiz impressionista: Peças Frias (Três Árias pra Fazer Correr e Três Danças de Viés), 1897; Prelúdios Flácidos para um Cão, 1912, Três Valsas Distintas do Afectado Enfadado, 1914, para citar só alguns exemplos. Dada adota logo esse velho terrível, que com a peça Armadilha de Medusa (1913) já praticava o absurdo com a maior naturalidade. Balé Parade, 1917, será o sucesso do escândalo do ex-esotérico Satierik. Um concerto para máquina de escrever, sirenes e tiros, com jazz e orquestra. Mas Satie tem outras facetas.”(CAMPOS, 1980)

Dessa forma, Erik, com seu nome, já anunciava a multiplicidade de sentidos que estaria no cerne das suas escolhas pessoais e artísticas. Em Satie, as palavras viajam ao encontro de sentidos – esotéricos? Satíricos? –, que podem ser montados pelo autor e pelo leitor, numa de constelação de universos possíveis. Em “Le Piège de Méduse”, a linguagem nonsense é o recurso que multiplica os sentidos e universos.

Wim Tigges, em “An Anatomy of Literary Nonsense”, defende que o nonsense deve ser visto como um gênero, sendo mesmo possível determinar um arquétipo desse gênero. Apesar disso, admite que ele pode ser usado também como uma qualidade, um dispositivo (device) ou um modo, desde que realizado de forma adequada. Para Tigges, o uso de nonsense como equivalente a engraçado, cômico, ridículo, e outros, deveria ser rejeitado. O autor entende por nonsense:

A genre of narrative literature which balances a multiplicity of meaning with a simultaneous absence of meaning. This balance is effected by playing with the rules of language, logic, prosody and representation, or a combination of these. In order to be successful, nonsense must at the same time invite the reader to interpretation and avoid the suggestion that there is a deeper meaning which can be obtained by considering connotations or associations, because these lead to nothing. The elements of word and image that may be used in this play are primarily those of negativity or mirroring, imprecision or mixture, infinite repetition, simultaneity, and arbitrariness. A dichotomy between reality and the words and images which are used to describe it must be suggested. The greater the distance or tension between what is presented, the expectations that are evoked, and the frustration of these expectations, the more nonsensical the effect will be. The material may come from the unconscious (indeed, it is very likely in many instances to do so), but this may not be suggested in the presentation.[1] (TIGGES, 1988, p. 47)

“Le Piège de Méduse”, como já indicamos, foi classificada pelo próprio autor como uma comédia lírica. O gênero “comédie lyrique”, de origem francesa, era muito utilizado no século XVIII e, no século XIX, já passou a ser conhecido como “opéra lyrique”. A peça em questão possui qualidades de nonsense, e não é a intenção aqui verificar se ela poderia se encaixar no gênero nonsense, mesmo porque Wim Tigges não se baseia em uma noção convencional de literatura. Ele prefere ver o gênero como um fenômeno que não é fixo e nem estático, em que algo nonsense também pode ser um romance, uma peça, ou uma música. O que não é possível, para Tigges, é que algo seja simultaneamente nonsense e uma alegoria, uma sátira ou uma piada, o que não é o caso de “Le Piège de Méduse” (TIGGES, 1988, p. 50).

A utilização de dispositivos (device) nonsense em “Le Piège de Méduse” propõe um jogo de busca pelo significado, o que dificulta a atribuição unívoca de sentido a uma palavra. Para Michel Leiris, a verdadeira armadilha (piège) está justamente na linguagem. Os procedimentos da peça, que muitas vezes são os mais prosaicos e reconhecidos pelo leitor, enganam o pensamento, deixando-o num terreno pouco seguro e estável. Quando o leitor sente, finalmente, que está prestes a encontrar um sentido, acontece a disjunção, e ele é lançado novamente ao universo da busca, frustrado e inseguro.

D’un dialogue banal à donner le vertige émergent ça et là des locutions employées en porte-à-faux, sorte de birfurcations du langage, qui ne sont pas proprement parler des jeux des mots, mais donnent un tour absurde à la pensée. […] L’usage constant de procédés de ce genre (tendent a glisser partout des chausse-trapes, verbales ou non, où l’intelligence hésite, trébuche ou, au besoin, se casse le nez) constitue le véritable « piège » – attrape-nigaud, en même temps que sourcière à poésie, puisque celle-ci préfère, entre tous les instants, celui où se produit une perte de pied, due à un glissement du terrain ou à une secousse sismique de la pensée.  Ainsi, le matériau le plus vulgaire (celui que nous croyons connaître le mieux) sera aussi le plus  poétique, moyennant ce détournement qu’il subit, cette luxation qu’on lui inflige, la manière dont il est écartelé ou imperceptiblement altéré[2]. (Michel Leiris, Nouvelle Revue Française, nº 292/ 1938, citado por Ornela Volta em SATIE, 1988, p. 55)

Este uso da linguagem também pode ser armadilha para o tradutor, em que este cai quando acredita que pode encontrar o sentido do original, o essencial a ser traduzido. Walter Benjamin, em “A Tarefa do Tradutor”, questiona por que a tradução repetiria inúmeras vezes a mesma coisa: “O que ‘diz’ uma obra poética? Muito pouco para quem a compreende. O que lhe é essencial não é comunicação, não é enunciado. E, no entanto, a tradução que pretendesse comunicar algo não poderia comunicar nada que não fosse comunicação, portanto, algo de inessencial” (BENJAMIN, 2011, p. 102). Para ele, a característica da má tradução é transmitir algo. Quando o tradutor cai nessa armadilha da busca pela comunicação, acaba por fazer apenas uma transmissão inexata de um conteúdo que não é a essência que ele buscava. O tradutor endividado assume que o que está numa tradução ultrapassa a comunicação.

A linguagem nonsense em “Le Piège de Méduse aponta diretamente ao tradutor que não há algo de essencial a ser comunicado. Essa é a armadilha mais convidativa da tradução desta peça: aceitar o jogo proposto pelo nonsense. Erik anuncia ao leitor sua armadilha na rubrica inicial: “Aqui está uma peça de fantasia… sem realidade. Uma ‘pegadinha’. Não veja outra coisa. O papel do barão Méduse é uma espécie de retrato… É mesmo o meu retrato… um retrato em pé” (SATIE, 1988, p. 8). A “pegadinha” segue nas didascálias, que apresentam os personagens enquanto “personalidades” (personalités). Em resumo, o enredo se constrói em torno do barão Méduse, personagem central, que recebe a visita de Astolfo, pretendente da sua filha Frisette, recomendado pelo general. Duvidando da lealdade de Astolfo, Méduse decide preparar-lhe uma armadilha, um teste para que o futuro genro possa provar que o ama (o sogro, e não a pretendente). Uma série de acontecimentos sem propósito se seguem, sempre gerados pela tentativa de controle da situação por Méduse.

O barão inaugura a cena declarando, sozinho, que nada o perturba e segue descrevendo diversos incômodos insignificantes como importantes: formigamentos, soluços e até suas meias elásticas: “des chaussons trop courts obstruent facilement mon cerveau & me rendent aphone – moralement, bien entendu…..”[3] (SATIE, 1988, p. 11). Apenas nesse trecho inicial, há inúmeras promessas de aproximação do sentido seguidas de imediatas frustrações e consequentes afastamentos. Nada o incomoda, mas ínfimas coisas o aborrecem; meias elásticas curtas obstruem o órgão no extremo oposto do corpo, da razão, o cérebro; isso o deixa afônico, mas não privado de sua voz, e sim de sua moral. Méduse resolve então se dedicar às suas contas.

Satie utiliza a repetição como outro dispositivo (device) nonsense.  Em um mesmo trecho, a palavra assume diferentes significados como, por exemplo, quando o barão faz uma ligação para o general e é uma mulher quem atende. O barão pergunta se é o general quem fala e em seguida implora: “Non, mademoiselle. Ne coupez pas; ne coupez pas le general….”[4] (SATIE, 1988, p. 13). O primeiro “coupez” tem como sentido mais próximo “desligar”, mas o segundo inicia um afastamento deste primeiro, podendo significar “cortar”. A confusão fica mais clara no decorrer dessa fala, pois, o barão, irritado, pergunta de que matadouro de cavalos fala a mulher ao telefone e ainda dá conselhos de como ela pode expulsar um cavalo que teria se aninhado em sua cama. Ao fim, ele acaba afirmando: “Vous avez coupé le cheval”[5] (SATIE, 1988, p. 14), aí mais uma vez com o sentido de “cortar”. Ele completa com: “Je ne reconnais pas la voix du cheval!”[6] (SATIE, 1988, p. 14), sendo que havia solicitado falar com o general. O sentido escapa a cada repetição da palavra, quando a narrativa parecia se aproximar de uma definição.

Como elemento do que Tigges chama de espelhamento (mirroring), ao final da peça, o barão anuncia que seu genro entrará para a antiga família que deu seu nome a um animal invertebrado da classe dos “acéphales” e ainda diz que este animal vive no mar (SATIE, 1988, p.36). Méduse, o barão, é também o nome do animal invertebrado medusa, em português também conhecido como água-viva, da família dos cnidários. Cnidário, em francês, se diz “acalèphe”. Na peça, o barão estabeleceria um jogo de palavras quando, por um “lapso”, declara que sua família é “acéphale”, que significa acéfalo, sem cérebro – novamente o órgão da razão é lembrado -, em vez de “acalèphe”.

Outro elemento essencial do nonsense, além da tensão entre presença e ausência de sentido, a repetição e o espelhamento, é a ênfase, mais forte do que em qualquer outro tipo de literatura, em sua natureza verbal. “Le Piège de Méduse” já carrega em sua gênese tal natureza, pois o texto teatral, mesmo enquanto obra, é pensado para ser encenado, verbalizado, no momento em que seus elementos – palavras, gestos, cenário, figurino, adereços – são colocados em perspectiva em um tempo e espaço definidos.

Por a peça ser caracterizada pelo próprio autor como comédia, ou ópera lírica, percebemos que a música é um dos seus elementos centrais. Ela está presente nas sete partituras que intercalam as nove cenas, mas não atuando conforme a expectativa convencional de uma ópera. As canções são apenas para piano, não são cantadas, e não ajudam a contar uma história ou mostrar o ponto de vista de um personagem, ou ainda a contextualizar o leitor em uma próxima cena. Em “Le Piège de Méduse”, as músicas, em diversos gêneros (valsa, quadrilha, mazurca e polca), apenas intercalam as cenas lhes serem complementares ou ilustrativas, ou sequer harmônicas; são dançadas pelo macaco mecânico empalhado Jonas – que ao final da peça é descrito pelo barão como “o melhor de todos nós” (“le meilleur de nous tous”, SATIE, 1988, p.37). Seria ele o profeta Jonas, ou a figura bíblica que passa três dias e três noites no estômago de um “peixe grande”?

A montagem das cenas musicais dessa forma acentua a poética de Satie enquanto jogo de distanciamentos e aproximações do sentido. Ela apresenta novas pausas, cortes, cesuras, quando o leitor era levado a acreditar que poderia encontrar ali um sentido mais profundo. A importância da música nesse sentido também se revela no texto, além das partituras. Há palavras utilizadas na peça que significam nomes de instrumentos musicais, mas que nos contextos em que são apresentadas, possuem outro significado na primeira apreensão. Por exemplo, “cors”, utilizado no sentido de “calo” e que também pode significar o instrumento “trompa”, e “tropette”, que coloquialmente utilizado na peça seria “cara”, “fisionomia”, mas que também quer dizer “trompete”.

Ressalto que a apresentação da música em “Le Piège de Méduse” é parte da poética de Satie porque tais escolhas não se restringem à peça, mas se estendem a sua produção como músico. Foi exatamente por essa característica que Erik recebeu o apelido de “Esotérik” no início de sua carreira. O músico, que buscava no Le Chat Noir um lugar para tocar, apresentou-se como pianista de um gênero não existente: “gymnopedista” (derivação do nome de um antigo festival grego dedicado ao deus Apolo, o Gymnopaedia). Assim que foi aceito com esse argumento, Satie compôs suas três gymnopédias, que são peças para piano criadas com uma linguagem simples e nova: nos primeiros dezoito compassos da primeira peça são usadas apenas seis notas, e de maneira geral não há desenvolvimento nem transição. “Era o germe de um modernismo alternativo, que chegaria à maturidade na música desadornada, de base popular, alegria jazzística e desenvolvimento automático dos anos 20” (ROSS, 2009, p.59).

Alex Ross, em “O Resto é Ruído”, identifica as Gymnopédies como uma das representantes francesas da mediterranização proposta por Nietzsche como libertação da “egolatria wagneriana”, que trazia a concepção de “obra de arte total”, tão difundida na época. Erik Satie foi tido como precursor de movimentos artísticos como o minimalismo – em que os artistas preocupavam-se em usar poucos elementos fundamentais como base de expressão -, também de conceitos como a música repetitiva – que consiste na repetição de trechos musicais na criação ou apresentação da composição – e a música ambiente – “musique d’ameublement”, composta para não se sobrepor aos sons naturais do ambiente, mas para compor com eles, como uma mobília, que servia apenas para preencher os silêncios na conversa dos convidados de um jantar, por exemplo, e abafar os ruídos da rua.

A única peça dramatúrgica escrita por Satie está inserida nesse universo de concepções. Há em “Le Piège de Méduse”, inclusive, uma referência à “musique d’ameublement”. Na segunda cena da peça, o barão apresenta a Astolfo, pretendente de sua filha, uma foto sua. Astolfo argumenta: “Mais c’est um fauteuil!”[7], e Médusa logo retruca que a poltrona, o móvel, parece muito consigo. A cena é interrompida com uma valsa, em cuja partitura estão orientações de execução como, “silencieusement, je vous prie”[8] e “dur comme le diable”[9], procedimento até então não utilizado por compositores.

Para traduzir “Le Piège” de Méduse aceitando as armadilhas da linguagem detalhada anteriormente sem incorrer na transmissão do inessencial, é preciso demarcar que utilizo a concepção de texto de Roland Barthes. O sentido tradicional de texto está ligado à verdade e à segurança e implica uma articulação em que ao lado do significante esteja o significado unívoco, definitivo e que detém o sentido. A partir dessa concepção, na tradução deveria haver uma origem, uma intenção e um sentido canônico a se encontrar, restituir e manter. Entretanto, a partir de 1960 o surgimento de uma nova teoria do texto começou a substituir o critério de verdade pelo de validade, com uma autonomia do significante e seus desdobramentos, liberados do conteúdo. Dessa nova concepção, interessa-nos, sobretudo, ver o texto como produtividade.

Para Barthes, texto não é o mesmo que obra: esta pode ocupar um espaço na estante, como objeto finito e computável, aquele é um campo metodológico, que não se pode enumerar. Texto é, então, uma “prática significante”, pois nele a significação não depende apenas da matéria do significante, mas também do plural que é o sujeito enunciador. Segundo essa visão, a enunciação é instável, pois sempre se faz sob o discurso do outro e acontece por uma operação, que é o contato entre sujeito e língua. Essa é a produtividade: “o texto ‘trabalha’, a cada momento e por qualquer lado pelo qual seja tomado; mesmo escrito (fixado), ele não pára de trabalhar, de manter um processo de produção” (BARTHES, 2004, p. 271). Em Barthes, temos que o que o texto trabalha é a língua. Assim, a única coisa que pode ser traduzida é o texto, mesmo que ele coincida em muitos casos com uma obra, e o único resultado dessa tradução pode ser outro texto.

“Essa prática [de escritura textual] (se quisermos diferenciá-la do simples trabalho do estilo) supõe que foi superado o nível descritivo ou comunicativo da linguagem e que estamos prontos a pôr em cena nossa energia geradora; ela implica, portanto, a aceitação de certo número de procedimentos: o recurso generalizado às distorções anagramáticas da enunciação (aos “jogos de palavras”), à polissemia, ou dialogismo ou, inversamente, à escrita branca, que burla, frustra as conotações, às variações ‘irracionais’ (inverossímeis) da pessoa e do tempo, à subversão contínua da relação entre a escrita e a leitura, entre o destinador e o destinatário do texto” (BARTHES, 2004, p. 287)

Essa maneira de ver o texto – do qual parte a tradução e no qual ela resulta – ajuda-nos a pensar a traduzir superando o nível descritivo ou comunicativo da linguagem e aceitando os procedimentos citados por Barthes. Se o texto é produtividade, não há sentido, essência, a ser encontrada e traduzida. Mesmo porque o texto de partida também trabalha e não é estático, não se mantém o mesmo. “O original, sobrevivente, está em transformação. Não há representação do que está em mudança” (DERRIDA, 2002, p. 43)

Dessa forma, não cabe mais utilizar “significação” como conceito. É aí que Barthes sugere “significância” como denominação adequada.

A significância, que é o texto em ação, não reconhece os domínios impostos pelas ciências da linguagem (esses domínios podem ser reconhecidos no fenotexto, mas não no genotexto); a significância – clarão, fulguração imprevisível dos infinitos de linguagem – está indistintamente em todos os níveis da obra: nos sons, que já não são considerados como unidades próprias a determinar o sentido (fonemas) mas como movimentos pulsionais; nos monemas, que são menos unidades semânticas que árvores de associações e são conduzidos pela conotação, pela polissemia latente, numa metonímia generalizada; nos sintagmas, nos quais, mais que o sentido legal, importa a batida, a ressonância intertextual; no discurso enfim, cuja ‘legibilidade’ é ultrapassada ou acompanhada por uma pluralidade de lógicas outras que não a simples lógica predicativa. (BARTHES, 2004, p. 278)

É a significância que vai reger a tradução: importam os movimentos pulsionais, as árvores de associações, as batidas, as ressonâncias intertextuais. Assim, a palavra é extraída do fluxo da lógica e do sentido para ser exibida enquanto tal, o que é essencial para a tradução.

 

Referências bibliográficas

Benjamin, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages. São Paulo, 1ª Ed, 2011.

Campos, Augusto de. Erik Satie. Revista SomTres nº 17 – maio de 1980. Excertos disponíveis no endereço eletrônico: http://artital.blogspot.com.br/2007/11/numa-crnica-telefonema-de-1952-era-um.html

Derrida, Jacques. Torres de Babel. Trad. Junia Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002

Barthes, Roland. Inéditos, I: teoria/ Roland Barthes; tradução Ivone Castilho Benedetti. – São Paulo: Martins Fontes, 2004. – (Coleção Roland Barthes).

ROSS, Alex. O resto é ruído, escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Satie, Erik. Le piège de Méduse. Commentaires et posface par Ornela Volta. Pantin: Le Castor Astral, 1988.

Tigges, Wim. An Anatomy of Literary Nonsense. Rodopi, 1988.

 

* Jornalista, mestranda do programa de pós-graduação em estudos da tradução.


[1] Um gênero de literatura narrativa que balanceia uma multiplicidade de significados com uma simultânea ausência de sentido. Esse balanço é efetivo pelo jogo com as regras da linguagem, lógica, prosódia e representação, ou uma combinação delas. Para ser bem sucedido, o nonsense deve ao mesmo tempo convidar o leitor para a interpretação e evitar a sugestão de que há um significado mais profundo que pode ser obtido considerando conotações e associações, pois isso não leva a nada. Os elementos de palavras e imagens que podem ser usados neste jogo são primariamente aqueles da negatividade ou espelhamento, imprecisão ou mistura, infinita repetição, simultaneidade e arbitrariedade. Uma dicotomia entre realidade e palavras e imagens que são usadas para descrevê-lo deve ser sugerida. Quanto maior a distância ou tensão entre o que é apresentado, as expectativas que são evocadas e a frustração dessas expectativas, mais nonsense será o efeito. O material pode vir do inconsciente (na verdade, é provável que o seja em muitas instâncias), mas isso não pode ser sugerido na apresentação. (Tradução minha)

[2] De um diálogo banal que provoca vertigem, emergem aqui e ali locuções empregadas em suspensão, sortes de bifurcações de linguagem, que não são propriamente ditas jogos de palavras, mas dão uma volta absurda no pensamento. […] O uso constante de procedimentos deste gênero (tendendo a deslizar por armadilhas, verbais ou não, nas quais a inteligência hesita, tropeça ou, pelo menos, se quebra a cara) constitui a verdadeira « armadilha » – artifício, ao mesmo tempo fonte de poesia, já que esta prefere, em todos os momentos, aquilo em que se produz uma perda de chão, devido a um deslizamento do terreno ou a um abalo sísmico do pensamento. Assim, o material mais vulgar (aquele que nós acreditamos conhecer melhor) será também o mais poético, através do desvio que ele sofre, essa luxação que o inflinge, a maneira como ele é rasgado ou imperceptivelmente alterado. (Tradução minha)

[3] “meias elásticas demasiado curtas obstruem facilmente meu cérebro & me deixam afônico – moralmente, que fique claro”. (Tradução minha)

[4] “Não senhorita. Não desligue, não corte (a ligação com) o general”. (Tradução minha)

[5] “Você cortou o cavalo”. (Tradução minha)

[6] “Eu não reconheço a voz do cavalo!”. (Tradução minha)

[7] “Mas é uma poltrona!” (Tradução minha)

[8] “Silenciosamente, eu te imploro.” (Tradução minha)

[9] “Forte como o diabo”. (Tradução minha)