Histórias de amor – sobre o filme “Desencanto” (1945) – Maria Aparecida Barbosa

Histórias de amor – sobre o filme “Desencanto” (1945)

Maria Aparecida Barbosa*

Desencanto

Desencanto

https://www.youtube.com/watch?v=EG9k00c178w

A peça “Still Life” integrou em 1935 o ciclo de dez peças, Tonight at 8:30, de Noël Coward. O ator/escritor/dramaturgo inglês foi muito popular em todos os âmbitos em que atuou. A biografia  escrita por Philip Hoare em 1995, que foi celebrada na Inglaterra e fez jus quase concomitante à edição brasileira pela Record, significou um revival dessa personalidade relevante na cultura inglesa. Assim, uma de suas peças teatrais, sucesso desde os anos 1920 em palcos de Manchester, Londres e pelo mundo afora, inclusive vinte e uma vezes em palcos profissionais brasileiros (segundo a Enciclopédia Itaú Cultural online), é re-apresentada no Rio de Janeiro ainda em 2011, sob a direção de Eduardo Wotzik: “Breve Encontro”. Sob a direção de Emma Rice da Cia. de Teatro Kneehigh, num percurso que partiu de West End/Londres por palcos de países anglófolos, essa mesma peça reviveu de 2007 a 2010 ousada adaptação, segundo a crítica Turner “creative vandalism” no bom sentido (TURNER, 2007). Focos de luz e projeções particulares de vídeos no palco frisavam nessa contemporânea produção inglesa a mistura de formas teatro-cinema, reconstruindo as cenas de maior dramaticidade, que se cristalizaram na memória e na história através do filme de 1945.

Uma história de amor que marcou para sempre corações de leitores e espectadores de várias gerações. Consta, por exemplo, que desde que viu o filme com Celia Johnson e Trevor Howard, o compositor baiano Dorival Caymmi (CAYMMI, 2001) o considerou o filme de sua vida. Se surpreendia por nunca encontrar alguém que pelo menos conhecesse o filme, até descobrir que esse era igualmente o filme predileto de Mário Peixoto, o diretor de Limite – marco da vanguarda cinematográfica brasileira.

Outro que declara a admiração pelo filme de David Lean e Noël Coward é o escritor Silviano Santiago que atribui ao narrador do seu romance Mil Rosas Roubadas, de 2014, a seguinte confissão: naqueles anos, encontrávamo-nos aos sábados à noite no Clube de Cinema de Belo Horizonte. Foi lá que assistimos a Brief Encounter, filme clássico de David Lean que, por aqui, se chamou Desencanto. E o narrador do livro prossegue deixando contaminar sua própria narrativa pelo amor das personagens do filme momentaneamente amantes em virtude das diabruras que o acaso arma. (SANTIAGO, 2014, p.13)

Embora tenha sido rodado em Carnforth, Lancashire, extremo noroeste da Inglaterra, o filme situa a estação ferroviária ‘Milford Junção’ em ‘Kent’, sudeste da Inglaterra em frente ao continente. Eram tempos de guerra, todo cuidado era pouco. Como se não bastasse filmar na região mais afastada e menos vulnerável aos ataques bélicos, a maioria das cenas têm lugar na noite, o que acentua a atmosfera furtiva, proibida do relacionamento entre Laura e Alec.

Na estação de trens ‘Milford Junção’, portanto, Laura Jesson conhece o médico Alec Harvey. Ambos são casados, conversam sobre seus respectivos cônjuges; ambos têm filhos. Para o olhar atual isso não seria um impedimento, mas para Alec, todavia, tratava-se de um amor “strange and desesperately difficult”… (COWARD, 2015)

Me detenho num elemento presente tanto na novela, quanto no filme. Focalizo esse elemento recorrente, que é o que confere a distinção à personagem feminina. É sob a perspectiva dela que se contrói o enredo.

O filme traz um anacronismo e antecipa a cena final. O texto da peça, todavia, tem tempo linear e apresenta a personagem Laura no seguinte trecho: She is reading a Boots Library book at which she occasionally smiles.

Num dos primeiros diálogos, Alec pergunta: Come here every thursday?, e Laura responde: Yes – I do the week’s shopping, changing my library book, have a little lunch, and generally go to the pictures. Not a very exciting routine, really, but it makes a change. E num trecho dinâmico da peça, adaptado à respectiva dinâmica cena do filme, a voz de Laura em playback narra: I changed my book at Boot’s – Miss Lewis had at last managed to get the new Kate O’Brien for me – I believe she’d kept it hidden under the counter for two days. (COWARD, 2015).

Que cumplicidade entre Miss Lewis da Boots Library e a leitora Laura! Essa menção na novela e no filme de Coward à Boots Book-lovers’ Library, uma biblioteca de empréstimos que existiu entre 1899 e 1966 – hoje a empresa se restringe ao mercado de drogaria -, caracteriza especificamente a personagem dona-de-casa de classe média casada e respeitada, com filhos (WILSON, 2014).

A Boots Book-lovers’ Library constituiu um importante sensor do gosto e das expectativas sobretudo das “leitoras”, segmento que crescia no século 20, influenciando o processo de edição mercadológica com os livros de amor. Especialmente no período entre-guerras os empréstimos de livros em bibliotecas possibilitavam aos leitores o acesso a livros recém-lançados que, de outro modo, não seriam comprados. Pois, Wilson observa, apesar da disseminação das séries a bom preço no mercado, livros eram a última coisa que as pessoas tencionavam comprar. Reflexo dos tempos de guerra!

Mas, mesmo em tempos sombrios, a leitura de histórias de amor, amor marcado pelos percalços, pela clandestinidade, constituiu veio de fidelidade. Imortalizaram-se as paixões de Romeu e Julieta, de Shakespeare, de Paulo e Francesca, na Divina Comédia, de Dante, o romance entre Werther e Lotte, de Goethe, a trágica Carta de uma Desconhecida, de Stefan Zweig. Nessa tradição se insere a peça “Still Life”, de Noël Coward que se autoreferencia com a menção ao gênero.

Numa pesquisa sobre o segmento de leitura do gênero histórias de amor, referente ao Brasil do século 20, Lang ressalta a preferência das leitoras por romances do casal de irmãos franceses que publicavam sob o pseudônimo M. Delly (LANG,2014). As obras de M. Delly surgiram na França a partir de 1920 e com a aquiescência da censura católica passaram a ser editadas em Portugal e importadas pelo Brasil. Eram edições realizadas até os anos 1980 pela Companhia Editora Nacional, disponíveis em bibliotecas públicas e em escolas de normalistas. A Boots Book-lovers’ Library, na Inglaterra, especializou-se em público semelhante ao da coleção menina-moça e ao da coleção das moças, ou seja, mulheres de classe média, ledoras de histórias de amor.

Queira perdoar-me por evocar lembranças pessoais. Elas pretendem lhe confessar que, assim como a protagonista do filme, talvez como você, leitor, foi com os romances de amor que a literatura me seduziu.

Referências bibliográficas:

CAYMMY. 2001. COWARD. Noël. Noël Coward Screenplays In Which We Serve, Brief Encounter, The Astonished Heart.

Barry Day. 2015, eBook. LANG,Cíntia da Silva. “Bastidores da Produção da Coleção Biblioteca Das Moças”. In: III Seminário “Leitura, Escola, História”, 2007.  Disponível dia 16/04/2016 no site http://alb.com.br/arquivomorto/edicoes_anteriores/anais16/sem07pdf/sm07ss02_02.pdf

SANTIAGO, Silviano. Mil Rosas Roubadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

TURNER, Jane. New Theatre Quartely, volume 23/Issue 3/agosto 2007, pp 208-218. Cambridge University Press.

WILSON, Nicola. “Boots Book-lovers Library and the Novel: the impact of a Circulanting Library Market on Twentieth-Century Fiction”. In: Information e Culture, Vol. 49, No. 4, 2014 by the University of Texas Press.

 

*Professora da UFSC.