Como é que se diz em polonês. A história da tradução, nascida e nascida – Piotr Kilanowski

Como é que se diz em polonês. A história da tradução, nascida e nascida.[1]

Piotr Kilanowski[2]

 

Avalovara  é um livro raro. Não hesito em afirmar que se trata de uma das obras-primas da literatura brasileira e da literatura mundial que ainda aguardam o devido reconhecimento que vai pô-las no merecido lugar de destaque. No caso de Avalovara este lugar fica, por exemplo, do lado da Rayuela (Jogo de amarelinha), de Cortázar, do Dicionário Kazar, de Milorad Pávitch e da obra de Borges. Uma obra de arte total, que combina poesia, romance e ensaio sobre a criação. Uma metaliteratura numa estrutura de construção original, ousadíssima e profundamente simbólica.No meu ponto de vista, encontra-se entre os mais importantes romances brasileiros como, entre outros, Dom Casmurro, de Machado de Assis e  Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Ao mesmo tempo, de um modo curioso, consciente ou inconscientemente, inscreve-se numa longa lista de romances brasileiros que na sua linha narrativa possuem uma semelhança que muito diz sobre a sociedade e os costumes.

Pensemos por um momento no que une obras tão distantes como as já mencionadas Avalovara, Dom Casmurro e Grande Sertão: Veredas com São Bernardo, A hora da estrela e A lavoura arcaica.  Podemos colocar também na lista  Iracema, com toda a sua carga simbólica, ou, para mostrar a continuidade da linha na literatura contemporânea, K. Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski. Todos estes romances têm entre seus temas principais a morte de uma mulher, vítima de violência, seja física, seja psicológica, seja social… E, como em Iracema, esta mulher pode ser lida tanto literal quanto metaforicamente.

Avalovara  evoca várias imagens metafóricas de mulheres desde Natividade, Hermelinda e Hermenilda, Cecília, Roos até a Nascida e Nascida, cujo nome no livro é um símbolo. Talvez o nome real da personagem possa ser lido uma vez que se interprete tanto o símbolo quanto a denominação Nascida e Nascida. Se o epíteto revela o duplo nascimento ou renascimento, o símbolo traz em si o elemento solar (ponto no círculo) e chifrinhos, anteninhas que podem ser tanto vistos como fragmento do símbolo de Mercúrio, deus da escrita, quanto os chifres de abundância e fertilidade. Tanto o sol quanto a escrita e a fertilidade presumem vários nascimentos, como o de Nascida e Nascida, e mais ainda: todos eles presumem o renascimento. Embora o autor tenha sido um homem como os da Renascença, não é este o ponto de chegada da explicação. Existe entre os nomes comuns da herança judaico-cristã um que consegue resumir estas qualidades. No entanto, se fosse usado pelo escritor, deixaria de ser lido e interpretado, deixando de ter significados atribuídos e passaria a ser apenas um significante, letra morta, um signo e não um símbolo, mesmo que os nomes tenham étimos simbólicos e mágicos. Desta maneira, ao revelar a possível brincadeira do autor, que tenta caracterizar a essência do inominável, indecifrável e impossível de captar da personagem, estamos apenas revelando a possível brincadeira, mais um dos inúmeros artifícios do autor. Trata-se do nome Re-nata. Vejam como conseguimos empobrecer a mensagem substituindo o símbolo ou o epíteto Nascida e Nascida, decifrando-lhe o possível significado e fechando-o num signo, nada simbólico. O que o autor consegue no seu livro é se expressar como um oráculo grego, que não fala, nem cala, apenas assinala. As atribuições do significado e interpretações, invariavelmente, prendem e reduzem o simbólico ao significante, sendo o seu significado delimitado racionalmente.

 

Da mesma forma, o meu intuito ao traduzir a obra de Osman Lins foi fugir do encerramento dos múltiplos sentidos sugeridos em palavras que lhes estripariam o segredo e a plurissignificatividade, que lhes transformariam num mero nome no lugar de uma floresta de significados simbolizados. Uma tarefa que considero extremamente complexa, uma vez que, além da forma estrutural do romance, as estruturas sintáticas usadas no livro, extremamente barrocas, forçam até o falante de uma língua como o polonês, com declinações e conjugações, a sentir um enorme estranhamento diante das frases de sintaxe arrevesada e invertida do autor.

 

Com esta sintaxe está ligada a primeira das histórias da tradução que gostaria de compartilhar aqui. Iniciei a tradução depois de quase cinco anos nos quais o meu contato com a língua materna era muito raro (era na época anterior aos jornais na internet, skype e e-mail, quando as cartas levavam de um a dois meses para chegar ao lugar do destino e as chamadas telefônicas internacionais eram tão caras para o bolso do estudante que aconteciam somente de duas a três vezes por ano). Quando voltei para a Polônia depois de cinco anos de ausência, sentia já um certo estranhamento diante da minha língua nativa. Quando pedi a uma amiga, cuja competência na língua era indiscutível, que lesse e desse uma opinião e sugestões (algo que sempre ronda a minha carreira de tradutor que vive entre as línguas – nunca tem certeza total na língua madrasta e não possui mais a certeza absoluta na língua materna) esta achou que houve um problema com o meu polonês devido ao tempo sem o contato com o idioma. Como na cultura na qual fui criado a correção linguística e a clareza da expressão eram vistas como algo dogmático, resolvi traduzir a sintaxe de Lins para uma sintaxe que fosse facilmente legível. As longas frases foram encurtadas, as inversões diminuídas, o ritmo do texto começou a obedecer ao ritmo da língua literária padrão. Como desculpa posso citar o trabalho da grande tradutora das obras de Cortázar para o polonês, Zofia Chądzyńska, cujo Cortázar é mais bonito, de leitura mais fácil e mais envolvente até que o original. Esta também foi uma das minhas inspirações a respeito de como se deve adaptar um texto literário difícil para a língua de chegada. Sem dúvida o texto assim, a tradução que poderia ser chamada de bela infiel, seria mais facilmente digerível pelo leitor e essa era outra preocupação importante para mim naquele momento.

Queria, pois, ver o fruto do meu trabalho e fascínio publicado, lido e comentado. Como o próprio autor, afinal o tradutor é o segundo autor, sonhava com o sucesso do livro, queria ver compartilhado o meu encanto diante da obra. Talvez aqui a título de digressão caibam algumas palavras sobre como traduzo. Diferentemente das relações no mundo real, no qual a oferta segue a procura, a minha motivação para traduzir segue as linhas do irracional. De tanto encanto com o texto lido quero que ele esteja disponível para os outros, quero compartilhar a minha fascinação. Talvez esta seja uma parte mais consciente da motivação, mas no nível mais profundo creio que quero me unir com o texto de um modo mais próximo possível. Como o “Pierre Menard, autor de Quixote”, de Borges, quero recontar o texto, reescrevê-lo exatamente igual ou até melhor que o original. Outra motivação talvez seja o fato de eu considerar a tradução como uma possibilidade de leitura das mais profundas possíveis e, por isso, só sinto vontade de traduzir obras que dialogam comigo num nível bem profundo. Desta forma a tradução se torna uma leitura a mais próxima possível do texto e, não raro, revela sentidos que só se tornam apreensíveis no ato de tentar recontar, reescrever a obra. Em outras palavras, a motivação para a tradução no meu caso é, poder-se-ia dizer, daimônica. A obra, a voz do autor, como uma obsessão, não me saem da cabeça, a maneira de me libertar disso é traduzir. É claro que outra motivação frequente é a mesma que leva as pessoas a ler, ver televisão ou cinema, ou seja suspender por um momento a realidade, o cotidiano, a rotina. O ofício tradutório é uma espécie de sudoku, ou palavras cruzadas, cujo efeito pode ser compartilhado.

 

Ao compartilhar as minhas motivações não pretendo apenas me desnudar ou dar motivo para reflexões. Queria contar a história da tradução de Avalovara e, neste caso, creio ser importante descrever o funcionamento do seu tradutor, que precisa ser motivado para “manter a charrua nos sulcos”. À primeira motivação, a daimônica, seguiu-se o contato com a realidade plausível, ou seja, o já descrito contato com a especialista na língua de chegada, que considerou o artifício sintático de Lins efeito do meu problema com a língua materna. Por mais que na época já estivesse efetivamente um pouco afastado da língua materna e tivesse já um bom domínio da língua madrasta (entenda-se bem: madrasta carinhosa, uma verdadeira segunda mãe, mas mesmo assim o sangue que flui nas nossas veias não é o mesmo), ainda não tinha experiência suficiente para entender que ao polir a sintaxe de Lins, para tornar a obra mais digerível, talvez fazendo com que o texto pudesse ser lido e entendido por um maior número de leitores, eu estava prejudicando a intenção autoral. Pois creio que o autor pretendia por meio dessa sintaxe provocar o estranhamento, usando o termo de Chklovski. Obrigando o leitor a ler e reler os trechos para poder captar-lhes o significado, transportava-o para uma dimensão não cotidiana usando de um artifício poético. Talvez o trabalho de embrulhar a sintaxe, de quebrar as frases bonitas e legíveis originárias da experiência tradutória de quinze anos atrás, seja a maior qualidade e desafio da tradução que à imagem e semelhança da Nascida e Nascida está renascendo, a mesma e diferente depois desse tempo passado.

 

Habent sua fata libelli. Com as traduções ocorre da mesma forma. Para colocar o leitor a par da história da tradução, direi que a iniciei quando estive ainda suficientemente inexperiente e entusiasmado para pretender um trabalho desta envergadura. Na época da minha graduação, na Universidade de Brasília, entrei em contato com a obra por intermédio do professor Ronaldes de Mello e Souza e decidi que iria vertê-la para o polonês. O início do trabalho foi possibilitado pelo meu ingresso no mestrado, com mais recursos financeiros devido à bolsa da CAPES e, consequentemente, mais tempo livre para poder me dedicar ao ofício tradutório. Ao longo dos meus estudos de mestrado e da assumida empreitada de traduzir Avalovara, tive também a oportunidade de dialogar longamente com uma outra entusiasta da obra e uma de suas melhores exegetas, Regina Dalcastagné. Esse contato manteve viva e forte a chama de admiração pela obra. Todos nós, unidos pelo entusiasmo e pela necessidade de interpretar, somos como os talmudistas que sabiam como é importante poder compartilhar o entusiasmo e as interpretações minuciosas com outro entusiasta. Afinal, como disse Glen Gould: “a interpretação não é um ato de luta, mas um ato de amor”[3].

Com o trabalho de tradução correndo paralelo ao meu trabalho de mestrado, pude viajar à Polônia e verificar as possibilidades de publicação da versão polonesa de Osman Lins. A Polônia de 1996 era um país diferente do deixado por mim seis anos antes. Por um lado, o processo de se libertar continuava progredindo, por outro, começava outro tipo de escravatura, diferente da totalitária, ditada pelo livre mercado. Como todos nós sabemos, o livre mercado não possui grandes preocupações referentes aos livros (a não ser que vendam tão bem como os de Paulo Coelho), e podemos imaginar qual foi o próximo passo da via crucis tradutória. Não consegui entrar em contato com as pessoas certas das editoras indicadas por meu professor e amigo Henryk Siewierski, não tive tempo e energia suficientes para viajar para outra cidade e tentar contatos pessoais. Em vez disso, entrei em contato com uma grande editora da minha cidade natal, cujo nome, assim como o sobrenome do seu dono Zysk, poderia ser literalmente traduzido para português como, nomen omen “lucro”. Os fragmentos da tradução foram deixados para serem avaliados pelo dono da editora, após um breve contato com ele. A tradução naquela altura do campeonato já estava seguindo a norma de ser bonita e legível, conforme sugerido pela amiga. Infelizmente a resposta da editora nunca chegou para mim. Como tive que me dedicar à dissertação e à defesa do mestrado, o projeto ficou esperando a decisão da editora para ser concluído, com aproximadamente dois terços do livro traduzidos. Uma vez defendido o mestrado, sem resposta da editora (até hoje estou aguardando), a realidade plausível deu conta de silenciar a voz de daimon: tendo que trabalhar, me desdobrar para sobreviver e enfrentar a cada momento novos desafios, a tradução ficou para depois.

 

O depois parecia não chegar nunca, como o retorno da editora, e como minhas áreas de pesquisa e atuação mudaram para outras searas literárias, as traduções ficaram mais centradas em torno da poesia. Somente quase vinte anos depois de iniciar a tradução inconclusa, quinze anos depois do seu abandono e após contato com Ana Luiza Andrade e nossas conversas sobre Osman Lins é que tomaram forma as condições para a tradução que estavam nascendo pela segunda vez. No momento, ainda inacabada, mas sendo revisada, enfeitada ou, como queriam os puristas, enfeiada, na tentativa de refletir a sintaxe original. No segundo nascimento da tradução, foi que percebi também o porquê do daimon. Sempre fui mais ligado às obras poéticas e Avalovara tanto do ponto de vista da forma, cuidadosa e detalhadamente estruturada e executada, quanto do ponto de vista dos conteúdos que se abrem, crescendo vertiginosamente em tamanho e em complexidade, a cada vez que a espiral em seu giro toca as letras do quadrado mágico, é uma obra essencialmente poética. Como disse o próprio autor, a estrutura rigorosa de uma obra “é como uma jaula dentro da qual se movem animais selvagens”[4].  Avalovara é uma poesia em prosa, uma poesia que ultrapassa as fronteiras do verso, mas que por meio do artifício poético transporta continuamente seus leitores para o reino que não é deste mundo. Ao revisar a tradução, detinha-me nos desafios poéticos da linguagem rebuscada e exata que criava múltiplos sentidos passíveis de múltiplas leituras por meio de artifícios os mais variados possíveis. Algumas leituras estão ligadas à forma do romance, em espiral e quadrado, outras são provenientes dos arranjos das palavras que cuidam para que nada seja óbvio e unívoco na interpretação. De algum modo, a tradução nascida e nascida me ajudou a entender os tortuosos e obscuros caminhos do meu daimon. Espero que o efeito do trabalho tradutório seja como a quinta gêmea, inventada pelas quatro restantes, ao narrar as suas histórias do conto escrito por Abel (T15) – confundindo-se com elas ao ponto de não se poder distinguir qual é a real e qual é a invenção do discurso das outras… Ou como a própria Nascida e Nascida a obra possa falar sobre si mesma no final da empreitada tradutória:

 

“Olho-me duplamente, a noção que eu tenho da minha individualidade é una, sinto-me uma, mas ao mesmo tempo eu me sinto uma em cada uma que sou e nas duas simultaneamente”[5]. (O18)

 

A Nascida e Nascida, mulher habitada por palavras, insubmissa, é o símbolo desta tradução, das traduções em geral – com o corpo repleto de palavras e com a cisão interna que faz com que seja duas em uma. Com dois pares de olhos, vindos de dois idiomas, a obra traduzida espreita o tradutor, o seu segundo autor. Vai falar como a protagonista, sempre com duas vozes.  As duas obras sempre em conflito, as duas sempre convivendo, para sempre uma, para sempre duas. No caso da tradução de Avalovara para o polonês, a este fato comum a todas as traduções, ainda se soma o fato de que teve os seus dois nascimentos, separados entre si por 15 anos, o que faz com que, além dos idiomas, haja também o diálogo entre as duas traduções. O que mais assemelha a protagonista ao efeito do trabalho do tradutor? Tanto a Nascida e Nascida quanto a tradução são textos com particularidades melhor descritas na fala daquela:

como um texto de mil anos, reescrito, apagado, perdido, evocado, novamente escrito e reescrito, uma oração clara, antes familiar, tornada enigmática à medida que transita, em silêncio, de um ventre para outro, enquanto a língua original se desvanece[6](O4).

 

Ambas ficaram mudas por anos e depois ficaram falando sem parar, mesmo sem ter a esperança de serem ouvidas e entendidas. Ambas passearam pelas cidades uma em cima de um unicórnio manco (O11)[7], a outra dentro de um computador ultrapassado . Ambas vivem na procura de um nome certo, a palavra exata para expressá-las. Assim como   precisa verbalizar a experiência, narrá-la, pois só viver não é suficiente para existir e para ser dona da sua história, ela precisa contá-la, a tradução é a reescrita do livro, pois só lê-lo, experienciar a leitura não é o bastante. A leitura e a vivência precisam transformar-se num texto. Assim como  ao narrar tem medo de trair o vivido, a tradução teme trair o original. Para dar um fim a este rol de semelhanças entre a mulher-texto e a tradução, um último exemplo. Assim como  refaz e desmembra o seu corpo na citação abaixo, a tradução muda os sentidos das palavras, inverte significados, confunde o léxico, na tentativa de existir de modo mais completo e mais fiel à vivência original:

 

“Onde os meus seios? Onde o meu colo? Braço. Dorso? Torso… Estas palavras – e outras escorregam, começam a descolar-se das partes do meu corpo por elas nomeadas. Já não penso no meu braço como sendo braço, mas como pés ou boca; a boca chama-se umbigo ou calcanhar; o sexo chama-se olhos, depois peito, depois ombro. Entre a minha mente e o meu corpo desmembrado flutua um pequeno léxico arbitrário.”[8] (O15)

 

Gostaria de apresentar agora, a título do exemplo, alguns desafios e soluções da tradução, uma vez que a principal dificuldade dela – a possibilidade de ver a obra concluída e publicada foi esboçada acima. Antes disto, ainda menciono algumas decisões que nortearam o início da tradução. Primeiramente decidi abandonar a preciosa solução tipográfica do autor que fazia os temas da obra crescer em 10 linhas a cada capítulo (fora o tema do “Relógio de Julius Heckethorn”, que cresce em 12 linhas, como costumam fazer os relógios, de “Cecília entre os leões”, que cresce em 20 e o tema ” e Abel: o Paraíso” que consiste só de duas partes e não segue nenhuma regra), prevendo o comentário num posfácio. Achei o tal trabalho desafiante demais e impossível de ser aproveitado na condição presente do mercado de livros, uma vez que até a Companhia das Letras abandonou o artifício nas suas edições desde os anos noventa. A segunda decisão foi traduzir a obra na ordem em que foi escrita e não pelos temas – linhas narrativas demarcados pelas letras do quadrado. A decisão foi motivada pelo fato de que, desde o início, os capítulos subsequentes às linhas diferentes dialogam entre si. A tradução sequencial ajudaria a garantir esses diálogos, uma vez que eles, frequentemente, se dão por intermédio do uso das mesmas palavras nos capítulos que se seguem. Como exemplo, podemos sugerir a comparação dos capítulos que se seguem: R1, S1, R2, S2. Todos trazem o espaço da sala e dois personagens com sombras, luzes e rostos e vocabulário em diálogo, que poderia ser perdido se a decisão fosse traduzir por temas.

 

Gostaria de dedicar algumas palavras aos desafios apresentados pela obra. Entre os principais devo mencionar: as citações intertextuais com a dificuldade de identificá-las e depois achar o equivalente na língua de chegada. Como, por exemplo, trechos estilizados ou retirados do Cântico dos Cânticos ou excertos que apontam para a Divina Comédia.

Outro desafio grande foi a necessidade de se manterem os estilos diferenciados dos fios narrativos. Cada fio narrativo na obra possui um estilo diferente. Mais ainda: frequentemente dentro do mesmo fio temos uma mistura dos estilos justapostos. Particularmente desafiante aqui é o fio R, que a todo momento traz as sequências de estilos entremisturados.

Entre os desafios menores devo mencionar a questão dos nomes. Como são na sua grande maioria ligados com a cultura judaico-cristã não apresentaram dificuldades, fora a Natividade, que teve que ser explicada por meio de uma nota de rodapé. Traduzi também os apelidos Gorda e Tesoureiro, para dar ao leitor o mesmo gosto de estranheza e familiaridade que tive ao ler a obra. O “gataco” ficou como “małpokot”, junção de “małpa” (macaco) e “kot” (gato), com a ordem invertida do original, pois a opção “kotałpa”, embora mais bonita, além de sugerir o gênero feminino, evoca a imagem de algo estabanado que não possui a graça e a agilidade de um macaco e um gato. Por fim o “iólipo” virou “jolipo”, para o leitor poder procurar as próprias saídas para a interpretação do nome. A mudança da letra permitiu manter o som tão parecido quanto possível com o original. Infelizmente, como o polonês não usa acentuação gráfica, na leitura teremos o acento na penúltima sílaba.

 

Para concluir, queria abordar um outro tema longo – o uso das brincadeiras poéticas. O texto é repleto de desafios menores e maiores que trabalham a sonoridade e sentidos múltiplos. Por exemplo, no trecho abaixo, temos rimas internas, métrica do verso, aliteração. Na sequência apresento o trecho correspondente em polonês.

 

“Assim, pois. Tom e som. Eu e eu e eu, Hermenilda e Hermelinda, eis-nos, ajudantes da fábula que começa a tomar corpo e na qual dois amantes, por via e modo nosso aproximados, começam a enredar-se, cheios de alegria, de paixão e ainda mais de espanto. Temperar o bandolim. Rasga o retrato na ribalta, roderico rude. Sol no cão, ar na mão. Não é? Enorme. As coisas que conquanto em volta os brados tantos. Ah, ondas do tempo e armadilhas rastejantes! Que faz a costureira com o que resta do fio? Cose, calada, a boca do cadáver. Aquém do além. Zás. Esta cantiga é descosida. Une-a um fio: a agulha. Rude roderico, ris do redingote da rã? Alcatruz. (T9)”[9]

 

“A więc tak. Brzęk i dźwięk. Ja i ja i ja, Hermenilda i Hermelinda, oto my, pomocnice opowieści, która zaczyna się ucieleśniać, i w którą dwoje kochanków, poprzez nas i naszym sposobem zbliżonych ku sobie, zaczyna się wikłać, oboje pełni radości, uczucia i pełni też zdumionej bojaźni. Nastroić mandolinę. Rwij rycinę rysów na rampie rozbisurmaniony Roderyku rogaty. Słońce na psierści, powietrze w garści. Bo nie? Niebosiężne. Rzeczy w samej istocie, skrzeczą wokół na krocie. Ach, fale czasu i pełzające pułapki! Co ma zrobić szwaczka z tym co zostało jej z kłębka nici? Zszywa, w ciszy usta nieboszczyka. Poniżej Wysokości. Ploft. Ta pieśń jest rozpruta. Trzyma ją tylko jedna nitka: igła. Rogaty Roderyku, rżysz z ropuszej rękawiczki? Sak.”

 

O roderico rude e as duas sequências de “r” foram mantidas, assim como a sonoridade “cão”- “mão” (psierści – garści). Da mesma forma, “Não é? Enorme” foi refletido em “Bo nie? Niebosiężne”. A rima “As coisas que conquanto em volta os brados tantos” foi refletida por “Rzeczy w samej istocie, skrzeczą wokół na krocie”. A sequência de “c” em “Cose, calada, a boca do cadáver” foi substituída pelo som do “sz” (na leitura em português algo parecido com a leitura de “ch”) “Zaszywa, w ciszy usta nieboszczyka”. Na frase discutida foi mantido também o ritmo, tentando imitar a colocação dos pesos e medidas silabotônicas do original. Como em tradução estamos sempre entre perdas e ganhos, para compensar as perdas em outro trecho, seguindo a veia inventiva do autor, para me manter fiel ao espírito de brincadeira poética, me permiti uma infidelidade ao original inserindo uma inovação. Creio que seja um perfeito exemplo da “infidelidade fiel”, necessária em traduções deste tipo, que ao mesmo tempo em que abandona a tradução literária do original, mantém a fidelidade ao seu espírito. A palavra “psierści” é o neologismo proveniente de junção do adjetivo “psiej”(do cão) com o substantivo declinado “sierść” (pelo).

Outro tema interessante para ser comentado neste pequeno trecho é a palavra “alcatruz” que na primeira versão da tradução, da era pré-internética, ficou traduzida com a palavra usada para o recipiente para retirar a água de um poço ou rio. Como a internet concede ao tradutor possibilidades antes não existentes, descobri que, em português de Portugal, a palavra também tem o significado de armadilha para a pesca de polvos, que achei muito mais adequada para refletir o texto de Lins. Temos, afinal, a tarrafa perpassando o texto em vários fios narrativos.

 

Assim como há trechos nos quais o tradutor pode se sentir feliz, há também outros nos quais está fadado a ser vencido pelo texto que brinca com vários sentidos. No trecho: “Serei, em meu segundo nascimento, um ser como os outros nascido de mulher? Nado de si mesmo? Nado no ar, do ar?(O9)”[10] resultou ser impossível refletir tanto o particípio atípico (nascido-nado) quanto as suas relações sonoras com o nada e com o verbo nadar. Um outro exemplo da derrota tradutória é a frase: “A agulha artefato perfurante fere?(T1)”[11] que perdeu uma boa parcela de sua sonoridade em tradução: “Igła, rzemiosło dziurawiące, rani?”. Por mais que tenha tentado manter a presença do “r” e o ritmo, o resultado comparado ao original deixou a desejar.

 

A tradução espera a sua conclusão. Por enquanto, os dois terços feitos já ganharam uma revisão, o seu segundo nascimento. Não posso afirmar que concluirei o trabalho, pois os meus daimones me empurram incessantemente para a poesia e há muito a ser feito para aproximar a poesia polonesa dos leitores brasileiros. Mas, por outro lado, adoraria ver Osman Lins em polonês, lido e comentado. A possibilidade de compartilhar esta fascinação é um motivo maior para mais um parto de Avalovara, a tradução nascida e nascida.

 

BIBLIOGRAFIA

BORGES, Jorge Luís. “Pierre Menard, autor del Quijote”. In: Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, p. 47-59.

LINS, Osman. Avalovara. 5-a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

____________. Evangelho na taba: outros problemas inculturais brasileiros.Org. de Julieta de Godoy Ladeira. São Paulo: Summus, 1979.

RIEGER, Stefan. Glenn Gould czyli sztuka fugi. Gdańsk: Słowo, obraz/terytoria, 2007.

[1] O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e Tecnológico – Brasil

[2] Tradutor de poesia e professor de literatura polonesa na UFPR

[3] GOULD, Glenn apud RIEGER, Stefan. Glenn Gould czyli sztuka fugi. Gdańsk: Słowo, obraz/terytoria, 2007, p. 21, trad. minha.

[4] LINS (1979), p.167.

[5] LINS (1995), p.146. Para facilitar a localização nas edições que seguem a tipografia original do romance, sempre depois da citação coloco o número do capítulo no qual se encontra o trecho citado.

[6] Idem, p.26

[7] Idem, p.69

[8] Idem, p.118

[9] Idem, p.137

[10] Idem, p.53

[11] Idem, p.52