Olhar do eterno viajante, sempre renovando. Sobre “Recomeço”,de Tomasz Łychowski – Piotr Kilanowski
Olhar do eterno viajante, sempre renovando. Sobre Recomeço,de Tomasz Łychowski.[1]
Piotr Kilanowski[2]
Em 2014, aos oitenta anos, Tomasz Łychowski, poeta polono-brasileiro nascido em Angola, publicou uma coletânea de poemas com o sintomático título Recomeço[3]. O livro reúne poesias escritas por Tomasz ao longo de sua vida marcada por recomeços. A capa do livro traz um quadro do autor que, de algum modo, resume este livro de poesias. No meio das cores vibrantes um pássaro branco alça voo para mais uma aventura. O pássaro pode ser um pássaro real ou símbolo de uma alma que, de cor em cor, de vivência em vivência, a cada passo, a cada batida de asas recomeça a sua jornada.
Nascido um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, em 1934, em Angola, filho do pai polonês e mãe alemã, Tomasz Łychowski mudou-se com os pais para Varsóvia às vésperas da guerra, em 1938. Por lá viveu até 1944. Seu pai, membro das Legiões polonesas que lutaram pela independência do país e em seguida rechaçaram o avanço do Exército Vermelho em 1921, engajou-se na luta clandestina contra os alemães, tendo sido preso e levado para Auschwitz. Tomasz, junto com sua mãe, foi preso no infame cárcere nazista em Varsóvia, Pawiak. Libertados, foram redirecionados para Alemanha, onde viveram até 1948. Depois de passar por campos de refugiados, finalmente conseguiram se encontrar com o pai que tinha sobrevivido aos campos de Auschwitz e Buchenwald e, em 1949, chegaram ao Brasil. Por aqui, Tomasz foi professor da Cultura Inglesa e do Colégio Dom Pedro II. Além de poeta, é também pintor e tradutor.
Sua poesia, marcada pelas memórias, se distingue pela sensibilidade e clareza. O olhar bondoso sobre o mundo se reflete nas idas e vindas entre vários lugares, países, continentes e idiomas que sua vida tocou e que tocaram o seu ser. Esse olhar tem uma particularidade interessante. Ao mesmo tempo que parece um olhar do eterno menino, é um olhar de um sábio que com humildade e compaixão observa o mundo e, apesar de todos os contratempos, percebe nele a beleza, a humanidade e o bem. Aprender que os acontecimentos trágicos e dolorosos não devem ser mais importantes que o sorriso que se produz ao observar o lado da beleza e da bondade é a arte de vida. A poesia de Tomasz é prova de que esta arte épossível de ser dominada. Revisitando os tempos e os lugares que muitas vezes lhe trouxeram dores, seu foco recai sobre o outro lado. Nada de otimismo barato, é a sabedoria que se reflete também em cores radiantes de suas pinturas – o brilho e a luz devem ser mais visíveis que as trevas ou o cinza do cotidiano. O lado luminoso da experiência humana é também, para o poeta, o encontro com a divindade. Tomasz, forma polonesa de Tomé, é tudo menos incrédulo. Sua fé na vida e nas pessoas tem base nessa capacidade de perceber que a luz deve ofuscar todo o resto.
Mas, como não podia ser diferente, há também, em sua poesia, os reflexos de sua vida, que pode parecer para nós incrível. Em suas memórias Meu caminho para a Lua: como sobrevivi à II Guerra Mundial, obra que teve sua segunda edição pela Letra Capital[4], o autor descreve algumas das suas peripécias, em uma das entrevistas revela também outros acontecimentos, momentos nos quais a morte passou por um triz, os quais não apareceram no livro[5]. A vida rica em acontecimentos incríveis e inusitados, deixa suas marcas na poesia quando o autor visita Auschwitz, lugar onde seu pai foi prisioneiro, ou relembra o passado nas ruas de Varsóvia ou em prisão de Pawiak. Os tempos cruéis não podem ser esquecidos: permanecem, assombram, fazem voltar à memória.
A vivência que aparece nos poemas de Tomasz traz à memória as experiências dos poetas poloneses mais velhos: Herbert (“Cemitério de Varsóvia” e Ficowski (p.ex. “Muranów se ergue”) que transitam pela cidade em duas realidades paralelas: a de agora e a histórica, o choque entre as memórias e o presente provoca um poema. Assim, nas andanças do eu lírico de Łychowski, o passado se infiltra constantemente no presente, como no momento quando o eu lírico toma café na Cidade Velha de Varsóvia. Assim, também, a cada passo do poeta aparecem as suas três pátrias: angolana, polonesa e brasileira. A ponte que liga o Rio a Niterói se funde com a ponte sobre o rio Vístula, a infância angolana é reconhecida nos aromas do café brasileiro, “o Vístula na veia”, como disse o polono-brasileiro Leminski, desagua no mar de Copacabana e nos riachos do interior fluminense. Uma vida estendida, ou, talvez, dilacerada entre várias culturas, vários idiomas, vários continentes e posteriormente reunida se reflete na sua expressão poética. E por mais que a vida de imigrante para sempre conserve as suas saudades, os seus estranhamentos, o enriquecimento com múltiplas paisagens é o prêmio por eventuais desconfortos. A viagem pelo mundo, a viagem pela vida traz ao viajante a riqueza da palheta e a simplicidade da visão. Para quem já viu muito, é mais fácil apreciar o belo, por saber que ele é efêmero, mas essencial para prosseguir na viagem.
O caminho, por mais árduo que seja, enriquece. O olhar comporta em si múltiplas realidades, a sabedoria do sorriso, do aceno, reconhece em um outro o seu próximo, a percepção do belo ilumina até as situações mais negras. E também ao contrário – foram as múltiplas realidades que formaram o eu às vezes tão solitário em seu percurso, as atitudes inimigas do outro que provocam o retraimento, a vivência escura aparece nos momentos mais luminosos. Eis a poesia de Tomasz alegre e triste, universal e particular, de agora e de outrora. 80 poemas para celebrar mais um recomeço, mais uma fase de vida aos 80 anos.
[1] O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil
[2] Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura na UFSC, tradutor. O autor agradece a revisão a Luiz Henrique Budant.
[3] ŁYCHOWSKI, Tomasz. Recomeço. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.
[4] ŁYCHOWSKI, Tomasz. Meu caminho para a Lua: como sobrevivi à II Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2010.
[5] Refiro-me aqui ao artigo de Marta Szpacenkopf publicado no diário Globo em 10 de dezembro de 2015 que pode ser lido aqui http://oglobo.globo.com/rio/bairros/poloneses-falam-da-trajetoria-que-os-transformou-em-cariocas-18256628