“O buraco” – Sérgio Medeiros
O BURACO*
Sérgio Medeiros
Balé
PERSONAGEM ÚNICA: MULHER MAGRA; característica marcante: pele muito seca e enrugada.
CENÁRIO: COR CINZENTA. Alguns pontos de BRILHO (prata), aqui e ali… Musgos sob camada de verniz. Uma LONGA FAIXA (estirada no chão molhado): aparência geral de churrasco frio. AO LADO DELA, TAMBÈM NO CHÃO, UMA MULHER DEITADA NUMA POSIÇÃO RÍGIDA (vagamente lembra um MENINO JESUS ainda bebê) – pernas e braços erguidos. No seu corpo de enrola discretamente um pedaço de trepadeira verde.
Olhando melhor, a mulher parece um mero tronco desprendido de uma árvore apodrecida. Ou, para ser mais preciso: a mulher parece um corpo que (há séculos) foi lançado num buraco e que, desde então, ficou preso numa árvore, a qual, agora, apodreceu e veio abaixo.
Aos poucos, com extraordinária lentidão, a mulher MOVERÁ os membros enrijecidos. A seguir ela se arrastará ao longo da faixa, ora “descendo”, ora “subindo”; e, à medida que for adquirindo vivacidade, também exibirá uma consistência mais quebradiça.
A mulher murmurará COISAS para si mesma, sem pronunciar jamais palavras audíveis; o ECO (uma voz masculina), porém, responderá imediatamente, ampliando o alcance do monólogo de modo assustador.
Percebe-se que a cena se passa no interior de um buraco profundo, criado por um fragmento de astro que caiu ali há pelo menos 18.000 anos (época em que a América começou a ser povoada).
O público ficará à esquerda e à direita da mulher “mumificada”, em nichos escavados na parede escura e úmida.
***
ECO:
Se me mexo?
(PAUSA)
ECO:
Olhar para cima? Cai-me o fundo. Olhar para baixo? Cai-me o teto. Não sei mais como…
(PAUSA)
ECO:
Me vou às vezes de costas, descendo, as sandálias na mão, me ouço acompanhada: um ruído contínuo ao meu lado – sempre à beira do…
(PAUSA)
ECO:
Mais frio, mais úmido, mais…
(PAUSA)
ECO:
Enfrento às vezes as rochas ingratas puxando o que lançarei no buraco…
(PAUSA)
ECO:
Sobem agora farelos do corpo celeste que afundou aqui; e que se perdeu, minha vista não o alcança mais – sobem esses farelos, que alimentam as aves.
(PAUSA)
ECO:
Vejo daqui uma alma, a cabeça é um olho enorme e sujo que me olha sem piscar – e se enfia num beco.
(PAUSA)
ECO:
Prossigo, es… correndo; coça-me a nuca; a minha sombra, lenta, cruza os braços. Mais velha do que eu.
(PAUSA)
ECO:
Um imenso botão na moita úmida, lá em cima; o amarelo me cega: é uma boca que fala as rugas que a circundam, rugas acesas como raios de sol.
(PAUSA)
ECO:
Os meus dedos estão longe, na praia só deles, e brincam sem pés nem mãos, emergindo da areia mole.
(PAUSA)
ECO:
A pequena multidão de dedos incertos se aproxima multiplicando-se na umidade.
(PAUSA)
ECO:
Se me arrasto de costas na pedra, escorrendo entre os meus dedos – puxo a perna, ossos desencontrados: a praia já vazia – o ar me mumifica, e um dia…
(PAUSA)
ECO:
Um corpo achatado como um paletó despido, à beira do…
(PAUSA)
ECO:
Uma ponte de ossos une dois membros separados pelo líquido choco, calmo.
(PAUSA)
ECO:
Os poros da pele são conchas, as manchas na pele, conchas ainda maiores.
(PAUSA)
ECO:
A alma zumbe quase colada à pele, belisca o ar como um treino.
(PAUSA)
ECO:
Uns dedos altos se recreiam jogando e aparando as unhas.
(PAUSA)
ECO:
Asas que se batem, outras que cortam o ar: cruzam-se como pedaços soltos, restos da carniça que os olhos percebem abaixo, acima, ao meu lado.
(PAUSA)
[Pela primeira vez, desde que iniciou a ação, a mulher – ex-“mumificada” – se estira completamente ao lado da FAIXA.]
ECO:
Uma família se retira: a filha na frente, no meio o pai, quase cai, atrás o filho, todos à beira do… – cruzam-se com várias costas dobradas, pequenas, os pés imersos no vapor escuro.
(PAUSA)
ECO:
A vapor elástico se adensa, vindo e indo.
(PAUSA)
ECO:
Aves correm para a água – voam sobre o buraco, suas asas são rastros de braçadas fortes e certeiras nas ondas.
(PAUSA)
ECO:
Emaranhado de linhas úmidas gruda na pedra – as linhas secam, a pedra amolece: um sol fraco, a sombra passa e atropela o buraco.
(PAUSA)
ECO:
Um plástico amarrotado se enterra como um osso transparente, um órgão interno – o vento úmido cobre-o com água, sem enchê-lo: um plástico vago e duro, no aguardo de um brilho.
(PAUSA)
ECO:
O buraco vacila, antes frio, agora morno – puxa-se, recolhe-se como uma barriga sem pele, só água, vapor, umidade, circunda-se de bigodes ondulados que se renovam – a maquilagem sempre fresca.
(PAUSA)
ECO:
Uma ave magra esticada no ar entorta – como se o pé lhe faltasse: voo descendo degraus imprevistos.
(PAUSA)
ECO:
Os galhos em pé não se agitam, se afastam na orla fina do buraco: fios soltos.
(PAUSA)
ECO:
O vapor enrugado se expõe – enquanto duas almas fechadas se vão, encolhidas – algo brilha nas pedras afastadas: aglomerado de faíscas desmontadas.
(PAUSA)
ECO:
Areia de caixote, umidade de aguaceiro; nenhum vegetal: — o sereno toca o chão ao redor da quietude
(PAUSA)
[A partir daqui, várias vozes gravadas – ou a própria voz gravada da mulher deitada falando de diferentes lugares – se ouvirão no “buraco”, como se os diferentes órgãos e as diferentes partes do corpo da bailarina começassem agora a se manifestar com absoluta independência: ou seja, a “múmia, ao reanimar-se, se esfarela de vez como o astro se esfarelou 18.000 anos atrás. Essas vozes múltiplas dialogarão com o GRANDE ECO.]
VOZ 1:
Um bicho duro retém sua carga: nada no vento…
ECO:
Bicho duro: nada ele puxa…
(PAUSA)
VOZ 2:
Uma sombra curva entorta…
ECO:
…torta…
(PAUSA)
VOZ 3:
Balança como canoa: um órgão cheio de alimentos – barco pesqueiro no buraco antas da chuva fria; restos se alçam na orla.
ECO:
Hum… ah… hum… órgão… ah… pés… ah… bu… tormenta… or… úmido… super…
(PAUSA)
VOZ 4:
O buraco é raso: só um olho cheio.
ECO:
…ura… eee… do… como …que… olho… chei…
(PAUSA)
VOZ 5:
Um sapato grande e furado se contorce: é nuvem crescendo num arbusto – foge o vento.
ECO:
Um osso verde é um rastro na areia fofa.
(PAUSA)
VOZ 6:
Linhas longas – ou dois rastros lado a lado: órgãos puxados, buscando o fundo, fugindo dele e circundando-o.
ECO:
Uma pedra sentada: um joelho ensolarado, úmido.
(PAUSA)
VOZ 7:
O pé não afunda – sorve o úmido que some, resta um arco ao redor de um dedo.
ECO:
O pé úmido afunda como numa onda de suor.
(PAUSA)
VOZ 8:
Os dedos do pé largam o osso translúcido perto de um saco preto – buraco rodeado de pés que esperneiam e pisam o ar.
ECO:
Um copo de plástico como um órgão ou uma tripa seca aguarda vazio no chão o chute dos dedos com unhas calçadas de luvas de areia.
(PAUSA)
VOZ 9:
Como um pino expelido de um osso partido o avião passa vagaroso dentro da luz – abre-se a cauda como um braço eriçado de pelos claros, mas se fecha no escuro.
ECO:
A canoa encosta o queixo na borda do saco preto – madeira escura, raiz de dente sem dente; pacífica. A gengiva é fofa.
(PAUSA)
VOZ 10:
N-no canto do olho…
ECO:
…fumo, queimadura na…
VOZ 11:
…lín… gua!
VOZ 12:
…riso amarelo…
ECO:
…elo…
VOZ 13:
…sim…
ECO:
…não…
VOZ 14:
O chifre queimado se derrete rapidamente.
ECO:
Ossos de pernas em pé na saliva – que é sugada, resta a língua de areia: manchada, vazia.
(PAUSA)
[A partir daqui, as várias vozes e o ECO soarão quase simultaneamente, criando uma confusão crescente que redundará num RUÍDO “inumano”.]
VOZ 15:
O fim de tarde de uma alma com fome.
VOZ 16:
É o início de uma caminhada sobre a gosma móvel e parada, imóvel e desatada.
ECO:
É o início do voo paralisado ou paradisíaco.
VOZ 17:
É o início do debate – a mão seca enxota várias vezes um vegetal aberto.
VOZ 18:
Uma pedra atirada onde se tropeça.
ECO:
É a areia enrugada e marcada de furos, de picadas.
VOZ 19:
É uma coceira.
VOZ 20:
É a umidade que desenha costelas secas, descarnadas, à beira do…
VOZ 21:
Um buraco nas nuvens: os pelos do sol pousam como pelos de gato numa ilha de óleo.
ECO:
Suga-se a boca ou um olho ou um ouvido.
VOZ 22:
Nenhum pé Nenhum peso Nenhum pé Nenhum
ECO:
Nada!
CORO (ensurdecedor e fugaz: as vozes e o eco em uníssono):
Pppppppppppppppppppppppppppppppppppppp!
*Extraído do livro Alongamento (Ateliê, 2004), de Sérgio Medeiros.