Contra os poetas – Witold Gombrowicz – Trad. Marcelo Paiva de Souza

Contra os poetas *

Witold Gombrowicz

Trad. Marcelo Paiva de Souza**

Witold Gombrowicz

Witold Gombrowicz

Seria mais sutil de minha parte não atacar uma das poucas devoções que ainda nos restaram. Embora tenhamos duvidado de quase tudo, celebramos ainda o culto da Poesia e dos Poetas e talvez seja essa a única divindade que não temos vergonha de adorar com toda a pompa, com profundas reverências, a voz altissonante… Ah, ah, Shelley! Ah, ah, Słowacki! Ah, a palavra do Poeta, a missão do Poeta e a alma do Poeta! E no entanto é preciso que eu me atire contra essa ladainha e desmoralize, na medida das minhas possibilidades, esse ritual, em nome… em nome simplesmente da irritação elementar que nos causa todo erro de estilo, toda tapeação, toda fuga da realidade. E porque vou à guerra contra uma esfera especialmente enfunada, preciso me cuidar para que não saia voando como um balão e não perca o chão firme debaixo dos pés.

A tese deste ensaio: que quase ninguém gosta de poemas e que o mundo da poesia versificada é um mundo de mentirinha, uma falsificação, parece, suponho, tão ousada quanto leviana. E no entanto estou aqui diante de vocês e declaro que eu não gosto de poemas, que eles me chateiam. Vão dizer talvez que eu sou um pobre ignorante? Mas afinal eu trabalho há um bom tempo com a arte e a linguagem dela não me é totalmente estranha. Também não vão poder usar contra mim o argumento preferido de vocês, afirmando que eu não tenho sensibilidade poética, porque tenho e bastante – e quando a poesia me surge, não nos poemas, mas de mistura com outros elementos mais prosaicos, por exemplo nos dramas de Shakespeare, na prosa de Dostoiévski e de Pascal, ou mesmo num ordinário pôr-do-sol, eu me arrepio feito os outros mortais. Por que então me chateia e cansa esse extrato farmacêutico chamado “poesia pura”, sobretudo quando aparece em sua forma versificada? Por que não posso agüentar essa cantilena monótona, o tempo todo sublime, por que me dão sono o ritmo e a rima, por que a linguagem dos poetas me parece a menos interessante de todas as linguagens possíveis, por que essa Beleza é para mim tão pouco sedutora e por que não conheço, em termos de estilo, nada de pior, nada de mais ridículo que o jeito que os poetas falam de si mesmos e de sua Poesia?

Mas eu estaria até inclinado a reconhecer uma especial deformidade minha a esse respeito… se não fossem certas experiências… certas experiências científicas… Maldito – na arte – Francis Bacon! Aconselho vocês a nunca tentarem fazer experiências no terreno da arte, porque esse domínio não as suporta – e todos os recitais a propósito dela só podem se salvar sob a condição de que ninguém seja tão indiscreto a ponto de espiar se eles coincidem mesmo com a realidade. Descobriríamos poucas e boas, por exemplo, se começássemos a investigar o quanto aquela pessoa que se encanta com Bach é capaz de fato de se encantar com ele, quer dizer, o quanto ela é capaz de apreender de música em geral e de Bach. Pois não tive a chance (muito embora eu não consiga tocar nem “o bife” ao piano) de dar, não sem êxito, dois concertos – concertos em que me pus a batucar no instrumento sem eira nem beira, após garantir-me o aplauso prévio de alguns iniciados na intriga e anunciar que eu tocaria música moderna? Que felicidade que todos esses que conferenciam sobre a arte à maneira sublime de Valéry não se abaixem para tais confrontações. Quem chega por esse lado à nossa missa estética descobre fácil que este reino de aparente maturidade é só o quintalzinho mais imaturo da humanidade, onde reinam o blefe, a mistificação, o esnobismo, a tapeação e a besteira. E vai ser uma boa ginástica para o nosso pensamento emperrado se às vezes imaginarmos o Paul Valéry em pessoa como um capelão da Imaturidade, um pároco descalço de cuecas.

Levei a cabo os seguintes experimentos: combinando frases soltas, ou fragmentos de frases de um poeta qualquer, construía um poema absurdo e depois o lia num círculo de admiradores sinceros como uma nova obra do bardo – para o êxtase geral de todos os presentes; ou começava a interrogá-los de modo detalhado acerca desse ou daquele poema e constatava que os “admiradores” sequer o tinham lido até o fim. Mas e então? Tamanho êxtase e nem mesmo ler até o fim? Tanta volúpia com a “precisão matemática” da palavra poética e não perceber a salsicharia radical dessa precisão? Tanta sabença, tanta declamação sobre esses temas, tanto deleite com as sutilezas, os matizes, e ao mesmo tempo cometer pecados tão graves, tão elementares? Naturalmente, após cada um desses experimentos, erguiam-se enormes protestos e ofensas, e os admiradores juravam por todos os santos que não é nada disso… que pelo contrário… mas toda essa água mole não furava a pedra dura da Experiência.

Achei-me então em face do seguinte dilema: milhares de pessoas escrevem poemas; centenas de milhares adoram essa poesia; gênios formidáveis se expressaram em versos; há tempos imemoriais o Poeta é venerado – e diante dessa montanha de glória, eu, com a minha suspeita de que a missa poética é celebrada em pleno vazio. Ooo, se eu não conseguisse me divertir com essa situação, decerto estaria muito assustado.

Apesar disso, entretanto, minhas experiências deram-me força imensa ao espírito e com ainda mais ousadia comecei a procurar uma resposta para esta pergunta importuna: por que eu não gosto de poesia pura? Por quê? Não será pelas mesmas razões por que não gosto de açúcar em estado puro? O açúcar serve para adoçar o café, não para comer a colheradas num prato, como cevada. Na poesia pura, versificada, o excesso cansa; o excesso de poesia, o excesso de palavras poéticas, o excesso de metáforas, o excesso de sublimação, o excesso, enfim, de condensação e de limpeza de todo elemento antipoético, o que faz os poemas parecerem um produto químico.

O canto é uma forma de expressão muito solene… Só que, ao longo dos séculos, multiplicam-se os cantores – cantando, eles são obrigados a assumir a postura do cantor – e essa postura com o correr do tempo se torna cada vez mais rígida. E um cantor incentiva o outro, um apóia o outro num esquecimento cada vez mais intransigente no canto, ha, eles já não cantam para a multidão, um canta para o outro; e entre eles, no caminho de uma incessante rivalidade, de um contínuo aperfeiçoamento no canto, cria-se uma pirâmide cujo topo alcança os céus e que admiramos daqui de baixo, da terra, empinando o nariz. E o que tinha de ser um vôo momentâneo da prosa virou programa, sistema, profissão – e hoje se é Poeta, assim como se é engenheiro ou médico. O poema ganhou medidas monstruosas e já não somos nós que o controlamos, mas ele a nós. Os Poetas tornaram-se escravos – e poderíamos definir o poeta como o ser que já não pode expressar a si mesmo, porque precisa expressar o Poema.

E contudo talvez não possa haver na arte uma tarefa mais importante do que esta: expressar a si mesmo. Não deveríamos nunca perder de vista a verdade de que todo estilo, toda postura definida se forma por eliminação e no fundo é um empobrecimento. Não deveríamos por isso nunca permitir que uma postura qualquer reduzisse demais as nossas possibilidades, tornando-se uma mordaça na boca – e quando se trata de uma postura tão artificial, quase pretensiosa mesmo, como a do “cantor”, seria preciso estar ainda mais alerta. Porém nós, até aqui, com respeito à arte, dedicamos muito mais tempo e esforço ao aperfeiçoamento nesse ou naquele estilo, nessa ou naquela postura, do que à conservação, em relação a eles, da liberdade e da soberania interior para elaborar uma relação adequada entre nós e nossa postura. Poderia parecer que a Forma é para nós um valor em si mesma, independentemente de quanto nos enriquece ou empobrece. Como fanáticos aperfeiçoamos a arte, mas não nos preocupamos muito com perguntar em que grau ela conservou ainda alguma ligação conosco. Cultivamos a Poesia, desatentos de que o belo não necessariamente precisa ter a “nossa cara”. Se então queremos que a cultura não perca toda a ligação com o indivíduo humano, devemos interromper às vezes nossa esforçada criatividade e verificar se o que produzimos nos exprime.

Existem dois tipos contraditórios de humanismo: um, que poderíamos chamar de religioso, tenta jogar o homem de joelhos frente à obra da cultura humana, obriga-nos a adorar e respeitar, por exemplo, a Música, ou a Poesia, ou o Estado, ou a Divindade; o outro, porém, corrente mais indócil de nosso espírito, se esforça ao contrário para devolver ao homem sua soberania e independência em relação a esses Deuses e Musas que, afinal, são obra dele, do homem. Nesse último caso a palavra “arte” se escreve com minúscula. E é indubitável que o estilo capaz de abranger ambas essas tendências é mais pleno, mais autêntico e reflete com maior precisão a antinomia de nossa natureza, do que o estilo extremado e cego que exprime apenas um daqueles dois pólos de nosso sentimento. Mas, de todos os artistas, talvez sejam os poetas a cair com mais insistência de joelhos – eles rezam mais – são sacerdotes par excellence e ex professio, e  a  Poesia,  nesse  sentido, torna-se apenas celebração. Justamente essa exclusividade faz com que o estilo e a postura dos poetas sejam de uma insuficiência tão drástica, sejam tão repletos de nada.

Falemos ainda um momento sobre estilo. Dissemos que o artista deve expressar a si mesmo. Porém, expressando a si mesmo, ele deve cuidar também para que seu modo de falar esteja de acordo com a sua situação real no mundo, ele deveria comunicar não só a sua própria relação com o mundo, mas a relação do mundo com ele. Se sou covarde, e assumo um tom heróico, cometo um erro de estilo. Mas se me expresso como se fosse respeitado e amado por todos, quando na realidade não me prezam nem gostam de mim, também cometo um erro de estilo. Se no entanto queremos nos dar conta de nossa situação real no mundo, não podemos evitar o confronto com outras realidades, diversas da nossa. O ser humano que se formou apenas em contato com pessoas semelhantes a si mesmo, que é produto exclusivamente de seu próprio meio, terá um estilo mais limitado, pior do que aquele outro que se beneficiou da experiência de diversos meios e pessoas. E eis que nos poetas incomoda não só essa beatice deles, sem nenhum tipo de compensação, essa entrega absoluta à Poesia, mas ainda sua política de avestruz em relação à realidade: pois eles se protegem da realidade, não querem vê-la, nem reconhecê-la, obrigam-se de bom grado a um estado de atordoamento que não é força, mas sim fraqueza.

Mas os poetas não criam para os poetas? Eles não procuram apenas adeptos, quer dizer, pessoas assim como eles mesmos? Esses poemas não são apenas o produto de um certo pequeno grupo? Eles não são herméticos? Evidentemente, eu não os acuso de serem “difíceis” – não exijo que escrevam “de modo compreensível para todos” nem que se acoitem sob a palha das choupanas. Isso equivaleria a reivindicar que de boa vontade abrissem mão dos valores mais importantes, como a consciência, o entendimento, uma sensibilidade maior e um saber mais profundo sobre a vida e o mundo, para se rebaixar ao nível médio – ooo, não, nunca concordará com isso nenhuma arte que se respeita! Quem é inteligente, sutil, sublime e profundo deve falar de modo inteligente e sutil e profundo, e quem é refinado deve falar de modo refinado – pois a superioridade existe e ela não existe para se rebaixar. Não é portanto ruim que os poemas contemporâneos não sejam acessíveis a qualquer um, mas é ruim que eles nasçam do convívio unilateral e estreito de mundos idênticos, de pessoas idênticas. Entretanto eu mesmo sou um autor que defende com obstinação seu próprio nível – mas ao mesmo tempo (menciono isso para que não seja acusado de praticar o gênero que combato), minhas obras nem por um instante se esquecem de que além do meu mundinho existem ainda outros mundos. E se não escrevo para o povo, escrevo contudo como alguém ameaçado por ele, ou então dependente do povo, ou criado por ele. Nunca tampouco me veio à cabeça assumir a pose do “artista”, do “escritor”, do criador maduro, reconhecido, atuo pelo contrário exatamente no papel de candidato a artista, sou aquele que apenas deseja ser maduro –  num conflito incessante e pertinaz com tudo que freia meu desenvolvimento. E a minha arte ganhou forma não em contato com um grupo de pessoas aparentadas a mim, mas justamente em referência ao inimigo e no contato com ele.

Os poetas no entanto? Será o poema capaz de resistir, se cai nas mãos não de um amigo-do-poeta, mas de um inimigo, de um não-poeta? Como qualquer outro enunciado, o poema deveria ser concebido e realizado de modo que não trouxesse desonra a seu criador nem mesmo quando não tivesse de agradar a ninguém. Mais ainda, é preciso que os poemas não desonrem seu criador também naquele caso em que a ele mesmo – o criador – eles não agradam. Pois nenhum poeta é exclusivamente poeta e em cada poeta vive um não-poeta, que não canta e não gosta do canto… e o homem é coisa mais vasta que o poeta. Mas o estilo nascido entre os adeptos de uma mesma religião morre em contato com a turba dos infiéis; é incapaz de se defender, e de lutar; é incapaz de uma vida verdadeira; é um estilo limitado.

Permitam que eu mostre a vocês a cena seguinte… Vamos imaginar que num grupo de algumas dezenas de pessoas uma delas se levanta e começa a cantar. O canto chateia a maioria dos ouvintes, mas o cantor não quer se dar conta disso, não, ele se comporta como se entusiasmasse, exige que todos caiam de joelhos diante do Belo, requer um reconhecimento absoluto para seu papel de Bardo; e muito embora ninguém dê maior importância ao seu canto, ele faz uma cara como se cada palavra sua tivesse um significado decisivo para o mundo, cheio de fé na sua Missão Poética, troa, ribomba, troveja, ensandece no vazio; e, ainda mais, não quer admitir diante das pessoas, nem diante de si próprio, que até a ele mesmo o canto chateia, cansa, atormenta – pois, enfim, ele não se expressa livremente, nem naturalmente, nem diretamente, mas sim numa forma herdada de outros poetas, que já perdeu há muito tempo o contato com o sentimento humano imediato; e eis que ele não apenas apregoa a Poesia, mas se encanta com ela, sendo Poeta, adora a grandeza e a importância do Poeta, não só exige que os outros caiam diante dele de joelhos, mas ele próprio se ajoelha diante de si mesmo. Não é possível dizer de tal homem que ergueu um peso demasiado grande em seus ombros? Porque ele não só acredita no poder da poesia, mas impõe a si mesmo essa fé, ele não só se oferece aos outros, mas obriga-os a consumir, feito uma hóstia, essa dádiva divina. Num estado de espírito tão hermético, onde pode surgir alguma brecha, pela qual irromperia a vida de lá de fora? E não falo aqui de um cantorzinho de terceira qualquer, não, trata-se também dos mais célebres, dos melhores poetas.

Se o poeta soubesse tratar seu canto como uma mania, ou como um rito, se eles cantassem como quem precisa cantar, embora saibam que cantam no vazio. Se em lugar desse orgulhoso “eu, Poeta” fossem capazes de pronunciar essas palavras com vergonha, ou com medo… ou até com repugnância… Mas não! O Poeta precisa adorar o Poeta!

Assim, essa impotência em face da realidade caracteriza de modo esmagador o estilo e a postura dos poetas. Entretanto o homem que foge da realidade não encontra mais apoio em nada… ele se torna um joguete dos elementos. No instante em que os poetas perderam de vista o ser humano concreto, e fixaram os olhos na abstração da Poesia, nada mais já podia retê-los no plano inclinado que leva ao abismo do absurdo. Tudo começou a crescer por si mesmo. A metáfora, liberta de todo freio, mostrou as presas, enfureceu a tal ponto que hoje não há mais nada nos poemas, senão metáforas. A linguagem tornou-se ritual – essas “rosas”, esses “crepúsculos”, “saudades” e “dores”, que outrora tinham algum viço, tornaram-se em razão do absurdo puro som – e isto se refere também a esses “semáforos” mais modernos e outras “espirais”. O estreitamento da linguagem é acompanhado por um estreitamento do estilo, e em conseqüência disso os poemas hoje não passam de uma dúzia de “experiências” sacralizadas transmitidas nas combinações impertinentes de um dicionário mesquinho. Na medida em que o Estreitamento ficou cada vez mais Estreito, o Belo desenfreado ficou cada vez mais Belo, a Profundidade cada vez mais Profunda, a Nobreza cada vez mais Nobre, a Pureza cada vez mais Pura. Quando por um lado o verso desprovido de freio se expandiu até os limites de um gigantesco poema (semelhante a essas florestas conhecidas de fato apenas por alguns exploradores), começou de outro a reduzir-se a medidas demasiado sintéticas e homeopáticas. Passou também a dedicar-se a invencionices e experimentos com uma careta de pavorosa iniciação – e essa orgia tediosa, repito, ninguém é capaz de fazer parar. Pois não se trata aqui de uma criatividade do homem para o homem, somente de um rito executado defronte de um altar. E entre dez poemas, pelo menos um será consagrado à adoração da Potência da Palavra Poética ou à glorificação da vocação do Poeta.

Essas indisposições doentias, convenhamos, não são exclusivas dos poetas. Na prosa também essa postura religiosa acarretou uma grande devastação e se consideramos obras como por exemplo A Morte de Virgílio de Broch, ou Ulisses, ou alguns livros de Kafka, temos aquela mesma impressão – que a “eminência”, a “grandeza” dessas obras se realiza no vazio, que elas pertencem àqueles livros sobre os quais todo mundo sabe que são grandes… e que no entanto de algum modo nos são distantes, inacessíveis e frios… porque eles foram escritos de joelhos tendo em mente não o leitor mas a Arte, ou uma outra abstração qualquer. Essa prosa se originou daquele mesmo espírito que ilumina os poetas, ela é sem dúvida por sua própria natureza “prosa poética”.

Se deixamos de lado as obras e nos ocupamos das pessoas dos poetas e do mundinho que essas pessoas criam junto com seus adeptos e acólitos, fica tudo ainda mais estreito e abafado. Os poetas não só escrevem para os poetas, mas também glorificam-se mutuamente e mutuamente se prestam homenagem. Esse mundo, ou antes esse mundinho, muito pouco se diferencia de outros mundinhos herméticos e especializados: os jogadores de xadrez consideram o xadrez o ápice da criatividade humana, possuem suas próprias hierarquias, falam de Capablanca com a mesma devoção que os poetas de Mallarmé, e um confirma o outro no sentimento de sua própria importância. Mas os jogadores de xadrez não têm a pretensão a um papel tão universal, e o que se pode até lhes perdoar, nos poetas se torna imperdoável. Em conseqüência desse isolamento tudo incha e mesmo poetas medíocres inflam-se de modo apocalíptico, e probleminhas fúteis ganham uma importância estonteante. Lembremos apenas as terríveis polêmicas a respeito das assonâncias, o tom em que se discutiu esse assunto – parecia então que os destinos da humanidade dependiam da possibilidade de rima entre “esqueça” e “cabeça”. Eis o que acontece, quando o espírito coletivo prevalece sobre o espírito universal.

Outro fato, não menos comprometedor, é o número de poetas. Aos excessos mencionados acima junta-se ainda o excesso de bardos. Essas cifras ultra-democráticas implodem de dentro a aristocrática e soberba torre poética – e de fato é bastante engraçado vê-los todos juntos nalgum congresso: que multidão de seres excepcionais! Mas a arte que se celebra no vazio não é o terreno ideal para aqueles mesmos que não são nada, cuja personalidade vazia se alimenta com êxtase nessas formas raquíticas? Porém na verdade ridículas são essas críticas, esses artiguinhos, aforismos, ensaios que aparecem na imprensa a respeito de poesia. Isto é que é chover no molhado – mas ao mesmo tempo é um chuvisco bombástico e já tão ingênuo, tão infantil, que é quase impossível acreditar que os amanuenses da escrita não tenham sentido todo o ridículo dessa crítica. Até hoje esses estilistas não entenderam que não se pode falar de poesia num tom poético e seus jornaizinhos rebentam de tais elucubrações poéticas. Grande também é o ridículo que acompanha os recitais, concursos e manifestos, no entanto talvez já não valha a pena alongar-se sobre isso.

Julgo ter explicado mais ou menos porque a poesia versificada não me atrai. E por que os poetas – que se entregaram inteiramente à Poesia – e sujeitaram por completo a essa Instituição suas próprias vidas, esquecendo da existência do ser humano concreto e fechando os olhos à realidade – encontraram-se (há séculos) numa situação catastrófica. Apesar das aparências de triunfo. Apesar de toda a pompa do cerimonial.

Porém devo ainda refutar certa acusação.

Somente uma cegueira voluntária pode explicar o inaudito simplismo com que se protegem os poetas (pessoas em geral não imbecis, mas ingênuas) quando se aborda a sua arte. Muitos deles procuram socorro na declaração de que escrevem poemas para seu próprio prazer – como se todo o seu comportamento não desmentisse essa afirmação. Há outros que sustentam com gravidade que escrevem para o povo e que suas requintadas charadas são o alimento espiritual dos simples. Todos porém acreditam inflexivelmente na ressonância social da poesia e será difícil para eles entender de que modo é possível atacá-los por esse flanco. Vão dizer: – Mas como! O senhor duvida? O senhor não vê as multidões que tomam parte em nossos recitais? O número de edições que alcançam nossos livrinhos? Os estudos, os artigos, as teses que foram escritas sobre nós? A admiração de que são cercados os poetas célebres? Mas é o senhor mesmo que não quer ver o que é…

Que lhes responderei? Que tudo isso é – ilusão. É verdade que há multidões nos recitais, mas também é verdade que nem mesmo um ouvinte muito cultivado é capaz de entender o poema declamado num recital. Quantas vezes não tive oportunidade de assistir a essas sessões insuportáveis, na quais se recitava um poema atrás do outro – e cada um deles precisaria ser lido no mínimo três vezes com a maior atenção possível para que se decifrasse em linhas gerais o seu conteúdo. No que diz respeito às edições, sabemos que milhares de livros são comprados para jamais serem lidos. Sobre poesia escrevem, como já dissemos, poetas. E a admiração? Os cavalos de corrida não despertam um interesse ainda maior – mas o que essa predisposição esportiva com que assistimos a qualquer rivalidade, e todas essas ambições – nacionais e outras – que acompanham as corridas têm a ver com a verdadeira comoção artística?

Entretanto essa resposta, embora certa, não seria suficiente. O problema do nosso convívio com a arte é muito mais profundo e complicado. E é indubitável pelo menos em meu entendimento – que se queremos compreender alguma coisa disso tudo, precisamos romper inteiramente com a idéia demasiado fácil de que “a arte nos encanta” e de que “nos deleitamos com a arte”. Não, a arte só nos encanta até certo ponto, e as delícias que nos proporciona são bem duvidosas… E pode ser diferente, se o convívio com a grande arte é um convívio difícil e cansativo com pessoas adultas, de alcance mais amplo e sensibilidade mais poderosa? Não nos deleitamos – apenas tentamos nos deleitar… não compreendemos… tentamos compreender…

Como é superficial a idéia, segundo a qual esse complexo fenômeno se reduz à simples fórmula: a arte nos encanta porque é bela. – Ah, há tantos esnobes, mas eu não sou esnobe, eu reconheço sinceramente se alguma coisa não me agrada – diz essa singeleza d’alma e lhe parece que tudo já está resolvido.

E no entanto nitidamente fazem-se notar aqui fatores que não têm relação nenhuma com a estética. Vocês pensam que se não nos obrigassem na escola a nos encantarmos com a arte, teríamos para ela, na idade adulta, tanto êxtase de prontidão? Supõem que se toda a nossa organização cultural não nos impusesse a arte – nos interessaríamos assim por ela? Não se alimenta nessa admiração nossa necessidade de mito, de adoração, e adorando os grandes não ficamos nós mesmos um pouco maiores? Mas sobretudo, esse sentimento de admiração, de encanto, nasce “de nós”, ou “entre nós”? Se num concerto eclode uma estrondosa salva de palmas isto de modo nenhum quer dizer que cada uma das pessoas a aplaudir estava encantada. Um aplauso tímido provoca outro – excitam-se mutuamente – e cria-se ao fim uma situação em que cada um precisa se conformar interiormente com o delírio coletivo. Todos “se comportam” como se estivessem encantados, embora “na verdade”, pelo menos àquele ponto, ninguém esteja encantado.

Seria então um erro, uma ingenuidade digna de lástima, se exigíssemos do poema, ou de qualquer outra forma de arte, que fosse assim, simplesmente, uma fonte do deleite humano. E se encaramos desse ponto de vista o mundo dos poetas e seus adoradores, então todos os seus absurdos e ridículos vão parecer justificados: porque supostamente tem de ser assim e está de acordo com a ordem natural das coisas que a arte, bem como o encanto que ela desperta, sejam antes a obra de um espírito coletivo do que a reação imediata de um indivíduo.

E no entanto – não. E no entanto também essa abordagem não consegue salvar os poetas, nem trazer um corado de vida e realidade à sua poesia. Pois se é essa mesma a realidade, então em todo caso eles não se dão conta dela. Para eles tudo não passa de: o cantor canta, e o ouvinte, encantado, ouve. Óbvio que se fossem capazes de reconhecer essas verdades e de extrair delas todas as conseqüências, mudaria radicalmente a sua própria relação com o canto. Porém fiquem tranqüilos: nada nunca mudará nos poetas. E não tenham a ilusão de que em face dessas forças coletivas que falsificam nossa percepção individual, eles vão mostrar um dia alguma vontade de resistência – para que ao menos a arte não fosse mentira e cerimonial, mas sim um encontro verdadeiro do homem com o homem. Não, esses monges preferem se ajoelhar.

Monges? Isso não quer dizer que eu seja adversário do Senhor Deus, ou de suas numerosas congregações. Mas até a religião morre no instante em que se transforma em rito. Com displicência demais sacrificamos nesses altares a autenticidade e o peso de nossa existência.

 

* Tradução publicada originalmente na revista Poesia Sempre – Polônia, nº 30, Ano 15, 2008, p. 21-29. O texto é reproduzido aqui com a gentil permissão da Fundação Biblioteca Nacional. A versão para o português teve por base: GOMBROWICZ, Witold. “Przeciw poetom”. In: ___.  Dzieła(tom VII) – Dziennik: 1953-1956, wydanie drugie; redakcja naukowa tekstu Jan Błoński. Kraków: Wydawnictwo Literackie, 1988, p. 339-351.

 

** Professor do Departamento de Polonês Alemão e Letras Clássicas e do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal do Paraná  e tradutor