As relações de Clarice Lispector com o mundo anglo-saxão – Javier Martín Párraga/ Tradução de Rosangela Fernandes Eleutério

As relações de Clarice Lispector com o mundo anglo-saxão

Javier Martín Párraga/ Universidade de Córdoba[1]

Tradução de Rosangela Fernandes Eleutério/Universidade Federal de Santa Catarina[2]

 

Clarice Lispector

Resumo

O presente trabalho analisa as relações que a autora brasileira de origem ucraniana Clarice Lispector mantém com a cultura anglo-norte-americana. Para alcançar nosso objetivo, começamos por estudar a correspondência que a autora envia desde a Inglaterra e Estados Unidos (países nos quais residiu ao longo de sua vida). Posteriormente, passamos a considerar seu papel como tradutora do inglês, assim como as diferentes traduções que surgiram de sua obra em língua inglesa. Consideramos que essa dupla aproximação nos permitirá descobrir até que ponto Lispector se viu influenciada pelos países anglófonos, ao mesmo tempo que começamos a rastrear as impressões que ela mesma produz nas letras em língua inglesa.

Palavras chaves: Clarice Lispector; Literatura epistolar; Pós-modernismo; Tradução.

 

ABSTRACT

This paper aims to analyze the relations that were established between the Ukrainianrooted Brasilian author Clarice Lispector and Anglo-American culture. In order to reach my goal, I will start by studying the different letters Lispector sent from England and the USA, English-speaking countries in which she lived during her life. Posteriorly, I will move on to consider her role as translator of English-language literature, as well as the different translations of Lispector’s corpus that have appeared so far in English. From my point of view, this dual approach will allow us to discover the way in which Lispector saw herself influenced by Anglophone culture, at the same time it serves as the foundations for later studies in which I will follow the trace her literature produces on English literature.

KEYWORDS: Clarice Lispector; Epistolary literature; Postmodernism; Translation.

 

  1. Clarice Lispector em terras anglo-norte-americanas

  

No presente trabalho nos propomos investigar os vínculos que a escritora brasileira Clarice Lispector manteve com a cultura anglo norte-americana durante sua vida, tanto a nível profissional como pessoal. Se começamos, como acreditamos ser pertinente, por analisar a biografia da autora, nós nos daremos conta que os laços que se observam entre Lispector e o mundo anglo-saxão são verdadeiramente profundos.

Em primeiro lugar convém assinalar que, como Antônio Maura (2006, p. 35) e Marta Peixoto (1994, p. 11) expõem, se Lispector não cresceu nem estudou nos Estados Unidos, mas sim no Brasil, não pode justificar-se senão pela mais prosaica das razões: os impedimentos burocráticos. Devido à instabilidade e perseguição à qual se via submetido o povo judeu na atual Ucrânia, país onde a autora nasceu e onde sua família residia no ano de 1922 e trás uma série de dificuldades e alguns azares., os Lispector se veem finalmente intimados a abandonar o velho mundo e dirigir-se ao continente americano, onde a autora tinha familiares tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. De fato, o destino no qual o pai de Clarice Lispector pretendia iniciar uma nova vida era na verdade o país norte-americano. Por essa razão, faltou pouco para que Clarice Lispector crescesse e se formasse nos Estados Unidos, mas como Laura Freixas acertadamente aponta, “a Emergency Quota Act aprovada em maio de 1921 reduzia em 75% o número de europeus do leste permitidos a entrar no país” (2010, p. 29).

Ainda que escape por completo do objeto de estudo que nos ocupa nesta ocasião, consideramos importante nos determos um instante nessa nova medida legislativa, pois ela determinará por completo as futuras raízes da autora. Em primeiro lugar devemos assinalar que a Emergency Quota Act teve andamento porque, como Peter Alexandre Meyers expõe, “when immigration tripled in 1919 and then doubled again in 1920, this was viewed as a peacetime emergency” (2008, p. 107). Por outro lado, não podemos esquecer que numerosos historiadores e politólogos apreciam motivações claramente políticas ou inclusive raciais por trás dessa restritiva política imigratória.  Neste sentido citaremos Deborah Bryceson, que explica que, por trás da Primeira Guerra Mundial “Ethnic groups that were known to have operative transnational family ties, notably Jews, were highly suspect. Even more liberal governments that did not espouse such views were enacting policies promoting isolationism rather than international migration” (2002, p. 37). Se submetemos a Emergency Quota Act a uma análise detalhada, não nos resta senão estar de acordo com Bryceson, já que esta permitia a entrada de cidadãos do norte da Europa com certa facilidade enquanto colocava obstáculos (em muitos casos insuperáveis) para imigrantes de origem russa, em sua maior parte judeus. Deste modo, não resulta disparatado afirmar que a nova lei pretendia que famílias como a de Clarice Lispector, de origem russa e limitado poder aquisitivo, não pudessem entrar e formar parte do tão publicitado American dream.

Apesar de que, como acabamos de mostrar, Lispector estivesse a poucas páginas legislativas de distância de ter sido norte-americana, a autora não colocaria os pés em algum país de língua inglesa até ter cumprido quase 30 anos de idade, quando já era esposa de diplomata, mãe e autora de um fecundo corpus literário. Nos referimos, obviamente, ao fim do ano 1950, quando Lispector acompanha a Maury Gurgel Valente, seu marido, a seu novo destino profissional na pequena cidade britânica de Torquay. É importante ressaltar que antes de dirigir seus passos a terras britânicas, a família já havia passado um breve período de tempo longe do Brasil, viajando pela Europa e residindo brevemente na cidade suíça de Berna, lugar onde a novelista se sentiu prisioneira da mais angustiosa saudade e infelicidade. Em suas próprias palavras “Berna es de un silencio terrible, la gente también es silenciosa y ríe poco (…) En Berna es siempre domingo” (FREIXAS, 2010, p. 100).

Assim, mesmo que não se duvide de que Clarice Lispector tivesse preferido regressar ao país carioca, podemos afirmar que abandonar a Suíça e ir para a Inglaterra supôs um motivo de alegria para a autora. Apesar de sua pulsão epistolar e do nutrido corpus de cartas de Lispector que conservamos, de seu périplo inglês, contamos com apenas quatro epístolas. Na primeira delas, datada de 23 de outubro de 1950, a cidade de Torquay se define nos seguintes termos:

“Aquí típicamente ciudad pequeña, huele a Berna. Si no fuera por poco tiempo, sería aburridísimo. Todo el mundo es más o menos feo, con sombreros horribles, modas horribles en los escaparates. En ciudad pequeña, hasta las películas son ordinarias, de far west y comedias, en líneas generales”. (FREIXAS, 2010, p. 139-40).

Embora essa mesma carta afirme que “me gusta Inglaterra. La falta de sol, ciertas playas con rocas oscuras, la falta de belleza, todo eso me emociona mucho más que la belleza de Suiza. Ya que hablamos de ésta, la detesto cada vez más. Espero no estar nunca más en ella” (FREIXAS, 2010, p. 140). É interessante que a autora, apesar de nunca deixar de ansiar pelas terras cariocas e localizar todos os seus relatos neste país, ressalta que os aspectos que mais lhe agradam da Inglaterra são aqueles precisamente que têm menos relação com sua pátria, como a falta de luz, as praias de rochas escuras ou a ausência de beleza. Nesse aspecto fica complicado discernir até que ponto Lispector estava incorrendo nas contradições e paradoxos aos que era propensa ou simplesmente se via incapaz de apreciar como belo qualquer elemento estrangeiro que pudesse existir previamente no Brasil. Em outras palavras, parece que a autora longe de querer imbricar-se em outra cultura nacional, se empenhara em manter os vínculos brasileiros a todo custo optando não só por não aceitar submeter-se a um processo de aculturação mas, tampouco se esforça por ver-se imersa em um processo de assimilação. Como ela mesma expressava em uma carta anterior ao seu período na Inglaterra,

“Las cosas son iguales en todas partes (…) Los cines del mundo entero se llaman Odeón, Capitolio, Imperio, Rex, Olimpia (…) Pasé varias noches soñando que tenía que hacer otra vez las maletas (…) No me ha gustado verdaderamente Italia, como no me podría gustar verdaderamente ningún lado, siento que hay entre mí y todo una cosa” (FREIXAS, 2010, p. 93).

Nesta ocasião aparecem em nossa memória as palavras do filósofo palestino Edward Said, que em seu seminal ensaio “Reflexiones sobre el exilio”, advertia que “El exilio es algo curiosamente cautivador sobre lo que pensar, pero terrible de experimentar. Es la grieta imposible de cicatrizar entre un ser humano y su lugar natal, entre el yo y su verdadero hogar: nunca se puede superar su esencial tristeza” (2005, p. 177).

A segunda carta enviada de Torquay denota inclusive uma maior melancolia, já que o ânimo de Clarice Lispector se vê seriamente afetado pela solidão que sente. Também sofria pela falta de um verdadeiro lar, os problemas econômicos e a busca por uma babá adequada, angústias que perseguiram a autora durante grande parte de sua vida adulta.

Embora diante da sensação de desapego que experimenta na pequena cidade de Torquay, na terceira carta Lispector se mostra empolgada por visitar a cidade de Londres, que qualifica nos seguintes termos,

“[Londres] no es como yo pensaba. Es menos “evidente”. Y si es una ciudad misteriosa, no tiene propiamente título de “misterio”. No es como París, que es inmediata y claramente París. Hay que ir entendiéndola poco a poco, reconociéndola. Y luego te empieza a gustar” (FREIXAS, 2010, p. 140).

Como vemos, se Clarice Lispector se vê invadida por uma certa claustrofobia enquanto desempenha seus afazeres diários na provinciana Torquay, não lhe acontece o mesmo ao visitar la city, que com sua efervescência cultural e a mistura de nacionalidades lhe atrai de maneira especial. Além disso, durante sua visita a Londres assiste a uma representação da obra teatral The Cocktail Party, de T.S., Eliot que, como reflete na terceira carta que envia das terras inglesas, a impressiona. Parece, portanto, que apesar do muito ofendida que Lispector se sentisse quando os críticos e a imprensa aludiam à possível influência do modernismo britânico ou norte-americano em sua literatura, a impressão marca dos grandes modernistas se mostra de fato notória. Neste sentido, não coincidimos com Laura Freixas quem, a respeito da influência que os modernistas puderam exercer na narrativa da autora afirma que, “es verosímil que no hubiera leído a Joyce. Woolf, Kafka y Sartre- o los leyera después-: se puede llegar a resultados parecidos sin influencia directa, y aparte de eso me parece que la afinidad de la escritora brasileña con dichos autores no es muy profunda” (2001, p. 43).

De nossa parte, ao estudar a correspondência e biografias da autora e estudar seu corpus narrativo, nos juntamos à opinião de Marta Peixoto que recorda que Lispector não só nega a influência de Joyce e Woolf (que existiu sim em maior ou menor medida), mas também a de Sartre, Hesse, ou inclusive Dostoievski. Também costumava mentir sobre sua idade, que seria por volta de cinco anos a mais dos confessados por ela (1994, p. 23).

No mesmo escrito no qual relata o espetáculo teatral de Joyce, Clarice não duvida em afirmar o seguinte: “Dios me libre de que no me guste Inglaterra, tengo que adorarla, aunque para eso tenga que separarla en dos: la Inglaterra de mis dificultades y la Inglaterra de los escritores que más adoro” (FREIXAS, 2010, p. 140).

A quarta e última carta que remete da cidade inglesa, apresenta a autora vivendo num entorno acolhedor e cômodo, além de uma Lispector que afirma, com certo orgulho, que seu pequeno filho Pedro “é muito feliz falando inglês”.

Como se deriva da correspondência que conservamos da autora na Inglaterra, traz experimentar um primeiro período de melancolia e desamparo, se vê que Lispector não é totalmente infeliz em terras britânicas, ainda que seu interesse pelo país se centre na cosmopolita Londres, em vez de abraçar o bucólico countryside que exaltaram os românticos britânicos e que inclusive os modernistas do país, como Joyce e Woolf, veem como mais puro e, portanto, melhor cenário para realização pessoal e artística do indivíduo.

Embora arriscado e não totalmente frutífero, suspeitamos que a autora pudesse ter encontrado na Inglaterra um lar definitivo. Não podemos negar que a medida que vai conhecendo melhor o país, sua língua e oportunidades culturais, Lispector vai abandonando a crueldade com a qual descrevera Berna, para encontrar diversos aspectos que a atraem e empolgam tanto seu espírito inquieto como seu efervescente intelecto. Certamente isto não é obstáculo para que a correspondência de Lispector neste período esteja cheia de lembranças de seu amado Brasil e de uma onipresente saudade que condiciona por completo sua aproximação com a Inglaterra.

Em 1952, de volta ao Brasil, Clarice Lispector entrega à editora: Alguns contos. Curiosamente, ainda que os relatos contidos em dito volume sejam publicados em terras brasileiras, críticos como Glenda Hudson apontam que neles é onde melhor se aprecia a profunda influência que uma escritora em língua inglesa tem na autora, a neozelandesa Katherine Mansfield. Mansfield é precisamente uma das poucas autoras que Clarice Lispector confessa ter lido com profusão desde sua infância no Brasil.

Depois de viver em Londres, o próximo destino em território anglo-saxão para o qual se dirige Clarice Lispector com seu esposo e filho se encontra na capital dos Estados Unidos. Neste caso, a experiência será tanto mais extensa no tempo quanto influente para o desenvolvimento pessoal e profissional da autora, considerando que em território norte-americano Lispector aprenderá dirigir, se relacionará com intelectuais brasileiros e escreverá de maneira profusa (principalmente a novela A maçã no escuro, que constitui uma das obras chave em seu corpus).

Em Washington chega em 2 de setembro de 1952 e sua primeira impressão da cidade do Capitólio fica refletida nas seguintes linhas, que citamos de uma carta enviada pela autora,

“Washington es una ciudad vaga e inorgánica. Es bonita, según varias leyes de belleza que no son las mías. No hay bullicio aquí, y yo no comprendo una ciudad en la que falta ese punto de confusión. Pero, en fin, la ciudad no es mía (…) Por lo demás, Pedrinho está en la escuela, aprendiendo inglés poco a poco, pega a los chicos del barrio, toma leche americana y adora el hot-dog. Maury trabaja bastante, yo hago compras en el mercado; de noche veo programas de misterio en la TV; todo tranquilo, como se ve” (FREIXAS, 2010, p. 147).

Ainda que uma vez mais Clarice Lispector evita ser entusiasta no que concerne à beleza de qualquer lugar do mundo alheio ao Brasil, que entende e sente como única pátria, estas primeiras descrições de Washington estão longe de serem tão negativas como as vertidas sobre Berna, ou a feiura, aborrecimento e vulgaridade com que a autora catalogava a pequena cidade de Torquay em sua carta enviada da mesma. De fato, Washington é o primeiro destino no qual Clarice Lispector começa a mostrar uma mínima disposição a submeter-se a uma certa assimilação cultural, como prova o fato de continuar estudando inglês apesar de já ter um nível que lhe permitia comunicar-se de maneira suficientemente competente e porque se alegra de que seu filho aprenda o idioma, além de entusiasmar-se pelo fast food americano ou que ela mesma admita ter ainda um certo interesse pela televisão estadunidense. Do nosso ponto de vista, este fato se deve a que, na capital dos Estados Unidos a autora se via imersa no centro da cultura pop ocidental que tanta atração exercia para os artistas e intelectuais do momento. Por outro lado, tampouco podemos esquecer que estava finalmente vivendo no que seu pai queria que fosse seu destino pelo que, ainda que de maneira indireta, os laços com os Estados Unidos deveriam lhe ser muito mais naturais (orgânicas inclusive) que aquelas que se apreciam na fria Suíça ou na minúscula cidade do sul da Inglaterra.

Outro motivo pelo qual a integração nos Estados Unidos resulta menos traumática do que foi nos destinos anteriores aconteceu em 1953 pouco antes de chegar a Washington, quando nasceu Paulo, o segundo filho da autora. Diante das terríveis dificuldades e complicações do parto anterior (com a consequente ansiedade e altíssimas despesas médicas), neste caso o parto acontece sem problemas e de uma maneira quase prazerosa, o que leva Clarice Lispector a exclamar sobre isso numa carta “juro por Dios que estoy tan bien que no sé ni cómo explicártelo” (LISPECTOR, 2010, p. p. 269).

Dessa forma Washington se torna um lugar não totalmente inadequado para a autora, que desfruta por um tempo de uma certa estabilidade emocional, ao mesmo tempo que amplia seu círculo social com diversos intelectuais cariocas que recorrem com frequência à sede diplomática (algo que não acontecia em Berna nem em Torquay e que fazia com que Lispector se sentisse completamente isolada da vida cultural e artística do seu país).

Também, pela primeira vez na sua vida, o sistema capitalista norte-americano e as facilidades para créditos que o casal encontra, ainda que não lhes permitam viver de maneira mais desafogada, pelo menos se encontram com as necessidades de sobrevivência mais tranquilas (leve em conta que em algumas de suas cartas Clarice afirma, não sem apreensão, não dispor de mais de 50 dólares na conta corrente). Relacionada com a questão anterior, o integrar-se na cultura e economia dos Estados Unidos do momento facilitaram para a autora aprender dirigir, algo que ainda era inacessível para a classe média no Brasil, especialmente para as mulheres. Em suas palavras “aprender a conducir ha sido de gran utilidad y muchas cosas se hacen porque sé conducir” (LISPECTOR, 2010, p. 302).

Embora, a pesar do que foi referido anteriormente, a vida em Washington como esposa de diplomático e dona de casa logo começa a se tornar exasperante para a autora, que em uma interessante reflexão sobre o American dreams y way of life expressa em uma carta “aquí todo de una calma que da miedo. Entrar en el American way of life es una tregua de ambición y de otras cosas, “way” ése en el que se cae suavemente sin sentir: basta comprar en los mercados (…) horrible, pero una tregua” (FREIXAS, 2010, p. 149).

Precisamente essa falta de identificação com a vida de dona de casa e esposa exemplar que a leva, na opinião de Laura Freixas a usar o pseudônimo Hellen Palmer nos diversos artigos em revistas brasileiras que, por iniciativa própria, escreve de Washington sobre seu périplo pelo EUA, já que “siente que su presencia en Estados Unidos, base y justificación de sus artículos, no tiene relación con su condición de escritora, sino con otra, la de esposa de diplomático” (2010, p. 153).

Apesar do crescente incômodo que lhe causam as frequentes festas que deve organizar e da dificuldade cada vez maior que a autora encontra para concentrar-se na escrita em um lar onde os filhos e as responsabilidades domésticas não lhe deixam tempo livre e a privam de um trabalho adequado, é na capital dos EUA onde a família adquire pela primeira vez uma moradia, na Ridge Street 421, no bairro de Chevy Chase. A compra desta casa deixa entender-se como um fato relevante por dois motivos: em primeiro lugar, denota que a situação econômica da família, até então instável no melhor dos casos havia melhorado de forma significativa. Em segundo lugar, ainda que Lispector nunca deixasse de lembrar o Brasil nem de desejar voltar ao seu país de origem, o fato de comprar uma moradia em Washington faz parecer que a escritora gozava nesta cidade de uma estabilidade sem precedentes até o momento que lhe permitia contemplar os Estados Unidos não só como um lugar de trânsito, mas sim como um espaço no qual localizar residência própria e, ao menos de momento, permanente.

Embora a vida diária de Clarice Lispector nos subúrbios de Washington tenha sido muito difícil de compaginar com sua tarefa de escritora. A respeito das dificuldades que encontra a novelista para escrever em casa, cabe destacar que nestes anos quando começa a situar a máquina de escrever em seu colo, rodeada de seus filhos e interrompendo a escrita, cada vez que esses exigiam sua atenção. Em palavras de Freixas “Escribía, atendía el teléfono, los niños gritaban, el perro entraba y salía… La manzana en la oscuridad fue así” (2001, p. 53). E inclusive assim, como relembra em uma de suas epístolas, se encontrava com a reprovação de seus filhos, que a recriminavam nos seguintes termos: “I don’t you to write! You’re a mother!” (FREIXAS, 2010, p. 156).

Desde o ponto de vista de sua produção literária, o fato de que Lispector escrevera originalmente em inglês O mistério do coelho pensante para que a babá lesse para seus filhos evidencia claramente que a autora não só já se sentia plenamente cômoda escrevendo em inglês como não lhe importava que seus filhos se submergiam em língua e cultura anglo norte-americanas (MAURA, 2006, p. 226). Deste modo, em uma carta comenta com uma amiga íntima que, “Washington no es el sitio más interesante, pero es Estados Unidos” (LISPECTOR, 2010, p. 308).

Durante seu périplo estadunidense, o casal não reside em nenhuma cidade que não seja a capital do país, onde o esposo desempenha sua absorvente tarefa profissional, mas sim que tem oportunidades para visitar Nova York, Filadélfia e Los Angeles. Em relação à Filadélfia, em uma carta a autora afirma, “estoy muy emocionada de estar en la ciudad donde vive la familia rica de Grace Kelly” (LISPECTOR, 2010, p. 292) e de Nova York relembra principalmente que “fuimos a ver una obra de Arthur Miller (el marido de Marilyn…), View from the bridge. Es excelente, pero creo que La muerte de un viajante es superior” (LISPECTOR, 2010, p. 307).

Em agosto de 1957, o casal teve a oportunidade de conhecer a costa oeste dos Estados Unidos, ao viajar à Califórnia em companhia de um grupo de milionários relacionados à Embaixada brasileira. A experiência, durante a qual a autora conhece Hollywood, viaja em limusine, participa de festas exclusivas e inclusive é confundida com uma estrela de cinema lhe parece, como não podia ser de outra forma, encantadora a uma Lispector acostumada a lidar com a nada excitante vida diária de dona de casa nos anódinos subúrbios de Washington. Depois de voltar a seu lar escreve uma carta na qual recorda a Califórnia, “ha sido una cosa completamente inesperada que me ha sentado muy bien. No dormía muy bien, pero con el cambio de clima he empezado a dormir” (LISPECTOR, 2010, p. 319). A priori é natural que o clima da ensolarada Califórnia lhe pareça mais atrativo, ou mesmo sadia, que à da fria e chuvosa capital do país, mas devemos neste ponto recordar que a umidade constante, o céu nublado e um ambiente quase gélido em algumas ocasiões era precisamente o que a autora afirmava preferir de Washington em suas primeiras cartas desde a cidade e que em outras cartas desde Torquay antes havia afirmado sentir atração pelas praias escuras do pequeno lugarejo (diametralmente oposto a da costa oeste dos Estados Unidos que agora louvava). Dessa forma acreditamos encontrar em condição de afirmar que para 1957 Lispector começava a se sentir tão fatigada na capital estadunidense que qualquer mudança era um bálsamo para seu espírito inquieto.

Em relação a glamurosa atividade da meca do cinema, a autora experimenta uma certa ambivalência. Por um lado, é prazeroso interagir com as estrelas de cinema, “vimos a Danny Kaye rodando y le dimos la mano. Es una delicia, tan atractivo como en el cine (¡qué digo, mucho más!), y muy gracioso e inteligente” (LISPECTOR, 2010, p. 319), mas por outro lado não pode evitar sentir desgosto diante a atitude hipócrita e algumas vezes grosseira da elite econômica e política com a qual também trata, como prova a seguinte citação:

“Antes de tomar el avión de regreso fuimos a tomar una copa con… Conrad Hilton (…) Hasta me hace gracia tanta riqueza. Es la casa más grande y más rica que he visto. Si alguien intenta atravesar los portones sin haber sido invitado, lo electrocutan… Hilton no me gustó, y me gustaría tener aquella casa para venderla y quedarme con el dinero, porque es antipática, con libros comprados a granel. Él dijo con orgullo que compró la casa tal y como estaba, con los muebles y la decoración (no tiene siquiera la vanidad de hacerse una casa a su gusto, naturalmente, porque no tiene gusto)” (LISPECTOR, 2010, p. 321).

Aproveitando a proximidade de São Diego com o México, o casal visita uma pequena cidade fronteiriça do país asteca, que para Lispector parece artificial, “entonces dimos un salto a… México, cuya frontera está a media hora. Era una pequeña ciudad que no tiene valor como representación de México, hecha sólo para los turistas, nada interesante, se tiene la impresión de estar en tierra de nadie” (LISPECTOR, 2010, p. 321). Acaba sendo interessante que a autora nunca tenha a sensação da falta de autenticidade quando vive nos subúrbios de casas quase idênticas e simetria extrema, no traço das ruas, nem quando conhece em primeira pessoa ou o deslumbrante esplendor de neones dos estúdios de Hollywood, mas observa com claro desgosto a falta de verdade palpável na fronteiriça cidade mexicana. Desde nosso ponto de vista, esse fato responde a que, igual a outros intelectuais como o francês Jean Baudrillard em seu livro Amerique, Lispector é capaz de perceber que no simulacro norte-americano subjaz uma autenticidade pura em si mesma, se bem-criadas a base de imitações e inversões multimilionárias. Na referida obra, Baudrillard não reluta em afirmar a este respeito que o simulacro yankee é em sua seminal ficcionalidade mais autêntico que Campos Elíseos. Obviamente, não ousamos assegurar que a própria Lispector chegara em algum momento subscrever dito comentário em sua totalidade, mas sim apreciamos certas correspondências filosóficas neste ponto.

Durante seus últimos anos em Washington, a autora não para de escrever, intercambiar epístolas com seus amigos e pleitear com as editoras para que deem sinal verde à impressão de algumas de suas obras. Se trata, em definitiva, de um período fecundo, mas também complexo no que em muitas ocasiões se observa uma Clarice Lispector distante, e inclusive fria.

Finalmente, em 1959, por uma infidelidade de seu marido, a autora se separa do mesmo e volta com seus filhos para o Rio de Janeiro. Ainda que o casamento estava a muito tempo uma crise contínua e em muitos sentidos parecia manter-se por inércia e pelo desejo de Clarice de não alterar a estabilidade de seus filhos (seu segundo filho foi diagnosticado com um sério distúrbio mental para o qual não convinha mudanças drásticas, muito menos do tipo emocional), a infidelidade de Maury foi a gota que derramou o copo de maneira definitiva. Embora, na opinião de Maura, é certo que os problemas com o marido sem dúvida contribuíram a tristeza de Clarice que temos mencionado anteriormente e a sua decisão de abandonar os Estados Unidos, também o fez (talvez de maneira inclusive mais intensa) “la asfixiante soledad, envuelta por tanta banalidad a la que se veía abocada” (2006, p. 236) na cidade de Washington.

Depois de abandonar os Estados Unidos, a autora não voltará a visitar o país até agosto do ano de 1967, quando é convidada a dar uma conferência na Universidade de Austin, no Texas. Durante essa breve visita, Lispector disfrutará de uma agradável permanência durante a qual compartilhará conversas com Elisabeth Bishop e Gregory Rabassa, que se encontrava preparando para a editora Knop Apple in the dark, a primeira tradução extensa da novelista que viria a luz nos Estados Unidos. Em uma carta enviada pelo próprio Rabassa a Pontiero, citada na recente biografia de Moser, este explica que os assistentes ao congresso ficaram deslumbrados com a conferência dada pela autora, “Clarice the novelist gave a much more cogent talk on literature than any of the many professional scholars who shared the podium” (2009, p. 260).

Para concluir nosso percurso pelo périplo durante o qual Lispector residiu em países de fala inglesa, não podemos deixar de ressaltar que em numerosas cartas enviadas pela autora, se torna palpável o interesse que a cultura pop do gigante estadunidense despertava nela. Um exemplo claro deste interesse constitui tanto as novelas de mistério e programas televisivos do mesmo gênero dos que afirma em diversas cartas desfrutar como o fato de outras cartas aludir a filmes como Peter Pan (LISPECTOR, 2010, p. 273), ao consumo (excessivo) de pipoca de milho nos cinemas, a comida rápida que tanto agrada seus filhos, etc.

 

  1. Clarice Lispector, tradutora e traduzida 

Apesar de morrer antes de ter cumprido sessenta anos de idade, além de dar a imprensa um importante corpus narrativo próprio, Clarice Lispector atuou em numerosas ocasiões como tradutora levando ao português diversas obras literárias da tradução castelhana e anglo-saxã. No que concerne a literatura de língua inglesa traduzida pela autora, esta levou ao português O retrato de Dorian Grey de Oscar Wilde, Histórias extraordinárias de Edgar Allan Poe, O chamado da selva de Jack London, assim como várias novelas de Agatha Christie. A fúria de John Farris, Memorias de uma sobrevivente de Doris Lessing e inclusive Entrevista com um vampiro de Anne Rice. Assim mesmo, também se dedicou a traduzir e adaptar para o público juvenil e infantil, As viagens de Gulliver de Jonathan Swift e Tom Jones de Henry Fielding (JIMÉNEZ, 2009, p. 41).

Ainda que admitir que nem todas as traduções assinadas pela autora são sobressalentes, sendo que algumas delas (principalmente do francês) sofriam de sérios problemas derivados da pobre recompensa obtida que levavam a autora a confessar que em ocasiões nem sequer consultava o dicionário na hora em que se encontrava com um termo desconhecido ou complexo de trazer para o português (MOSER, p. 340). Em geral podemos definir seu corpus tradutológico como solvente, elegante e sofisticado ao mesmo tempo que fiel ao espírito e estilo dos textos fonte. Assim pois, o resultado admirável que uma mesma escritora concluíra de maneira impecável as traduções de autores tão heterogêneos (em muitos casos extremamente complexos) como Jorge Luis Borges, Federico Garcia Lorca ou Julio Verne (além dos mencionados autores de língua inglesa) junto com sua própria criação artística.

Acreditamos que considerar com detalhamento as obras que Lispector traduziu nos permitirá conhecer melhor tanto o posicionamento intelectual da autora como seu vínculo, não biográfico, mas artístico, com a cultura em língua inglesa.

Em primeiro lugar consideramos evidente que Clarice Lispector advoga pela pós-moderna desconstrução dos opostos binários tradicionais estabelecidos entre high art e pop, já que além de se dedicar a tradução de obras notadamente canônicas, também faz o mesmo com textos mais democráticos (empregamos nesse caso a terminologia proposta por Jerome Klinkowtiz, que distingue entre o elitismo da torre de marfim e a escrita democrática), como podem ser as mencionadas novelas de mistério de Christie ou a primeira novela das célebres crônicas vampíricas de Anne Rice. Poderia aduzir neste ponto que as conhecidas e perenes necessidades crematísticas de Lispector dificilmente lhe permitiriam recusar um encargo de tradução por questões meramente estéticas, mas não podemos esquecer que nenhuma de suas cartas se lamenta desses trabalhos (como faz de alguns artigos que se obrigava a realizar por causa de sua escassez econômica), assim como o fato de que a maior parte dessas traduções as realizam aos finais da década dos setenta, pouco antes da sua morte, em um momento em que as dificuldades monetárias mais diligentes já haviam ficado para trás.

Benjamin Moser compartilha nossa opinião sobre a relativa liberdade que Lispector devia desfrutar na hora de escolher que textos em concreto traduzir, “Clarice may have not chosen all the texts she translated, but she did have a choice with at least one publisher that employed her, and it is nonetheless remarkable how many of them deal with the same themes of crime, sin and violence that so often appear in her own work” (2009, p. 339).

Se ao servir de seu talento e dedicar parte de sua sempre apertada agenda profissional à tradução de obras de caráter popular nos permite localizar Clarice Lispector dentro da tradição literária pós-moderna, o fato de que a autora traduzira alguns dos pioneiros da novela inglesa aponta na mesma direção. Enquanto a tradição novelística mais canônica até a emergência do pós-modernismo vinha bebendo de Dickens, Austen, e as Brönte entre outros autores da rica tradição literária decimonônica, os narradores pós-modernos voltam o olhar às origens da novela, que datam do início do século XVIII. Não é surpreendente que escritores como John Barth, Donald Barthelme, Thomas Pynchon se interessem por Fielding ou Swift (como também fez Lispector presumidamente como leitora e evidentemente, como tradutora).

Enquanto a novela do século XIX aspirava o realismo mediante um narrador onisciente, os primeiros esforços novelísticos em língua inglesa resultavam absolutamente inovadores, experimentais, dados a reflexão filosófica e descarados em muitos momentos. Portanto, existente consenso crítico na hora de considerar a Fielding, Defoe ou Swift como os antecessores literários mais seminais para os literatos do movimento pós-moderno anglo norte-americano.

O mesmo pode em grande medida aplicar-se ao corpus narrativo de Lispector considerando que, como Myriam Jiménez aponta “hablar de Clarice Lispector es remitirnos a un continente lleno de luces y de enigmas” (2009, p. 27). E longe de oferecer relatos lineares estruturados em torno de uns personagens principais claramente caracterizados, o universo ficcional de Lispector é tão fecundo em imagens proponentes, reflexões profundas e profundidade psicoanalítica como pobre na certeza unidirecional dickensianas. Jogando com o título de uma das mais célebres novelas realistas em língua inglesa, as novelas de Lispector não acham o sentido senão na mais profunda (mística ousaríamos dizer) das sensibilidades. Como exemplo paradigmático deste fato, pensamos que a busca infrutífera de uma divindade feminina que dê sentido ao universo inteiro na novela V. de Thomas Pynchon (mas que começa definindo o seu personagem como “a human yoyo” e nos perdendo na profundidade de sua intricada mente) não está na verdade longe da voragem metafísica na que nos submerge uma barata esmagada ao meio na magistral Paixão segundo G.H (devemos notar que inclusive o título de ambas novelas opta por iniciais em lugar de dotar de nome próprio completo ao seus textos e protagonistas ).

Em outra célebre novela de Pynchon (The Crying of Lot 49), a protagonista se pergunta angustiada “Shall I project a world?” (p. 73) para logo responder a si mesma nos seguintes termos: “The reality is in this head. Mine. I’m the projector at the planetarium, all the closed little universe visible in the circle of that stage is coming out of my mouth, eyes, and sometimes other orifices also” (p. 73). Como podemos apreciar nessa citação, tampouco neste caso um dos melhores exponentes da narrativa pós-moderna estadunidense se distancia do caminho de exploração interior escolhida por Clarice Lispector na referida Paixão (por mantermos fiéis ao exemplo inicial, sendo que não muitas de suas outras novelas foram muito diferentes). Para Pynchon, como para Lispector, não só a linguagem é instável a maneira derridiana, senão que seguindo uma via que intuíram Wittgenstein e Nietzsche e desenvolveram com assombrosa maestria Focault, Lyotard e Baudrillard posteriormente, também o é a própria realidade interior. A Oedipa de Pynchon é um catalizador universal da natureza entrópica, tanto como a G. H. de Lispector se projeta quando se vê possuída da barata esmagada forçando o leitor aceitar uma realidade de que Lacan, Freud e em grande medida Jung são melhores tradutores como nunca podiam chegar a ser os frios postulados racionalistas de Newton, Descartes ou Pascal.

Definitivamente não acreditamos que o fato de que Lispector tenha traduzido precisamente alguns dos novelistas aos que os escritores pós-modernos britânicos e norte-americanos acudiram buscando um referente parental uma vez que haviam cerceado edipicamente seus laços sanguíneos com a grande novela canônica do século XIX não pode de maneira alguma atribuir-se a coincidência.

Se estudar o trabalho de Clarice Lispector como tradutora contribui para compreender os laços que se estabelecem entre a autora e o âmbito anglo-saxão, considerar as traduções que de seu corpus literário apareceram em inglês até o momento resulta, desde nosso ponto de vista, fundamental.

Começaremos por destacar que, como Myriam Jiménez nos lembra “sin duda traducir a Clarice Lispector es un desafío…” (2009, p. 55). Giovanni Pontiero, em seu prefácio que o mesmo realiza de Near to the wild heart, é mais enfático na hora de identificar as inúmeras dificuldades do que a exultante labiríntica prosa portuguesa de Lispector na hora de transpor para o inglês,

“Lispector’s unorthodox use of syntax and punctuation, her bold rhythms and syncopated phrasing contribute to the overall impression of tense, haunting lyricism. Her startling metaphores and símiles show a preference for suggestion rather than clear-cut definition. Words are given new meanings and resonances in order to emcompass things amorphous and impalpable” (1990: 191-92).

O único artigo científico que surgiu até o dia de hoje que trata da maneira monográfica sobre a tradução de Lispector ao inglês, Tace Hedrick repete os argumentos expostos por Pontiero para concluir que a maioria das versões inglesas da obra de Lispector não só são respeitosas ao estilo da autora como também que chegam a impossibilitar em grande medida sua leitura ao afetar de maneira determinante a um dos pilares narrativos onipresentes na prosa da autora carioca,

“In fact, I maintain here that several important English-language translators of Lispector’s work have ignored her word choice, her rhetorical gestures—repetition, catachresis, and parataxis especially— and even the very content of her work to such a degree as to undermine one of her most important writerly concerns: the connection between language and being-female” (2005, p. 58).

Como se pode apreciar, as obras de Lispector oferecem uma resistência palpável na hora de serem traduzidas ao inglês (o qual não resulta, desde já, surpreendente se levamos em conta que a própria extração do significado ou significados constituem já os desafios tão titânicos quanto proteicos inclusive para o leitor que se enfrenta com as novelas em seu texto fonte), pelo que os resultados obtidos tem sido, quando menos, desiguais e em não poucas ocasiões decepcionantes.

Nos propomos agora realizar uma análise mais atenta das diferentes edições inglesas das obras de Clarice Lispector aparecidas até agora.

Iniciaremos nosso estudo respondendo à primeira ocasião em que um trabalho da autora apareceu nos Estados Unidos em língua inglesa. Como não poderia ser de outra maneira, esta primeira tradução é realizada por uma poeta de sensibilidade excelente, estilo complexo e grande conhecimento tanto do Brasil como da própria Lispector. Nos referimos a Elizabeth Bishop, a quem o também poeta John Ashbery definira como “the writer’s writer’s writer”, referindo-se tanto ao estilo floreado da autora quanto a hermenêutica profundidade moral e intelectual que permeia seus poemas e relatos breves.

Bishop chegou ao Brasil em 1951 com sua esposa, a milionária Lota de Macedo Soares. O casal pretendia permanecer em Santos durante algumas semanas, mas onze anos depois Bishop continuava no país sul-americano e foi nesse ano que conheceu tanto a narrativa de Lispector quanto a própria autora. Desde o primeiro encontro as duas mulheres se entenderam perfeitamente, tanto a nível pessoal quanto profissional. Os laços que se estabeleceram foram tais que Bishop não demorou em propor a sua nova amiga a possibilidade de traduzir para o inglês alguns de seus relatos breves, com a expectativa de valer-se de seus contatos editoriais e prestígio em Nova York para introduzir suas obras no mercado norte-americano.

Bishop dedica uns seis meses a traduzir cinco relatos de Clarice Lispector, mas em janeiro de 1963, a autora brasileira desaparece de maneira repentina e cessa a correspondência com a poeta americana. Em uma carta a Robert Lowell, Bishop explica que,

“I have translated five of Clarice’s stories- all the very short ones & one longer one. The New Yorker is interested (…) Alfred Knopf is also interested in seeing the whole book (…) Her novels are NOT good; the “essays” she does write for Senhor are very bad- but in the stories she has awfully good things and they do sound pretty good in English and I was quite pleased with them” (BISHOP, 1963, p. 438).

Acreditamos que as duras críticas as prosas extensas de Lispector podem atribuir-se principalmente a frustação que Bishop sentia, sendo que em ocasiões posteriores não só não volta a se manifestar em termos similares, como que elogia sem rodeios a novelística de sua amiga. Aproximadamente sete semanas depois de seu súbito cesse de correspondência com Bishop (devido provavelmente a morte de seu amigo íntimo Lucio Cardoso), Lispector retoma o contato com sua colega americana, que não demora em perdoa-la e retomar sua empresa tradutológica. A mesma dará seus frutos em 1964, quando Canyon Review publica os relatos traduzidos por Bishop. O resultado é excepcional, ainda que para dizer a verdade existem passagens que nos custa distinguir até que ponto é a escrita de Bishop ou a de Lispector a que nos faz estremecer.

Também devemos reconhecer o mérito de Bishop em conseguir convencer Alfred Knopf, em princípio reticente ante a estranheza que produzia o texto e sua impossibilidade para julgar sua qualidade literária e viabilidade editorial de publicar nos Estados Unidos a tradução da novela A maçã no escuro, que aparecerá em 1967.

Ainda que Knopf pede Bishop que se encarregue ela mesma da tradução, a poeta recusou a oferta ao considerar que esta tarefa lhe tomaria muito e acabaria por ser um tanto tediosa (MOSER, 2009, p. 259). Deste modo, o encarregado a transpor a novela para língua inglesa será Gregory Rabassa.

Rabassa era um pesquisador e tradutor de prestígio reconhecido e extensa trajetória profissional, mas até o momento não havia realizado nenhuma tradução do português. Não obstante, quando começou a tradução da obra de Lispector se encontrava desfrutando de uma bolsa de pesquisa Fulbright no Brasil, o que lhe permitia não só estar em contato direto com o idioma e a sociedade do país como também com a própria Clarice Lispector.

Em sua obra Trasnslation & its dyscontents, Rabassa faz as seguintes afirmações sobre a obra de Lispector e sua tradução ao inglês, que nos parecem surpreendentes,

“I was glad to be translating The Apple in the dark and not Grande sertao: Veredas. Clarice goes smoothly into English, Rosa [Jão Guimãres] would have to be rewritten, not translated, unless by the likes of James Joyce […] Clarice Lispector writes a clear, flowing, and evocative prose. A translator following her words should be led right along by them and have no trouble” (2005:71-73).

Como parece evidente na citação precedente, Rabassa parece não entender muito bem as complexidades inerentes à prosa de Lispector, caracterizada desde o início pela “flowing, and evocative prose” a que se refere, mas que poucos leitores definiriam como “clear” e distante de Joyce, senão todo o contrário. Portanto, não devemos nos surpreender que a tradução de Rabassa acabe parecendo decepcionante e se vê marcada pela excessiva simplificação que Hedrick identifica nas muitas traduções ao inglês da obra de Lispector a qual nos referimos anteriormente. Em geral, as edições inglesas que aparecem posteriormente sofrem do mesmo defeito, que Claire Varin define a perfeição quando critica estas traduções por empenhar-se em “despojar al cactus de sus espinhas” (1990, p. 32).

Este defeito pela parte dos tradutores empenhados em “domesticar” a exuberância selvagem e poliédrica que exibe a prosa de Clarice Lispector em sua versão original resulta ser fatal para as traduções ao inglês de sua obra, sendo que como Moser expressa no matter how odd Clarice’s prose sounds in translation, it sounds just as unusual in the original” (2009, p. 209).

Não obstante, apesar de que é certo que a maioria das traduções ao inglês da obra de Lispector até o ano de 2012 são em grande medida pouco fiéis ao original e, portanto, decepcionantes quanto serem simplificadoras e reducionistas, também existem exemplos de versões inglesas que foram mais respeitosas com a autora, ou ao menos, mais acertadas como a realizada por Pontiero de Near to the wild heart no ano de 1990 ou a que o mesmo Pontiero realizou três anos antes de The foreign legion, em cujo epílogo acertadamente destaca que sua tarefa como tradutor foi complexa sendo que, “as a writer she is less interested in conventional plot structure than a labyrinth of perceptions” (1986, p. 217).

Entretanto, se torna muito recente o surgimento de diversas traduções que finalmente façam jus à rica complexidade dos textos portugueses originais. Em primeiro lugar, Benjamin Moser se encarrega no ano de 2011 da complexa tarefa de traduzir The hour of the star. Além de oferecer uma edição cuidada, respeitosa e complexa ao extremo, no epílogo Moser reflete sobre as complexidades inerentes ao trabalho, ao mesmo tempo que se mostra elegante ao conceder que apesar de ter errado, os tradutores anteriores de Lispector não tiveram não muito menos fácil sendo que,

“the tendency [a simplificar el texto original en sus respectivas versiones inglesas] is understable. It may even, to some extent, be inevitable. Clarice Lispector’s weird choice of words, strange syntax and lack of interest in conventional grammar produces sentences- or fragments of sentences- that ver toward abstraction without ever quite reaching it. Her goal, mystical as well as artistic, was to rearrange conventional language to find meaning, but never to discard it completely” (2011, p. 80).

Além de traduzir essa novela, Moser também edita, de maneira magistral, quatro novas traduções que veem a luz no ano de 2012 sob o selo editorial New Direction Books. Nos referimos a The passion according to G.H., vertida neste caso ao inglês por Idra Novey, Near to the wild heart (a cargo de Alison Entrekin), A breath of life (traduzida por Johnny Lorenz) e Agua viva (en versión inglesa de Stefan Tobler).

Apesar de realizar uma tarefa impecável, Novey explica em seu epílogo à novela o seguinte:

“The experience of translating G.H. has left me feeling bald, and not as if I have lost my hair in the process so much as discovering that like G.H., like the roach, I am actually all cilia and antennae and would never have come to know this without gradually, painstakingly experiencing every word in this book” (2012, p. 193).

Acreditamos que é esta aproximação à tradução, que se surpreende a cada passo e vai descobrindo a estranheza aparente e subjacente à novelística de Lispector, palavra por palavra. Considerando que, como Moser explica em “Hurricane Clarice”, que serve de introdução a nova tradução de Near to the wild heart, “[Lispector’s] word does not describe a preexisting thing but actually is the thing, or a word that creates the thing it describes” (2012, p. 11 – 12).

Para concluir nosso percurso pelas traduções ao inglês da obra de Lispector citaremos novamente Pontiero, que em seu prefácio à tradução própria de Selected Cronicas explica que, “[the Portuguese language] she was to transform and even reinvent by means of conceptual refinements, subtle nuances and bold experiments with syntax” (1992, p. 09). Se, como Pontiero assegura, Lispector não só emprega o português de maneira idiossincrática, senão que contribui para fazer evoluir essa língua mediante sua literatura os desafios que encontrará o tradutor que aspire a verter alguma obra de seu rico corpus estarão desde o primeiro momento condenados a arrebentar-se contra uma muralha de natureza estilística, mas sem dúvida também hermenêutica, muito parecidas  em verdade, aos que devem enfrentar na hora de verter a outra língua os textos de Joyce, Woolf, Barth ou Pynchon, entre tantos outros escritores modernistas e pós-modernistas.

Não podemos concluir o presente trabalho sem destacar que a prosa de Clarice Lispector tem, sem dúvida, repercussão em diversas narradoras norte-americanas e canadenses contemporâneas como podem ser Toni Morrison ou Margaret Atwood. Sendo que esta questão continuará sendo matéria para futuros trabalhos que pretendemos realizar, basta dizer nesta ocasião que a influência da autora brasileira em escritoras feministas em língua inglesa começou a ser rastreada já no ano de 1993 quando se publicou Anxious Power: Reading, Writing, and Ambivalence in Narrative by Women (SINGLEY, 1993) e em um volume recente Examining Whiteness: Reading Clarice Lispector through Bessie Head and Toni Morrison, e se aprofunda de maneira brilhante nesta questão (VILLARES, 2011).

 

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[1] Autor: Javier Martín Párraga/ Departamento de Filologia Inglesa e Alemã/ Universidade de Córdoba/ e-mail: javier.martin@uco.es/ Madrid/ Espanha

 

[2] Tradutora: Rosangela Fernandes Eleutério/ Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução/ Universidade Federal de Santa Catarina/ email: rosangelaeleuterio@gmail.com/ Florianópolis/ Brasil.