Notas sobre Erik Satie – Marina Veshagem
Notas sobre Erik Satie
Marina Veshagem*
Gostaria de apresentar um pouco sobre o objeto da pesquisa que estou iniciando: a dramaturgia de Erik Satie. Tal tarefa parece simples, pois se trata da dramaturgia do autor de apenas uma peça, intitulada “Le Piège de Méduse”, mas a complexidade surge por diversos aspectos. Primeiro porque Satie foi famoso como compositor e pianista, pouco se diz sobre sua única peça. Também porque “Le Piège de Méduse” é considerada precursora do teatro do absurdo, logo sua linguagem está longe de ter um sentido estável, os diálogos são cheios de clichês, jogos de palavras, e nonsense.
Se começo falando do autor é porque vejo nele um gesto. Ao mesmo tempo em que mato esse autor, faço-o sobreviver no gesto: o gesto de inseri-lo em textos e contextos, tendo a biografia como outro suporte de leitura da obra. Hoje proponho, na minha pesquisa, a primeira tradução da peça para o português, já que até hoje ela existe apenas em francês, inglês e alemão.
Bom, o autor, Erik Satie é francês, viveu de 1866 a 1925, e se destacou no cenário de vanguarda parisiense do começo do século XX. Ele era tido como um sujeito excêntrico: gostava de escrever e fazer caricaturas até de si mesmo, muitas vezes se comunicava através de cartas, as quais enviava, lacradas e seladas até, por exemplo, para um colega que vivia em um quarto ao lado do seu, ou inclusive a si mesmo. Possuía 12 ternos cinza de veludo iguais, fazia coleção de guarda-chuvas e cachecóis, detestava sol e tinha mania de comida branca – como arroz, ovo, peixe, queijo, nabo. Logo no início de sua carreira como músico no cabaré artístico Chat Noir, em Paris, ele conseguiu o apelido, dado por Alphonse Allais, de “Esotérik Satie” – esotérico Satie.
Profissionalmente, Satie foi pouco aceito nos momentos em que se dedicou a estudar academicamente e tampouco foi admirado pelos críticos e compositores musicais da época, que diziam que suas harmonias eram estranhas e as escalas pouco convencionais. Assim, Satie se formou em contraponto quando já tinha 42 anos e voltou a trabalhar na noite parisiense. Apenas a partir de 1911 sua música passou a ser mais reconhecida, principalmente alguns anos depois, quando por interesse de Jean Cocteau, Satie compôs para um balé, utilizando-se dos sons de máquinas de escrever, sirenes e tiros de pistola. A composição gerou escândalo, mas foi a primeira vez em que apareceu o termo surrealismo, usado por Apollinaire para descrever a obra.
Antes de morrer de cirrose, os discípulos de Satie formaram uma escola, sob sua supervisão. Ele foi tido como precursor de movimentos artísticos como o minimalismo – em que os artistas preocupavam-se em usar poucos elementos fundamentais como base de expressão -, também de conceitos como a música repetitiva – que consiste na repetição de trechos musicais na criação ou apresentação da composição – e a música ambiente – “musique d’ameublement”, composta para não se sobrepor aos sons naturais do ambiente, mas para compor com eles, como uma mobília, que servia apenas para preencher os silêncios na conversa dos convidados de um jantar, por exemplo, e abafar os ruídos da rua. Satie também é tido como precursor do teatro do absurdo.
É nesse contexto que se apresenta a única peça escrita por Erik Satie. “Le Piège de Méduse” é de 1913. Como minha pesquisa envolve a tradução da peça, preferi não traduzir por enquanto o título nem o nome dos personagens, mas para que vocês possam ter uma ideia, o nome seria algo como “a armadilha” ou “a trama” do Medusa. A peça é tida como uma comédia lírica intercalada por sete partituras para piano, também compostas pelo autor, que eram dançadas por um macaco mecânico. Os personagens da peça são o Barão Méduse, a sua filha Frisette, o pretendente de Frisette, Astolfo, e Polycarpe, o desobediente empregado do barão. Há também o macaco mecânico dançante Jonas. São nove cenas que se desenrolam a partir da visita do pretendente Astolfo ao barão, anunciada pelo cartão entregue pelo empregado, em que Médusecomeça a controlar a situação para garantir que não seja enganado em nenhuma circunstância. Então se segue uma sequência engraçada de desentendimentos non sense.
A linguagem da peça de Satie apresenta características do teatro do absurdo, como: há uma clara dificuldade de comunicação na peça; em vez de permitir que os personagens se comuniquem, a linguagem se torna o primeiro obstáculo para que isso aconteça. O barão toma o sentido das palavras ao pé da letra ou distorce-as para o lugar-comum, para readquirir o controle, deixando seu entorno sem chão. De acordo com texto de Michel Leiris, escrito na década de 30 na revista Nouvelle Revue Française, a partir de elementos de uma completa simplicidade, com uma manobra sutil, Satie tira a situação da peça do seu contexto natural. É o que Ornella Volta, estudiosa de Satie, traduz como uma estética da pobreza, em livro escrito em 1989.
A peça foi redescoberta diversas vezes em cada época e por uma razão diferente, mas não foi realmente aceita até a eclosão do movimento dadaísta e a mudança de valores da Primeira Guerra Mundial – contexto em que se instaurou um sentimento geral de desesperança, falta de futuro, em que a comunicação não havia sido suficiente para as pessoas se entenderem; sentimento que se intensifica após a Segunda Guerra Mundial.
John Cage retoma no fim dos anos 40, uma “defesa de Satie” que celebrava uma música caracterizada pela ausência de emoção dramática, repetição, descontinuidade, coexistência de elementos opostos ou incompatíveis, impessoalidade. O musicólogo Tomasi di Lampedusa, em 1977, viu na obra de Satie a verdadeira música do surrealismo, com as sete danças do macaco com procedimentos harmônicos quase aleatórios, de vários gêneros, com justaposição de elementos heterogêneos, sem desenvolvimento lógico de causa e efeito.
Lampedusa também trouxe algumas outras contribuições para a leitura da peça. Méduse, o nome do barão, refere-se ao animal invertebrado medusa, em português, também conhecido como água-viva, da família dos crinoides. A família crinoide, em francês significa “acalèphe”. Na peça, o barão estabeleceria um jogo de palavras quando, por um “lapso”, declara que sua família é “acéphale”, que significa acéfalo, sem cérebro, em vez de “acalèphe”. Lampedusa diz que a peça então seria a “celebração litúrgica da castidade intelectual”. Outro nome que levanta essa suspeita de um jogo de palavras é do macaco, que se chama Jonas. Jonas é o nome de um profeta. Na peça, o macaco Jonas foi fabricado para a distração de seu criador e dança nos momentos de devaneio do barão. O jogo se estabelece quando o texto diz de Jonas que “ele é o “melhor de nós” e também que “ele nos assiste”.
Bom, essas são algumas das investigações que estou iniciando e que pretendem nortear a tradução da peça e a delimitação da minha pesquisa sobre Erik Satie.
* Jornalista. Atualmente, desenvolve pesquisa de mestrado sobre Erik Satie na Pós-Graduação em Estudos da Tradução.