A Realização da Existência de Bertrand Russell – Tradução de Rodrigo Conçole Lage

A Realização da Existência de Bertrand Russell

 

                                                                       Tradução de Rodrigo Conçole Lage[1]

 

O filósofo, matemático, lógico e escritor inglês Bertrand Russell publicou, ao longo de sua carreira, dois livros de contos filosóficos: Satan in the Suburbs and Other Stories (1953) e Nightmares of Eminent Persons and Other Stories (1954). Postumamente, em 1972, foi lançada a coletânea Collected Stories of Bertrand Russell. Ela reúne os contos publicados anteriormente e inclui material inédito. A Realização da Existência é o quinto dos doze contos de Nightmares of Eminent Persons and Other Stories.

Na introdução do livro Russell diz que cada pesadelo pode ser chamado de “sinal de sanidade”. Ele defende a ideia de que cada paixão dominante gera um medo que, por sua vez, gera um pesadelo. Cada paixão isolada é uma insanidade. A sanidade seria uma síntese de diferentes insanidades. Assim, para preservar a sanidade em um mundo perigoso o homem deve convocar em sua mente o que ele chama de “Parlamento de Medos”. Nesse parlamente cada um desses medos será eleito insano por todos os outros. Para demonstrar a verdade dessa técnica ele escreveu histórias nas quais os personagens não adotam essa ideia, mostrando as consequências desse fato. Ele conclui a introdução dizendo esperar que os leitores tenham mais sabedoria do que eles.

 

O PESADELO EXISTÊNCIALISTA

A Realização da Existência

Bertand Russell

 

Porfírio Eglantine, o grande filósofo-poeta, é muito conhecido por seus escritos muito sutis e profundos, mas sobretudo por seu imortal Canto do Nada:

 

Num imenso deserto,

Um extenso infinito de areia,

Eu procuro

Eu procuro o caminho perdido,

O caminho que eu não consigo encontrar.

Minha alma paira aqui, ali,

Em todas as direções,

Procurando, e não encontra nada, entre

Este imenso vazio,

Este continuamente vazio,

Esta areia

Esta areia brilhante e sufocante,

Esta areia monótona e triste,

Estendendo-se sem fim até o horizonte ultimo.

Ouço agora

Uma voz,

Uma voz ao mesmo tempo fulminante e gentil.

Esta voz me disse:

“Tu pensas que tu és uma alma perdida.

Tu pensas que tu és uma alma.

Tu estás enganado. Tu não és uma alma.

Tu não estás perdido,

Tu não és nada.

Tu não existes.

 

Embora este poema seja tão bem conhecido, poucas pessoas conhecem as circunstâncias que levaram a ele e os acontecimentos a que deu lugar. Por doloroso que seja, é meu dever contar estas circunstâncias e estes eventos:

*                        *                      *

Porfírio era, desde sua primeira juventude, sensível e sofredor. Estava perseguido pelo medo de que talvez ele não existisse. Sempre que olhava num espelho ficava cheio de apreensão por medo de que sua imagem não aparecesse. Ele inventou uma filosofia que, esperava, dissiparia esse terror. Mas, de tempos em tempos, essa filosofia falhou em satisfazê-lo. Geralmente, ele conseguia enterrar suas dúvidas, mas o Canto do Nada, que expressa uma súbita visão devastadora, mostrou a sua falta de sucesso. Ele decidiu que a todo o custo iria existir para, indubitavelmente, silenciar a voz espectral.

Introspecção e observação parecem tê-lo persuadido de que nada é tão real quanto à dor, e que ele somente poderia alcançar a existência através do sofrimento. Ele procurou o sofrimento por todo o mundo numa peregrinação de tristeza. Passou um solitário inverno na Antártida enquanto a noite interminável inspirava visões da futura melancolia.

Ele se expôs à tortura na Alemanha nazista fingindo ser um judeu. Mas, no momento em que eles estavam ficando insuportáveis, o corvo[2] de Poe veio pulando, pulando, pulando para dentro do campo de concentração; e, falando com a voz de Mallarmé, crocitando o terrível refrão: “Tu não estás perdido. Tu não és nada. Tu não existes”.

Ele foi depois para a Rússia, onde fingiu ser um espião para Wall Street, e passou um longo inverno cortando madeira perto do Mar Branco[3]. Fome e fadiga e o frio diário penetraram mais intensamente nas profundezas do seu ser. Certamente, ele pensou, se isso continuar por muito mais tempo, vou existir. Mas não. No último dia do inverno, como a neve começou a derreter, o terrível Pássaro apareceu mais uma vez e novamente pronunciou as palavras letais.

Talvez, ele pensou, os sofrimentos que estive procurando sejam muito simples. Para ser verdadeiramente infeliz devo misturar, com as minhas tristezas, um fator de vergonha.

No cumprimento deste programa ele foi para a China e ficou totalmente apaixonado por uma requintada garota chinesa que se sobressaia nos conselhos do Partido Comunista. Por meio de documentos falsificados, ele fez com que ela fosse condenada como uma emissária do Governo britânico. Terríveis torturas foram infligidas a ela na sua presença. Por fim, a agonia trouxe a morte, pensou, “agora, eu realmente tenho sofrido. Até o último momento eu a amei apaixonadamente e a levei à ruína pela minha covarde traição. Certamente isso deve ser o suficiente para me fazer sofrer até os limites da capacidade humana.” Mas não. Com um frio terror que o deixou incapaz do menor movimento, ele viu o Pássaro do Destino aparecer novamente, e falando mais uma vez com a voz do imortal poeta que tinha introduzido o pássaro ao público literário parisiense[4].

Com um imenso esforço deu expressão ao seu desespero enquanto o Pássaro ficou. “Ó Corvo”, ele disse, “existe algo, algo em todo este vasto mundo, que o levará a admitir que eu existo?” O Corvo pronunciou uma palavra: “Procure”, e então desapareceu.

Não devemos supor que Porfírio tivesse permitido que sua busca absorvesse todas as suas energias. Ele permaneceu do começo ao fim um filósofo-poeta, admirado por toda parte, mas principalmente nos círculos mais esotéricos. Ao regressar da China foi convidado para um Congresso de Filosofia em Paris, cujo objetivo principal era fazer-lhe homenagem. Todos os convidados reuniram-se exceto o presidente. Quando Porfírio perguntou-se quando o presidente viria, o Corvo veio e ocupou a Cadeira de Honra. Virando-se para Porfírio variando a fórmula e nos toques musicais, que todo o Congresso ouviu, ele disse: “Sua filosofia não existe. Ela não é nada”. Ao ouvir estas palavras uma pontada de angústia, como nenhuma experiência anterior igualou ou mesmo se aproximou, atravessou todo o seu ser. E ele caiu num desmaio. Quando voltou a si, ouviu o pássaro pronunciar as palavras pelas quais ele ansiava: “Finalmente, tu sofres. Finalmente, tu existes”.

Ele acordou e eis! tinha sido um sonho.

Mas nunca mais falou ou escreveu filosofia.

 

THE EXISTENTIALIST’S NIGHTMARE

The Achievement of Existence

Bertand Russell

 

Porphyre Eglantine, the great philosopher-poet, is known far and wide for his many subtle and  profound writings, but above all for his immortal Chant du Néant:

 

Dans un immense desert,

Un étendu infini de sable,

Je cherche,

Je cherche le chemin perdu,

Le chemin que je ne trouve pas.

Mon ame plane par ci, par là,

Dans toutes directions,

Cherchant, et ne rencontre rien, parmi

Ce vide immense,

Ce vide sans cesse,

Ce sable,

Ce sable blouissant et touffant,

Ce sable monotone et morne,

S’tendant sans fin jusqu’à ultime horizon.

J’entends enfin

Une voix,

Une voix en meme temps foudroyante et douce.

Cette voix me dit :

“Tu penses que tu es une ame perdue.

Tu penses que tu es une ame.

Tu te trompes. Tu n’es pas une ame.

Tu n’es pas perdu,

Tu n’es rien.

Tu n’existes pas.”

 

Although this poem is so well known, few people know the circumstances which led to it and the events to which it led. Painful as it is, it is my duty to recount these circumstances and these events:

*                        *                      *

Porphyre was, from his earliest youth, sensitive and suffering. He was haunted by the fear that perhaps he did not exist. Every time he looked in a mirror he was filled with apprehension lest his image should not appear. He invented a philosophy which, he hoped, would dispel this terror. But from time to time this philosophy failed to satisfy him. As a rule he was able to bury his doubts, but the Chant du Neant, which expresses a sudden shattering vision, shows his lack of success. He determined that at all costs he would exist so indubitably as to silence the spectral voice.

Introspection and observation alike had persuaded him that nothing is so real as pain, and that he could achieve existence only through suffering. He sought suffering throughout the world in a pilgrimage of sorrow. He spent a solitary winter in the Antarctic while the unending night inspired visions of future gloom.

He exposed himself to tortures in Nazi Germany by pretending to be a Jew. But just at the moment when they were growing unendurable, Poe’s Raven came hop, hop, hop into the concentration camp; and, speaking with the voice of Mallarme, croaked the dreadful refrain: “Tu ne souffres pas. Tu n’es rien. Tu n’existes pas.”

He went next to Russia, where he pretended to be a spy for Wall Street, and spent a long winter felling timber beside the White Sea. Hunger and fatigue and cold daily penetrated more deeply into his inmost being. Surely, he thought, if this goes on much longer, I shall exist. But no. On the last day of winter, as the snow began to melt, the dreadful Bird appeared once more, and again uttered the fell words.

Perhaps, he thought, the sufferings I have been seeking are too simple. If I am to be truly miserable I must mix with my sorrows an element of shame.

In pursuance of this programme he went to China and fell passionately in love with an exquisite Chinese girl who stood high in the counsels of the Communist Party. By means of forged documents, he caused her to be condemned as an emissary of the British Government. Frightful tortures were inflicted upon her in his presence. What at last the agony brought death, he thought, “now, I really have suffered. For down to the last moment I have loved her passionately and I have brought her to ruin by my dastardly treachery. Surely this should be enough to make me suffer to the limits of human capacity.” But no. With a cold terror that made him incapable of the smallest movement, he watched the Bird of Fate again appearing, and speaking once more with the voice of the immortal poet who had introduced the bird to the Parisian literary public.

With an immense effort he gave utterance to his despair while yet the Bird remained. “O Raven,” he said, “is there anything, anything in all this wide world, which will lead you to admit that I exist?” The Raven uttered one word: “Seek”; and then vanished.

It must not be supposed that Porphyre had allowed his quest to absorb all his energies. He remained throughout a philosopher-poet, admired everywhere, but most of all in the most esoteric circles. On his return from China he was invited to a Congress of Philosophy in Paris, of which the chief purpose was to do him honour. All the guests were assembled except the President. While Porphyre wondered when the President would come, the Raven came and occupied the Chair of Honour. Turning to Porphyre it varied the formula and in ringing tones, which all the Congress heard, it said: “Ta philosophie n’existe pas. Elle n’est rien.” At these worbs a pang of anguish, such as no previous experience had equalled or even approached, shot through all his being. And he fell in a faint. As he came to, he heard the Bird utter the words for which he had longed: “Enfin, tu souffres. Enfin, tu existes.”

He awoke, and lo! it had been a dream.

But he never again talked or wrote philosophy.

[1] Graduado em História (UNISUL). Especialista em História Militar (UNISUL).

[2] Referência ao poema O corvo de Edgar Allan Poe.

[3] O Mar Branco é um braço do mar de Barents, na costa noroeste da Rússia.

[4] Referência ao poeta Charles Baudelaire que foi o primeiro a traduzir a obra de Poe para o francês.