A censura como instrumento da guerra psicológica – Alexandre Nodari

A censura como instrumento da guerra psicológica*

Alexandre Nodari**


“As palavras coexistem com o poder em uma relação análoga àquela que o proletariado (…) pode manter com o poder. Empregadas durante quase todo o tempo, utilizados em jornada completa, em todo seu sentido e em todo seu não-sentido, seguem sendo em algum aspecto radicalmente estranhas”.

(“All the King’s men”, internationale situationniste, n. 8, janeiro de 1963)

Toda censura declina um dos modos do Poder, como Leitor e Co-autor”

(Raul Antelo, Cláudia Gilman e Daniel Link)

Lin Tianmiao, “Here or There” (2002)

1.Em uma série de discursos proferidos no final da década de 1970, o almirante Emilio Massera apontava os motivos que teriam levado ao golpe militar que depôs Isabelita Perón da presidência da Argentina: “Durante os últimos trinta anos vem se desenvolvendo uma verdadeira guerra mundial, uma guerra que tem como campo de batalha predileto o espírito do homem”. Segundo esse integrante da Junta Militar ditatorial, um “ciclone quieto e sutil” havia se “deslizado pela emoção e pelo pensamento”, destruindo primeiro a “nitidez”: “Apodrecidos os limites das coisas, uma pesada neblina foi-se estendendo sobre os núcleos vitais de nosso universo”. Devido à “força subversiva (…) [da] explosão comunicadora”, o “homem” deixou o lugar de protagonista, sendo substituído nesse papel pela “projeção do homem”: “as imagens começaram a dominar-nos e começaram a modificar-nos. (…) A imagem se independiza do modelo humano e paulatinamente começa a ser ela mesma o modelo social”. Para Massera, Marx, Freud e Einstein teriam dado as bases teóricas para a perda do sentido de verdade e totalidade e para a passagem do “homem racional” ao “homem sensorial”, passagem que se veria com mais nitidez nos jovens, que “se tornam indiferentes ao nosso mundo e começam a edificar seu universo privado (…), celebram seus ritos – a música, a roupa – com total indiferença, e buscam sempre identificações horizontais, desprezando toda relação vertical. Depois, alguns deles trocarão sua neutralidade, seu pacifismo abúlico, pelo estremecimento da fé terrorista, derivação previsível de uma escalada sensorial de itinerário nítido, que começa com uma concepção tão arbitrariamente sacralizadora do amor (…) [e] Prossegue com o amor promíscuo, se prolonga nas drogas alucinógenas e na ruptura dos últimos laços com a realidade objetiva comum e desemboca por fim na morte, (…) justificada pela redenção social que alguns manipuladores (…) lhes forneceram para que coroem com uma ideologia o que foi uma carreira enlouquecedora rumo a mais exasperada exaltação dos sentidos”. Desse modo, a “guerra espiritual” não teria poupado nem as “palavras, [que] infiéis aos seus significados, perturbavam o raciocínio”: “Quando se vive em um mundo como este”, concluía Massera, “em que os inimigos se mimetizam reciprocamente até confundir suas identidades; quando o esquema selvagem impregna as consciências, quando o simples fato de existir é um ato de provocação, então chegou a hora de dizer basta a esta abjeta Torre de Babel”[1]. Instaurada para fazer voltar a “nitidez”, a “Verdade” e o “homem racional”, para fazer com que as palavras voltassem a ter sentido, a ditadura argentina terminou criando, nas palavras de Marguerite Feitlowitz, um “léxico do terror”[2], do qual o vocábulo mais conhecido é o termo “desaparecido”, eufemismo – a figura de linguagem preferida do poder e dos burocratas – para os mortos e sequestrados em campos de concentração pelo regime militar argentino.

2. Os discursos de Emilio Massera são paradigmáticos do que estava em jogo nas ditaduras da América Latina nos anos 60 e 70: não se tratava apenas de derrotar um modelo econômico, uma ideologia, a emergência de setores sociais marginalizados e de forças políticas reprimidas por um século. Tratava-se também de buscar uma regulação dos corpos, dos costumes, das palavras, das imagens, e do futuro (na figura dos jovens). Para tanto, foi preciso não só o terror e a tortura, mas também a censura[3].

Na ditadura brasileira instalada em 1964, a censura “ampla, geral e irrestrita” (para fazer uso do lema da nossa malfadada Anistia) foi autorizada pelo AI-5. O artigo 9º desse ato que decretou o “golpe dentro do golpe” permitia ao Presidente fazer uso, “se necessário à defesa da Revolução”, de duas medidas do “estado de sítio”, sem precisar declará-lo: a “suspensão da liberdade de reunião e de associação” e a “censura de correspondência, da imprensa, das telecomunicações e diversões públicas”[4]. A exceção se normalizava. Mas o que os censores censuravam?

Uma rápida olhada na lista de livros proibidos entre 1974 e 1978 nos fornece uma dimensão da polivalência dos tentáculos censores[5]. Por um lado, encontramos, como era de se esperar, títulos de políticos e pensadores marxistas, como Lênin, Trotsky, Mao, Che Guevara, Frantz Fanon, Althusser, bem como livros sobre guerrilha, a revolução cubana e regimes socialistas, além de análises de intelectuais brasileiros ligados à esquerda, tais como Nelson Werneck Sodré, Darcy Ribeiro, Caio Prado Jr., e o então esquerdista José Serra. Todavia, é preciso notar, por outro lado, que a imensa maioria de livros era censurada para preservar “a moral e os bons costumes”: assim, foram proibidos, entre muitos outros, títulos como Adelaide, uma enfermeira sensual, Como aumentar a satisfação sexual, Copa mundial do sexo, os livros da série Emanuelle, o Dicionário de palavrões e termos afins, a Filosofia de alcova ou escola de libertinagem, do Marquês de Sade, o Guia para o amor sensual, o cômico Há muito não tenho relações com o leitão, e outros 13 livros cujo título se inicia com a palavra “sexo”. Além disso, na lista encontramos até autores renegados pela esquerda ortodoxa, como Lévi-Strauss, e também títulos nazi-facistas, como Mein Kampf, de Hitler, e os Protocolos dos Sábios de Sião, patético relato forjado da conspiração judia para dominar o mundo. Somando a isso a ficção científica Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e os contos e romances de Rubem Fonseca, à época diretor de uma multinacional e conhecido pelas suas ficções sobre a violência e criminalidade urbana, como entender essa compósita lista? 

Se passarmos à censura da imprensa, o quadro não fica mais claro. Havia os temas obviamente proibidos: o movimento estudantil, o movimento sindical, o movimento político de padres, as declarações políticas de cassados, e, em alguns casos, até a menção de nomes destes. Também notícias sobre alguns temas relacionados ao próprio regime (sucessão presidencial, construção da Transamazônica, a própria prática da censura) eram proibidas – e muitas vezes os jornais só sabiam da notícia quando chegava nas redações um “bilhetinho” censurando a sua publicação. Mas havia também censura que não dizia respeito ao conteúdo, mas à forma em que este era transmitido. Assim, proibia-se “a divulgação de notícias tendenciosas, vagas ou falsas”[6], e o uso de termos como “fonte fidedigna”, “pessoa ou político bem informado”, “fontes autorizadas da Presidência”, etc[7]. Os assaltos a bancos promovidos pela guerrilha por vezes podiam ser noticiados, desde que se “resumisse o mais possível e nas páginas internas dos jornais periódicos”[8]. Uma Recomendação para a imprensa escrita, falada e televisada ordenava “Não publicar manchetes ou títulos, que chamem a atenção do público, referentes a crimes, nem estampar fotografias que despertem a concupiscência ou atentem contra a moralidade da família brasileira, sejam obscenas ou deprimentes (…). É vedada a descrição minuciosa do modo de cometimento de delitos”[9].

Na censura ao teatro, houve também uma grande preocupação com a forma. É evidente que as peças mais “ideológicas” de Plínio Marcos, por exemplo, eram censuradas. Todavia, parece difícil entender como mesmo peças de teor político muito forte foram liberadas após algumas alterações na forma. É o caso de O rei da vela. A peça, escrita por Oswald de Andrade em 1933, quando seu autor militava nas fileiras comunistas, buscava satirizar as desventuras do capitalismo na periferia global[10]. Quando encenada a primeira vez pelo Teatro Oficina, já sob a vigência do regime de 1964[11], a peça sofreu com a censura. Primeiro, os órgãos censores determinaram o corte da cena em que o protagonista era empalado, e apreenderam um canhão de luz gigante que servia de pênis a um boneco, sob a justificativa de ser “material subversivo”. Mais tarde, a peça foi integralmente proibida. Contudo, feitas algumas alterações nos diálogos, que não modificavam a trama e o tom satírico, a censura autorizou que fosse levada aos palcos novamente. Assim, por exemplo, depois da censura, o termo “renovação” substituiu o mais carregado ideologicamente “revolução social”: mesmo que a ditadura houvesse se iniciado com a auto-intitulada “Revolução de 64”, a palavra “revolução” remetia de modo mais forte ao ideário de esquerda. Já “renovação” possui uma grande dose de ambigüidade no cenário político, podendo tanto remeter a um programa “progressista”, quanto a uma proposta “conservadora” – e o próprio partido de apoio ao regime militar se chamava Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Mas maioria das alterações visava retirar quaisquer referências diretas a sujeitos, passando-as ao impessoal. Assim, “A polícia me perseguiria” deu lugar a “Eles me perseguiriam”. Depois da censura, a guerra “contra a Rússia” se tornou uma guerra “contra eles”. O caráter conflitual e político das relações sociais também se esfumou: “uma multidão de trabalhadores para nos dar a nota” se transformou em “uma multidão para nos ajudar”; “algum comunista morto num comício” se converteu em “alguém morto num comício”. O que se deve sublinhar novamente é que, no contexto da peça, tais alterações não escondem o que apagam formalmente. Isto fica mais evidente quando se percebe que o estatuto de colônia econômica do Brasil não foi omitido pela censura, que fez questão, apenas, de apagar os nomes dados aos imperialistas: “Os ingleses e os americanos temem por nós” passou a ser “Todos temem por nós”. Todavia, o personagem chamado “O Americano”, ou “Mr. Jones”, não foi cortado da peça; ao contrário, mesmo com a censura, continua controlando as peripécias dos capitalistas brasileiros e continua cabendo a ele a última frase: “Good business!” Uma alteração, destarte, é sintomática do procedimento censório: a substituição de “um tostão de cada morto nacional” por “um tostão de cada um que se vai[12]: uma eufemização. Nas palavras do diretor do Oficina: “Eles [os censores brasileiros responsáveis pelas alterações a’O rei da vela] reescreveram algumas palavras do texto, colocando palavras mais fracas. Fizeram igual ao que acontece na União Soviética, onde os textos são alterados”[13].

A preocupação excessiva com a forma não é uma excrescência da nossa ditadura, mas parte essencial do modus operandi de sua prática censória. De fato, é conhecida a obsessão da censura por cortar palavrões – por vezes, os artistas incluíam palavrões a mais, para garantir que alguns passassem pelo crivo –, ou substituí-los (“foda-se” por “dane-se”, por exemplo). A atenção aos significantes às vezes beirava ao absurdo, como na substituição de “lavagem” por “enema” em uma peça, ou na supressão de “eczema” em outra[14]. Não foi à toa, portanto, que Cristina Costa tenha argumentado que “A negociação pelas palavras é a moeda do processo censório”[15]. Como entender essa preocupação da censura com a forma para além do conteúdo, com o significante para além do significado? Como entender a cotação dessa moeda?

3. O primeiro passo pra buscar uma compreensão mais adequeada da censura é, nas palavras de Raul Mordenti, deixar de encarar a sua história como se fosse uma história ideológica, do tipo “a eterna luta entre a liberdade (…) e o autoritarismo”, e vê-la como a história de determinadas “tecnologias”, buscando entender “quem autoriza quem a pensar, escrever, publicar, ler e através de quais dispositivos”[16]. Por isso, não podemos ver nos censores uns brutamontes iletrados, arautos do obscurantismo; ao contrário, devemos procurar entender que, mesmo difusamente, há critérios onde só se costumava ver arbitrariedade. O aparato censor brasileiro abrigou grandes escritores como Machado de Assis[17] e Vinícius de Moraes – e mesmo durante a ditadura exigia-se o grau superior para o cargo de censor. Aliás, até o século XVIII, censura e crítica eram consideradas palavras sinônimas, parentesco perceptível ainda em certos termos da crítica literária, como “resenha”, que provém de recensio, re-censear[18]. Mas, além disso, há sempre um discurso do poder que ampara a prática da censura, deixando entrever nela, segundo Alessandro Fontana, uma determinada “filosofia da linguagem”[19].

Um conceito utilizado pelo regime militar permite entender melhor a “filosofia da linguagem” que havia por trás de sua prática censória: trata-se da idéia da “guerra psicológica adversa”. Era com base nela que muitas censuras eram realizadas. Por exemplo, na década de 1970, uma peça do Teatro Oficina criou uma polêmica entre a Polícia Federal de São Paulo, que queria censurar a peça, e a Polícia Federal de Brasília, que queria estudar a “aplicação de técnicas de hipnotismo do público”, as quais o grupo teria supostamente aprendido na China. E mais tarde, os integrantes do Oficina foram, de fato, presos por praticar “subversão por hipnotismo”[20].

As três Leis de Segurança Nacional promulgadas pela ditadura de 1964 (a de 67, a de 69 e a de 78) conceituaram a “guerra psicológica adversa” do seguinte modo: “o emprego da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais”, uma tradução literal da definição utilizada pelo Departamento de Estado dos EUA. O AI-14 chegou até mesmo a prever a possibilidade de “pena de morte, de prisão perpétua, [e] de banimento”, para os “atos de guerra psicológica adversa (…) que (…) mantém [o país] em clima de intranqüilidade e agitação”. O que estava em jogo na “guerra psicológica” pode ser compreendido no confronto textual entre as Leis de Segurança Nacional do regime de 1964 e aquelas que lhes são anteriores e posteriores. Em todas, proíbe-se propaganda de guerra ou de meios violentos visando subverter ou alterar a “ordem política ou social”. Todavia, só nas Leis de Segurança Nacional do regime de 1964 não encontramos a cláusula que permite a exposição, o debate ou a crítica de doutrinas. Poderíamos dizer que é no lugar desta cláusula excludente que aparece a “guerra psicológica”, ausente nas demais Leis de Segurança Nacional. A “mera exposição” deixa de ser encarada como “mera exposição” para se tornar também propaganda. A linguagem não é vista como uma ferramenta de comunicação racional, mas como veículo de propagação de efeitos. A atenção se volta não só para o que é enunciado, mas para o modo em que é enunciado. De algum modo, o discurso produzido pela ditadura repetia aquela verdade enunciada por McLuhan: “o meio é a mensagem”.

A centralidade da “guerra psicológica adversa” é visível também na última reunião do Conselho de Segurança Nacional antes da que decidiu pela decretação do AI-5. A reunião discutiu o Conceito Estratégico Nacional, documento cuja importância já foi ressaltada por Carlos Fico[21] e que pretendia dar as diretrizes da ditadura e apontar as ameaças a ela, que eram chamadas de “Pressões Dominantes”. É interessante notar o que Emílio Garrastazu Médici, futuro presidente e à época chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), argumentou a respeito da “Pressão Comunista”: “A política governamental”, disse ele na reunião, vinha “consegui[n]do controlar de maneira efetiva o sentido ideológico dessa pressão”, mas ainda carecia do “estabelecimento de uma estratégia adequada para enfrentar os novos processos da Guerra Revolucionária Mundial conduzida pelo Movimento Comunista Internacional (…) que esconde seu caráter ideológico e objetiva, basicamente, a subversão”. Ou seja, a “Pressão comunista” em si não representava perigo, mas poderia se aproveitar dos efeitos das outras “pressões” (“sócio-econômica”, “política nacional”, “econômica”, etc.). Isso é perceptível já pelo vocabulário utilizado no Conceito e na reunião que o debateu: a “Pressão comunista” “estimula”, “deforma”, “explora racionalmente as vulnerabilidades”, cria um “clima perigosamente emocional”, etc. Tal vocabulário, já presente na definição da “guerra psicológica” pelas Leis de Segurança Nacional do regime militar, remete a uma lógica sensorial, corporal, de contágio, e afasta-se do vocabulário ligado à ideologia e à consciência (convencer, enganar, etc.). Não havia, aos olhos do regime, o perigo do “comunismo” ideologicamente conscientizar as massas, mas sim o de criar um clima perigosamente subversivo[22]. Daí que, para Médici, a “Pressão Comunista” fosse “responsável pela guerra psicológica desencadeada sobre o alvo mais sensível da estratégia defensiva democrática, que é a opinião pública (…) o que talvez torne” – eis o pulo do gato – “impositiva a revisão do amplo conceito de liberdades democráticas, para limitá-las dentro de faixas definidas, considerando os magnos interesses da Segurança Nacional”. Estava aberto o caminho para o AI-5, instrumento autorizador da censura, que era a principal arma da ditadura na “guerra psicológica” pela opinião pública.

4. A idéia de “guerra psicológica” como base da prática censória permite desfazer um mal-entendido comum entre aqueles que se debruçam sobre o assunto: a separação entre censura moral e censura política. De fato, havia um aparato totalmente dedicado à censura moral antes do regime de 1964. Porém, a ditadura não apenas somou uma censura política a essa censura moral; a ditadura também politizou a censura moral. Isso é visível em diversos discursos produzidos por partidários do regime, como um de Aurélio Campos em que ele afirma:“os ‘esquerdinhas festivos’ (…) objetivam é agredir o regime democrático, muito mais que defender a liberdade de pensamento. Entendem eles que instilando a desagregação nos costumes tradicionais”, através da “obscenidade” e da “pornografia” nas peças de teatro, “estarão preparando o Brasil para a Revolução social”[23]. A guerra psicológica também permite entender melhor a preocupação da censura com a forma, com o modo como os crimes aparecem nos jornais, com o modo como as palavras são pronunciadas em uma peça de teatro[24]. Na proibição do sensacionalismo, na substituição de certas palavras fortes por mais fracas ou genéricas, está em jogo uma tentativa de neutralizar os efeitos sensíveis, diminuir a sua intensidade, evitar que o dizer e o mostrar se propaguem para além da esfera em que são enunciados. Nesse sentido, o paradigma da censura é a eufemização da linguagem. Por eufemização não devemos entender apenas a substituição de palavras fortes por outras mais fracas, e sim aquilo que Benveniste chamou de “eufemia”: a força que retira da palavra a sua “realidade sêmica, portanto sua eficácia sêmica, tornando-a literalmente destituída de sentido”[25]. Assim, até mesmo a proibição ou os cortes são formas (extremas) de eufemização. Mas porque os modos de enunciação, os meios pelos quais algo é dito ou mostrado, a forma em que os discursos se dão a ver aparece como algo tão perigoso?

5. Toda formação social possui certo regime de “visibilidade” e de “dizibilidade”, certa maneira em que os corpos e sujeitos se relacionam, aquilo que Jacques Rancière chamou de “partilha do sensível”: a determinação do que pode ser visto e dito, e os modos como uns aparecem, falam e se relacionam com os outros[26]. Na Roma Antiga, a ordenação desse regime atendia pelo nome de censo, que não era a simples contagem da população e de seus bens, mas a ordenação das pessoas em classes, com respectivas obrigações políticas, jurídicas, econômicas, militares, morais, etc. Segundo Dumézil, o verbo latino censere provém etimologicamente da seguinte “concepção (…): situar (um homem, um ato, uma opinião etc.) em seu justo lugar hierárquico, com todas as conseqüências práticas dessa situação, e isso por meio de uma justa avaliação pública, um elogio ou uma censura solene”[27]. Aos censores, cabia zelar por esta ordem hierárquica, não punindo os crimes, mas censurando aqueles atos em que a pessoa não se mostrava digna de sua categoria, em que sua aparência pública – o que dizia, como dizia, seus hábitos, etc. – não condizia com sua classe. Tal “regime estético” não é expressão de um regime político-econômico, mas co-constitutivo a esse: para Plutarco, Sérvio Túlio, o rei que instituiu o censo, era considerado até mesmo o “instituidor de toda a organização política, da ordem eleitoral e da ordem militar, primeiro censor e vigia dos costumes e da virtude”.

Devemos lembrar que o resgate moderno da censura romana se dá justamente em uma época de mudança comportamental (logo após a Reforma), de mudança nos meios de comunicação (com a invenção da imprensa), de mudança no regime econômico (com o advento do mercantilismo), e de mudança no regime político (com a formação do moderno Estado). Ou seja, mudavam-se os modos políticos, econômicos, morais, culturais – criava-se uma nova “partilha do sensível” que era preciso constituir e defender. Coube a Jean Bodin, responsável pelo moderno conceito de soberania, iniciar tal resgate. O último d’Os seis livros sobre a república inicia-se justamente com um elogio da censura; nas suas palavras, “uma das melhores e mais excelentes medidas que já se introduziu em qualquer Estado”. A censura, para Bodin, visava não punir os crimes políticos, como a sedição ou a conspiração, tarefa para os juízes, mas aqueles “detestáveis vícios que envenenam todo o corpo político [e] que não podem ser punidos nos tribunais”, como a bebedeira, o jogo, a vagabundagem, ou seja, condutas morais, modos de se portar, que poderiam corromper os “bons cidadãos pelos seus feitos e seu exemplo”[28], e, assim, minando a autoridade do Estado, produzir sedições e revoltas. Portanto, desde o seu renascimento moderno, a censura é, ao mesmo tempo e indissociavelmente, moral e política: o vocabulário usado para definir a esfera de atuação da censura já atesta isso – “costumes” e “hábitos” não indicam apenas práticas consagradas pela tradição, mas também vestimentas, formas, modos em que o sujeito se dá a ver, e, que, pela imitação, pelo contágio, podem se espalhar e ameaçar a constituição política. Em todo o discurso da moderna filosofia política sobre a censura, de Locke a De Lolme, de Montesquieu a Rousseau[29], são sempre essas características que aparecem: existe um campo constituído pelos modos como os sujeitos conduzem sua vida, aparecem e se relacionam uns aos outros; esses modos não necessariamente constituem ações criminosas, mas podem propagar-se pelo exemplo, e provocar efeitos como as sedições – é nesse campo aonde a lei não chega que a censura deve agir[30]. Se, na Idade Média, como argumenta Emanuele Coccia, o “poder espiritual” da Igreja considerava o pensamento uma práxis, uma ação, passível de sanção legal, de culpa[31], na modernidade, o pensamento é considerado uma produção[32], e, enquanto tal, livre, desde que não cause efeitos indesejados[33]. Este é o sentido das cláusulas que acompanham o moderno direito à liberdade de expressão, direito que, nos documentos político-jurídicos, sempre aparece seguido de formas de controlar possíveis efeitos da expressão, como o direito de resposta ou a vedação do anonimato (a qual remete a resoluções da Igreja católica referente à censura de livros, a saber, ao Index)[34]. Por isso também que, logo nos primórdios da modernidade, a “intenção” do autor, aquilo que ele “pretendia dizer”, deixou de ser levada em consideração pelos censores na avaliação de livros – o que importa, para a censura, são os efeitos que o texto pode produzir[35].

É por isso que a arte é sempre uma ameaça ao poder: nela, o modo aparece enquanto tal, i.e., enquanto puro modo, modalidade, possibilidade. No teatro, por exemplo, o modo de falar ou agir de um personagem independe daquilo que o ator é. O ator não encena outros seres, encena outros modos de ser. É esse o motivo pelo qual os antigos romanos equiparavam os atores profissionais às prostitutas e os gladiadores, privando-os de cidadania: as três classes vendiam não só seus corpos, mas maneiras, encenando algo que não são – isto é, tendo como modo de ser próprio a encenação de outros modos de ser. Rousseau se amparou nessa exclusão romana dos atores para se voltar contra o teatro: o ator, para o filósofo, pode indiferentemente fazer o papel de um homem ou de uma mulher, da mesma maneira que pode encenar de modo belo péssimos costumes; o seu talento é “A arte de imitar, de adotar um caráter diferente do que se tem, de parecer diferente do que se é, de se apaixonar com serenidade, de dizer coisas diferentes das que se pensam com tanta naturalidade como se realmente fossem pensadas, e, enfim, de esquecer seu próprio lugar, de tanto tomar o de outro”[36]. Se o modo – de ser, de agir, de aparecer – não possui uma correlação necessária com uma base “real”, pode, por isso, ser apropriado por qualquer um, se propagar, produzir efeitos em todos. Nas palavras de Flávia Cera, “a ficção desnaturaliza a realidade”.

É a possibilidade de outro modo de agir contaminar as pessoas que justifica também a mais conhecida defesa da censura que o Ocidente conhece: o banimento dos poetas d’A república ideal de Platão. Nesse famoso episódio, Sócrates (o “patrono da literatura dirigida” e o “animador da censura”, nas palavras de Oswald de Andrade[37]) argumenta que a poesia tem o poder de lesar até mesmo os bons, pois os gregos, quando ouvem uma passagem poética intensa, “abandonam a si próprios e seguem simpaticamente” o personagem, se co-movem por ele, admirando como melhor poeta aquele que mais produz este efeito. Diante de uma aflição em suas próprias vidas, continua o filósofo, os gregos se orgulham de manter a calma, comportamento masculino, enquanto no teatro agem como mulheres. A poesia faz com que os homens se efeminem, ajam de um modo não natural, deixando-se levar pelas afecções que devem ser controladas, caso os homens queiram ser bons e felizes. O perigo, para Platão, era que o modo poético tivesse efeitos sobre o modo político: por isso, o filósofo, no tratado sobre as Leis, ligava o declínio ateniense ao que ele chamou de “teatrocracia”, o domínio do auditório: os poetas começaram a misturar os gêneros, acabando com a diferença entre a boa e a má música, ao que se seguiu a intromissão cada vez maior do público nas encenações, público já incapaz de distinguir o bom do ruim, e prepotente ao ponto de levar esta intromissão à política, criando, assim, a democracia.

6. Se voltarmos agora à censura durante a ditadura militar, talvez fique mais claro o sentido da “guerra psicológica” e da atenção dada pelos censores à forma. É evidente que não havia um grande conspirador chamado “Movimento Comunista Internacional” por trás da literatura pornográfica, das atuações do Teatro Oficina, ou dos diagramadores de jornais. Todavia, isso não quer dizer que certos fatores dos anos 1960 e 1970 não abalaram a “partilha do sensível” até então existente: a massificação da televisão, as teorias da informação, artistas que reelaboravam as vanguardas do começo do século, novos costumes, novas formas dos corpos se mostrarem e se relacionarem. Modificavam-se as imagens, os discursos e os modos pelos quais imagens e discursos afetavam a vida e os corpos. Ou seja, o “perigo” era que esses novos modos se propagassem, produzindo efeitos na esfera política. Quando o “justo lugar hierárquico” das pessoas, coisas e discursos é ameaçado, entra em cena a censura. Entre 1964 e 1968, nas palavras de Zé Celso Martinez Correa, “As revoluções cultural e política encaminhavam-se para se encontrar e para encontrar o povo”. Todavia, continua o diretor do Teatro Oficina, “a repressão dos anos 70 cindiu em três esse corpo social. De um lado, o povo arrochado; do outro, o revolucionário cultural que virou o desbundado, o drop-out que quase se coloniza pela contra-cultura americana; e finalmente, o político, isolado, sem frente popular ou cultural”[38]. Conhecemos bem o resultado de tanta censura e tortura: o isolamento da arte em uma esfera separada, a pasteurização do discurso jornalístico, o monopólio dos meios de comunicação. Cada campo da ação humana foi colocado em seu lugar hierárquico, impedindo-se o contágio com os demais. Na medida em que os modos que podem produzir efeitos que ameacem a “partilha do sensível” foram neutralizados, o aparelho censor perdeu sua necessidade de ser. Alain Badiou argumenta que hoje, “Convencido de controlar a superfície inteira do visível e do audível pelas leis comerciais da circulação e pelas leis democráticas da comunicação, o Império não censura mais nada”[39]. O objetivo de toda censura é esse: tornar-se auto-censura, prescindir de si mesma, pois a proibição, como já diziam John Milton e Karl Marx, cria o fetiche por aquilo que é proibido, torna famoso o que deveria ser infame[40]. Mas não nos enganemos: se hoje não existe um órgão censor, isto não quer dizer que a função censória deixou de existir – ela é inerente a toda “partilha do sensível”. Juízes e a mídia, cumprindo o antigo sonho de De Lolme de deixar à imprensa o “power of public censure”, exercem-na diariamente, demitindo colunistas que falam coisas indesejadas, proibindo temas, definindo o que pode ser dito e visto e os modos de dizer e de ver[41]. Ainda há discursos sediciosos que apontam para outra “partilha do sensível” – resta agora encontrar os modos perniciosos que façam tais discursos produzir efeitos e se propagar pela vida cotidiana.



* Texto apresentado no Seminário Direito e Ditadura, evento organizado pelo PET/Direito/UFSC e realizado em Florianópolis, entre os dias 25 a 29 de outubro de 2010.

** Doutor em Teoria Literária (CPGL/UFSC). Editor da Cultura e Barbárie (http://www.culturaebarbarie.org/) e do SOPRO (http://www.culturaebarbarie.org/sopro).

[1] MASSERA, Emilio E. El camino a la democracia. Caracas: El Cid editor, 1979. Foram citados trechos dos discursos “El ciclón quieto y sutil” (p. 47-51), pronunciado no Dia da Armada, em 1977; “Discurso en la Universidad del Salvador (Buenos Aires)” (p. 83-91); e “La iconolatria subversiva” (p. 69-78), proferido na Câmara Argentina de Anunciantes. As traduções ao português dessa e das demais citações no trabalho são minhas.

[2] FEITLOWITZ, Marguerite. A lexicon of terror: Argentina and the legacies of torture. Nova Iorque:OxfordUniversity Press, 1999.

[3] Se é verdade que, como diz Moses Finley, “Em uma sociedade que depende da comunicação verbal [como a antiga Atenas], o método mais eficaz para a censura, com exceção da pena de morte, é o da expulsão da comunidade” (FINLEY, Moses. A censura na antiguidade clássica. In: Democracia antiga e moderna. ed. revista. Tradução de Waldéa Barcellos e Sandra Bedran. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 173), a ditadura argentina conseguiu provar que o mesmo é possível em uma sociedade altamente letrada e dotada de meios de comunicação com os quais a Atenas clássica referida por Finley jamais sonhou: o assassinato e o seqüestro de opositores, aliados à intensa propaganda, provaram, na Argentina, que o famoso dito de Heine pode ser revertido: onde se queimam pessoas, acaba-se queimando livros. No artigo “Censura durante o regime autoritário”, Glaucio Ary Dillon Soares apresenta um gráfico que sobrepõe as curvas de progressão (e regressão) das ordens de censura, por um lado, e dos desaparecimentos de opositores, por outro, durante a ditadura militar brasileira. A semelhança é espantosa – e neste caso, o dito de Heine se confirma em sua forma original: “onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas”. Cf SOARES, Glaucio Ary Dillon. Censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 4, n. 10. São Paulo: junho de 1989. pp. 21-43.

[4] Essas medidas estavam previstas nas alíneas d e e do §2º do art. 152 da Constituição de 1967. O que o AI-5 autorizava era o uso delas fora ou independente do estado de sítio. O próprio regime revelou, no famoso julgamento sobre a censura da revista Opinião, que era esse o fundamento jurídico da censura pós-68. À época, até mesmo certos juristas não entenderam o amparo legal da censura, na medida em que o §2º art. 152 da Constituição se referia às medidas que estavam autorizadas no estado de sítio, o qual não havia sido formalmente decretado. Mas o pulo do gato do AI-5 consistia justamente em liberar juridicamente os poderes de exceção: através dele, o regime podia fazer uso dos poderes do estado de sítio fora do estado de sítio, julgando caso a caso a necessidade das medidas para a “defesa da Revolução”. Não era preciso decretar o estado de sítio, o AI-5 era a decretação do estado de sítio, a normalização da ditadura militar como exceção permanente. Sobre a “exceção permanente”, cf. AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione. Turim: Bollati Boringhieri, 2003.

[5] A lista aqui utilizada como referência está contida em SILVA, Deonísio da. Nos bastidores da censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64. 2. ed. Barueri: Manole, 2010. pp. 291-305, que está longe de ser definitiva. Apesar da censura a livros, filmes e peças de teatro ter sido bastante burocratizada, havia certa desorganização no tocante à competência da cada órgão (sobre isso, cf, por exemplo, CAROCHA, Maika Lois.  A censura musical durante o regime militar (1964-1985). História: questões e debates. n. 44. Curitiba: Editora UFPR, 2006. pp.198-200), o que dificulta um levantamento preciso. Some-se a isto o fato de que o número de pesquisas com os arquivos do aparato censor continua pequeno, ainda que esteja crescendo exponencialmente.

[6] Cf. KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda – jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo; FAPESP, 2004. p.108,118.

[7] Ibidem, p. 118

[8] Cf. FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar – espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. p.171

[9] Ibidem, p. 172

[10] Publicada em 1937, a peça era repleta de implementos formais – antiilusionismo, interpelação do público, intertextualidade, hibridismo de gêneros, metalinguagem (um dos personagens é O Ponto) – quando a tônica da época no Brasil era o teatro de costumes. Abelardo I, dono de uma indústria de velas e agiota, cuja fortuna foi construída à base do roubo e da corrupção, quer se casar com Heloísa (“de Lesbos”) para obter o status social da família oligárquica-latifundária desta (retratada com todos os tons da decadência). Tal aliança entre “Ordem e progresso” (para usar o lema positivista da bandeira de nosso país) conta com a aprovação de Mister Jones, O Americano, verdadeiro “controlador” dos empreendimentos de Abelardo I – cabe a ele até mesmo o “direito de pernada”, a noite de núpcias. Porém, na última hora, Abelardo I é traído por seu sócio/funcionário Abelardo II (caracterizado como “socialista”, numa clara crítica stalinista a toda forma de comunismo não-ortodoxo), que lhe arrebata criminosamente a fortuna e o casamento, pois “Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico!” – tudo sob as bênçãos d’O Americano, a quem cabe a última palavra da peça: “Oh! good business!”. O que está em jogo é um diagnóstico bem acabado da mercantilização do homem, como agudamente percebeu Graciliano Ramos, ou ainda, segundo Gonzalo Aguilar, “um instrumento de dissecação dos sujeitos e de seu desejo em una sociedade entregada ao automatismo da mercadoria” (AGUILAR, Gonzalo. Por una ciencia del vestigio errático Ensayos sobre la antropofagia de Oswald de Andrade. Seguido de La única ley del mundo, de Alexandre Nodari. Buenos Aires: Grumo, 2010. p. 73): o mesmo substituindo o mesmo incessantemente.

[11] A encenação da peça em 1967 consagrou o grupo do diretor Zé Celso de Martinez Corrêa, se tornando um marco do ambiente cultural ao qual se daria o nome de “Tropicalismo”. Assim, por exemplo, em seu depoimento, que consta nas “Opiniões do Público sobre o espetáculo [O Rei da Vela]”, datado de novembro de 1967, Caetano Veloso declarava que só compunha “depois de ter visto ‘O Rei da Vela’ (…) a coisa mais importante que eu vi. O Brasil”.

[12] Para um elenco maior das alterações textuais impostas pelos órgãos censores (ou negociados entre estes e o Teatro Oficina) à peça, cf. MAGALDI, Sábato. Teatro da ruptura: Oswald de Andrade. São Paulo: Global, 2004. pp. 102-108.

[13] Jornal Luz & Ação, s/d. p. 5. Sobre a censura nos regimes socialistas, é interessante notar que, em muitos casos, não havia órgãos explícitos de censura, mas sim de planejamento da atividade literária, de tal modo que seus integrantes, na medida em que planificavam a literatura da mesma maneira que se fazia com a economia, sentiam-se legitimados a sugerir (o que equivalia a impor) alterações. Cf DARNTON, Robert. O significado cultural da censura: a França de 1789 e a Alemanha Oriental de 1989. Tradução de Beatriz Rezende. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Ano 7, n. 18. São Paulo: fevereiro de 1992.

[14] Para mais exemplos, cf COSTA, Cristina. Censura em cena: teatro e censura no Brasil: Arquivo Miroel Silveira. São Paulo: EdUSP; FAPESP; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007, de onde extraímos os dois acima mencionados. Caetano Veloso sofreu com esse tipo de obsessão do aparato repressor pela forma, pelo significante. No seu livro Verdade Tropical, o músico tropicalista relembra uma conversa que travou, quando preso pela ditadura, com um capitão militar treinado nos EUA e que citava Freud e Marcuse: “[O capitão] Referiu-se a algumas declarações minhas à imprensa em que a palavra desestruturar aparecia, e, usando-a como palavra-chave, ele denunciava o insidioso poder subversivo do nosso trabalho.  Dizia entender claramente que o que Gil e eu fazíamos era muito mais perigoso do que o que faziam os artistas de protesto explícito e engajamento ostensivo” (VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 393).

[15] COSTA, Cristina. Op. cit., p.  247.

[16] MORDENTI, Raul. Riflessioni sul concetto di “censura” (a partire dalla controriforma). In: GOLDONI, Annalisa; MARTINEZ, Carlo (orgs.). Le lettere rubate: forme, funzioni e ragioni della censura. Nápoles: Liguori Editore, 2001. p. 33.

[17]  Para uma análise dos pareceres de Machado de Assis (em confronto com as dos outros pareceristas) no Conservatório Dramático Brasileiro, cf. SILVA, Alexandre. O escravo que Machado de Assis censurou & outros pareceres do Conservatório Dramático Brasileiro. Versão enviada pelo autor; no prelo para publicação pela Afro-Hispanic Review.

[18] Não só dicionários, mas até mesmo a Encyclopédie ressaltava a semelhança: no verbete dedicado a Critique, isto é destacado: “Crítica se aplica às obras literárias; censura às obras teológicas, ou às proposições de doutrina, ou aos costumes”.

[19] Fontana, Alessandro. Censura. Tradução de António Barbosa. Enciclopédia Einaudi. v. 23 (Inconsciente – Normal/anormal). Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1992. p. 100-101.

[20] Cf. MARTINEZ CORRÊA, José Celso. Primeiro ato: cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974). Seleção, organização e notas de Ana Helena Camargo de Staal. São Paulo: Ed. 34, 1998. p. 324. Em 1974, os integrantes do Teatro Oficina foram presos também por tráfico de drogas. O jornal Notícias Populares, de 22 de abril daquele ano, noticiou a prisão com a manchete: “Artistas presos no embalo da ‘boleta’ – Teatro Oficina era o ‘QG’ dos tóxicos”. Há inúmeros outros exemplos de censura e/ou perseguição motivados pela “guerra psicológica adversa” (entre as quais, a já mencionada prisão de Caetano). Algumas, hoje, parecem cômicas, como essas relatadas por Carlos Fico: “Em 1973, palavras de ordem da esquerda foram carimbadas em cédulas de 1 e 10 cruzeiros: para a comunidade de informações tratava-se ‘modificação sofisticada da propaganda adversa’. (…) A logomarca da 29ª Reunião da SBPC realçou as letras ‘PC’. Por isso, foi alvo de percuciente estudo por parte dos agentes de informações do Ministério da Justiça, que destacava: ‘A estimulação sensorial prescinde da compreensão imediata de seu conteúdo. A persistência de uma estimulação, mesmo não compreendida imediatamente, predispõe a mente humana para uma rápida e eficaz compreensão da mensagem, quando ‘desvendada’. Sob esse ponto de vista, a publicação do logotipo da SBPC se caracteriza, nitidamente, como propaganda subliminar do Partido Comunista’” (FICO, Carlos. Op. cit., p. 73).

[21] Cf. FICO, Carlos. Op. cit., p. 78-79. A íntegra do esboço do Conceito Estratégico Nacional, bem como da ata da reunião do Conselho de Segurança Nacional que o discutiu, em 26 de agosto de 1968, pode ser lida no site do Arquivo Nacional (http://www.arquivonacional.gov.br).

[22] A noção de “guerra psicológica” foi amplamente utilizada no contexto da guerra fria. Esta inter-relação entre guerra fria e guerra psicológica fica visível em algumas opiniões dadas na reunião do CSN de que estamos tratando. Havia um claro conhecimento de que a possibilidade da Destruição Mútua Assegurada (MAD) entre EUA e URSS implicava um novo “Tratado de Tordesilhas” (a expressão é de José de  Magalhães Pinto, do Itamaraty, e mais conhecido por sua oposição ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear), no qual a guerra global entre os dois blocos não tinha a menor chance de acontecer. Desta maneira, na sua intervenção, o Ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva sugeria que se acrescentassem, entre as “Pressões Dominantes”, a “Pressão da Guerra Psicológica”, que seria também a “Pressão da Guerra Revolucionária”, pois “Embora do contexto se infiram essas pressões, têm elas hoje tal importância, que não devem deixar de ser referidas. Já que, em virtude da bomba atômica, a guerra convencional está sendo afastada, sobre nós agem todos os elementos, através dessas pressões psicológicas e revolucionárias”.

[23] Citado em MARTINEZ CORRÊA, José Celso. Op. cit., p. 123. Esse tipo de discurso, por mais obtuso que pareça retrospectivamente, era comum à época. Drogas e sexo misturavam-se à subversão comunista. Veja-se esses três exemplos levantados por Fico (além da prisão dos integrantes do Oficina mencionado acima): “ [1]‘o uso da droga se constitui num degrau da subversão, face à degradação moral a que conduz o viciado’ (…)  [2] ‘a toxicomania não pode deixar de ser encarada, também, como a mais sutil e sinistra arma – do variado arsenal – do movimento comunista internacional, empregada cada vez em maior escala, em suas contínuas e quase sempre clandestinas atividades em busca do domínio do mundo’ (…) [3] ‘o baixo nível sócio-econômico [e outras razões] fecham um círculo vicioso de prostituição, de vício e da prática sexual aberta que, fatalmente, levam à indiferença, abrindo caminho à própria subversão’” (FICO, Carlos. Op. cit., p. 187-188). Devemos notar que esse discurso era (re)produzido também pela sociedade: havia um desejo pela censura – e pela repressão em sentido mais amplo – por grande parte da população. Salim Miguel costuma insistir que o golpe de 1964 não foi puramente militar, mas civil-militar. Parte da “sociedade civil” criou as condições da deposição de João Goulart e apoiou o novo regime. O Estado de S. Paulo até hoje considera o golpe de 64 um ato em defesa da democracia, ainda que discorde dos rumos que o regime tomou. Beatriz Kushnir demonstrou como a Folha da Tarde atuou no front do regime, com jornalistas servindo como Cães de guarda. Mas até mesmo indivíduos isolados escreviam para os censores pedindo mais rigor, e – o que nos interessa mais aqui – assinalando o entrelaçamento entre vício moral e subversão, corrupção moral e corrupção política. Quatro exemplos de cartas à censura nesse sentido: 1) “o comunismo começa não é pela subversão política. Primeiro, ele deteriora as forças morais, para que, enfraquecidas estas, possa dar o seu golpe assassino”; 2) “vivemos uma ‘guerra total, global e permanente’, e o inimigo se vale do recurso da corrupção dos costumes para desmoralizar a juventude do país e tornar o Brasil um país sem moral e respeito”; 3) “Essa é a tática dos inimigos da Pátria, solapar a família, corromper a juventude, disseminar o amor livre, a prostituição e toda sorte de degradação do povo. Feito isso, nada mais precisa ser feito para se dominar um País”; 4) “O estudante, antes normal, torna-se um viciado, escravo, nervoso, excitado sexual, descuidado no vestuário ou ‘hippie’, pois enfraquece o sistema nervoso por tanta excitação contínua em acordes dissonantes e sem emoção, pois nós todos temos que ter uma válvula de escape” (FICO, Carlos. “Prezada censura”: cartas ao regime militar. Topoi – Revista de História (UFRJ). n. 5. Rio de Janeiro: dezembro de 2002. p. 261, 272).

[24] Aqui é interessante mencionar o caso da censura a Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, de Caio Fernando Abreu, autor geralmente associado à contracultura. A peça encena a noite de um grupo de jovens “alternativos” e desabrigados que buscam refúgio numa casa abandonada. Nela, não há menção explícita ao regime militar. Pelo contrário, a hipótese de um holocausto e do fim do mundo que aparece na peça é fruto do devaneio dos personagens – causado pelo consumo de drogas. Todavia, a cena final parece recriar o clima instalado pela ditadura: amanhecendo, ouve-se batidas na porta da casa, e um dos personagens, o mais paranóico, acredita ser a polícia; os demais, alucinados, começam a se assustar; as batidas continuam e o autor sugere que “a peça só termine quando os atores e/ou a platéia estiverem cansados. Ou quando alguém bater na porta avisando que amanheceu e o teatro precisa ser fechado” (ABREU, Caio Fernando. Teatro completo. Organização de Luís Artur Nunes e Marcos Breda. Rio de Janeiro: Agir, 2009. p. 95). O clima psicológico de perseguição – ainda que causado pela paranóia e/ou delírio dos personagens – foi suficiente para que a peça fosse censurada.

[25] BENVENISTE, Émile. A blasfemia e a eufemia. In: Problemas de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et. al. Campinas: Pontes, 1989. p. 262.

[26] Cf. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental.org; Ed. 34, 2005.

[27] DUMÉZIL, Georges. Servius et la fortune. Essai sur la fonction sociale de Louange et de Blâme et sur les éléments indo-européens du cens romain. Paris: Gallimard, 1943.

[28] BODIN, Jean. Les six livres de la republique. Lyon: Jean de Tournes, 1579. (Livro VI, Cap. I).

[29] Cf., dos autores mencionados, especialmente o capítulo XXVIII (7-12) do segundo livro do Ensaio sobre o entendimento humano de Locke; o capítulo XII do segundo livro da Constituição da Inglaterra de De Lolme; o final do quinto livro d’O espírito das leis de Montesquieu; e o sétimo capítulo do livro quatro de Do contrato social de Rousseau.

[30] A expressão “aonde a lei não chega” integra uma formulação de Justo Lípsio, contemporâneo de Bodin, sobre a censura: “Et appello Censuram, animadversionem in mores aut luxus eos, qui legibus non arcentur”; sobre ela Lucia Bianchin notará que se trata de “uma definição sintética e eficaz, que constituirá um ponto firme nas sucessivas teorias sobre o Estado da primeira idade moderna” (BIANCHIN, Lucia. Dove non arriva la legge: dottrine della censura nella prima età moderna. Bolonha: Il Mulino, 2005. p. 235).

[31] Cf. COCCIA, Emanuele. Filosofía de la imaginación. Averroes y el averroísmo. Tradução ao espanhol de María Teresa D’Meza. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008. p. 383 e ss.

[32] A expressão “mercado das idéias” não tem sentido apenas metafórico. De fato, por vezes a equiparação das idéias ou da verdade a mercadorias parece somente uma figura da linguagem, como no caso da Areopagítica, de John Milton, em que o poeta britânico, ao falar do “prejuízo incalculável e [d]o dano que essa conspiração da censura nos causa”, afirma: “É mais grave do que a de um inimigo que nos impusesse um bloqueio marítimo de todas as nossas baías e portos estuários. Obstrui e retarda a importação da nossa mais rica mercadoria, a verdade” (MILTON, John. Areopagítica – discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra. Ed. bilíngüe. Prefácio e edição por Felipe Fortuna; tradução e notas por Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: TopBooks, 1999. p. 151; grifo nosso). Todavia, nos manifestos e petições pela liberdade de impressão, políticos e editores ressaltavam o caráter privado, mercantil, da atividade: assim, Benjamin Franklin, em sua Apologia dos Impressores, irá dizer que “o Negócio da Impressão tem principalmente a ver com as Opiniões dos Homens” (grifo nosso); e, em uma carta de 1763, Giulio Rucellai, jurista e político italiano, dirá que: “A imprensa não pode ser considerada senão como uma manufatura determinada unicamente pelo espírito do comércio. (…)  A base deste comércio é a liberdade” (apud LANDI, Sandro. Il governo delle opinioni: censura e formazione del consenso nella Toscana del Settecento. Bolonha: Il Mulino, 2000. p. 271). Jürgen Habermas demonstrou que a moderna esfera pública só pôde se formar a partir da mercantilização dos bens culturais, que, “como mercadorias, tornam-se, em princípio, acessíveis a todos”, o que acarreta “o não fechamento do público”: “todos (…) podiam, através do mercado, apropriar-se dos objetos em discussão. As questões discutíveis tornam-se gerais” (HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. 2. ed. Tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 52, 53). Por sua vez, Tocqueville, numa formulação famosa, associou a democracia ao que chamou de “Indústria das Letras” e “vendedores de idéias”: “A democracia não faz somente penetrar o gosto pelas letras nas classes industriais; introduz o espírito industrial nos domínios da literatura. Nas aristocracias, os leitores são difíceis e pouco numerosos; nas democracias, é menos difícil agradá-los e o seu número é prodigioso. Daí resulta que, entre os povos aristocráticos, não se deve esperar o êxito senão com imensos esforços, e que esses esforços, que podem dar muita glória, jamais poderiam proporcionar muito dinheiro; ao passo que, nas nações democráticas, um escritor pode gabar-se de obter, a baixo preço, um renome medíocre e uma grande fortuna. Não é necessário, para isso, que seja admirado; basta que seja apreciado. A multidão sempre crescente dos leitores e a necessidade contínua que têm do novo garantem o êxito de um livro que quase não estima. // Nas épocas democráticas, o público muitas vezes age com os autores como geralmente fazem os reis com seus cortesãos; enriquece-os e os despreza. Que mais precisam as almas venais que nascem nas cortes, ou que são dignas de nelas viver? // As literaturas democráticas sempre proliferam em autores que só percebem nas letras uma indústria e, embora possuam alguns grandes escritores, contam-se aos milhares os vendedores de idéias” (TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2. ed. Tradução e notas de Neil Ribeiro da Silva. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EdUSP, 1987. p. 359). Vilém Flusser chega a afirmar que “A tipografia pode ser compreendida como o modelo e o embrião da revolução industrial: informações não devem ser impressas apenas em livros, mas também em têxteis, metais e plásticos”, ou seja, que o livro impresso é a primeira mercadoria industrial, e seu paradigma (FLUSSER, Vilém. A escrita: há futuro para a escrita? Tradução de Murilo Jardelino da Costa. São Paulo: Annablume,  2010. p. 66).

[33] A liberdade de expressão nunca é total: basta lembrar o exemplo, comum nos manuais de Direito, da pessoa que grita “Fogo!” em um teatro lotado quando sabe que não há incêndio algum – ela não pode alegar estar exercendo a “liberdade de expressão”. Na jurisprudência americana, isso foi estabelecido pela diferenciação entre expression e conduct: a liberdade de expressão não cobre todas aquelas manifestações que conduzem a um efeito direto. Se a manifestação se configurar uma conduta, se levar à ação, sua legalidade dependerá da legalidade ou não da ação (na legislação brasileira, isso se reflete nos tipos penais da incitação ao crime).

[34] Diz o art. 11º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”. Por sua vez, diz o inciso IV do art. 5º da nossa atual Constituição: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; o inciso seguinte garante o direito de resposta. A responsabilização só é possível se for possível individuar o responsável, o autor – daí a vedação ao anonimato. Que o anonimato permita fugir do controle censório é atestado, em forma mitigada, pelo sigilo da fonte jornalística.  Nesse sentido, pode-se dizer que a singela ficha catalográfica, que identifica os dados da obra (autor, título, ano, editora), remete, como dissemos, a uma regra do Index da Igreja Católica (a de número 43 na última edição), que proíbe a publicação de livros que não exibam nome e sobrenome do autor e do editor, e o ano da publicação. A regra, por sua vez, remonta a uma Instructio do Papa Clemente VIII, datada da passagem do século XVI pro XVII, que obrigou os livros a exibirem nome, sobrenome, e país de publicação,  o que não era comum na medievalidade, que conheceu uma profusão de textos anônimos sobre os quais até hoje se debate a sua autoria.

[35] Aqui é paradigmático um caso inglês mencionado por Annabel Patterson: “quando a lei foi forçada a tomar conhecimento de um problema de interpretação literária, [n]o julgamento, de 1633, de William Prynne, acusado de produzir um libelo sedicioso, os juízes do caso afirmaram que o intenção autoral (a defesa que Collingbourne [advogado de Prynne] adotou) só valia até o ponto em que o livro permanecia na forma de um manuscrito sob o controle de seu autor” (PATTERSON, Annabel. Censorship and Interpretation. The conditions of writing and reading in early modern England. Madison: University of Winsconsin Press, 1991. p. 19). Cabe destacar, novamente, a equiparação dos impressos, e, portanto, da expressão objetivada, às mercadorias: o autor (ou o editor, ou ambos) é responsável exatamente como as empresas devem responder objetivamente, ou seja, sem levar em consideração a existência da intenção de lesar, pelas suas mercadorias industriais.

[36] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a D’Alembert. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. p. 92.

[37] ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 2. ed. São Paulo: Globo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, 1995. p. 114. Adorno é ainda mais severo: “As notas que Platão distribui à arte em função da sua correspondência ou não com as virtudes militares da comunidade que ele confunde com a utopia, o seu rancor totalitário para com a decadência real ou odiosamente inventada, e também a sua aversão relativamente às mentiras dos poetas que, no entanto, nada mais são do que o caráter de aparência da arte, que ele chama a uma ordem existente – tudo isso macula o conceito de arte no mesmo instante em que ele é, pela primeira vez, refletido” (ADORNO, Theodor. Teoria estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 359).

[38] MARTINEZ CORRÊA, José Celso. Op. cit., p. 131

[39] BADIOU, Alain. Teses sobre a arte contemporânea. Tradução de Leonardo D’Ávila de Oliveira. Sopro. n. 14. Desterro [Florianópolis], julho de 2009. p. 1.

[40] Para Marx, a proibição de escritos se revela “uma má medida policial, porque não consegue o que quer, nem quer o que consegue” (MARX, Karl. Liberdade de imprensa. Tradução de Cláudia Schilling e José Fonseca. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 59); por sua vez, Milton afirma que a supressão de libelos sediciosos, “em vez de suprimir seitas e cismas, (…) os provoca e os investe de uma reputação” (MILTON, John. Op. cit., p. 141); do mesmo modo, Osman Lins irá, alegoricamente, comparar os efeitos da censura com aqueles da colonização: “Qualquer pessoa sabe o que sucede com os índios. Sem contato com as doenças da civilização, não têm defesas e sucumbem fatalmente ao contágio” (LINS, Osman. Para além dos altos muros: um aspecto da censura. In: Do Ideal e da Glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977. p. 168). Tal paradoxo foi magistralmente apresentado por Borges em sua História universal da infâmia, na qual os feitos mais infames, por sua própria infâmia, tornam seus executores famosos.

[41] O que possibilita esta reivindicação do poder censório pela imprensa é a associação entre crítica e censura, já mencionada acima. Tal associação deriva da polivalência da função censória na Roma Antiga: ao censor cabia não só vigiar pelos costumes, contar e distribuir a população em classes, passar em revista a lista de senadores, mas também aconselhar e criticar as ações do Senado (a melhor fonte para a compreensão do censor dentro do desenho político-jurídico romano continua sendo o capítulo – “Die Censur” – que Mommsen dedica a essa magistratura no segundo volume de seu Römisches Staatsrecht). Essa polivalência se reflete no verbo latino censere, do qual derivam os nossos vocábulos “censo” e “censura”, e que possui uma ampla gama de significados, entre os quais avaliar, julgar, aconselhar, discernir, e mesmo algo próximo a constituir. Tanto o De verborum significatione de Festus (“Censere nunc significat putare, nunc suadere, nunc decernere”), quanto o Digesto (“ ‘Censere’ est constituere et praecipere. unde etiam dicere solemus ‘censeo hoc facias’ et ‘semet  aliquid censuisse’. inde censoris nomen videtur esse tractum.”) registram esse vários sentidos. Para tentar achar um denominador comum aos diversos significados, Benveniste derivou o radical cens romano do *kens- indo-europeu, que não significaria só “proclamar solenemente” (como a maioria dos dicionários etimológicos atestam), mas também “afirmar com autoridade uma verdade (que faz lei)”: “Quem ‘fala’ assim está em posição soberana; ao declarar o que é, ele o fixa; ele enuncia solenemente o que se impõe, a verdade do fato ou do dever” (BENVENISTE, Émile. O vocabulário das instituições indo-europeias. v. II: Poder, Direito, Religião. Tradução de Denise Bottmann e Eleonora Botmann. Campinas: UNICAMP, 1995. p. 149). Neste sentido, quem exerce a censura profere um discurso autorizado. Por isso, pela função “crítica” do censor, houve quem reivindicasse à imprensa a função censória, caso, como dissemos, de De Lolme, que argumentava que cabia à “open press” o exercício do “power of censure” (cf. o capítulo “Liberty of Press” de sua Constituição da Inglaterra – DE LOLME, Jean Louis. The Constitution of England or an account of the English government in which it is compared both with the republican form of government and the other monarchies in Europe. Edição com biografia e notas por John MacGregor. Londres: Henry G. Bohn, 1853). Ainda no século XIX, Karl Marx dirá: “A verdadeira censura, baseada na própria essência da liberdade de imprensa, é a crítica; esta é a corte que a imprensa criou ao seu redor. A censura é a crítica como monopólio do governo”. O exercício da censura pelo Estado equivale à sua liberdade de imprensa, e, por isso, esta “liberdade de imprensa, como a que existe no lado oficial, e a própria censura também necessitam censura. E quem é o censor da imprensa do governo, exceto a imprensa do povo?” (MARX, Karl. Op. cit., p. 53.). Em jogo nesse texto do jovem Marx jornalista, não está a luta contra a censura, mas a luta pela censura, a luta para exercer a função controladora dos discursos e das imagens, dos costumes e da virtude, a luta para ser o discurso autorizado. É em referência a esse tipo de argumento que Max Weber, ao esboçar um programa de pesquisa para a “Sociologia da Imprensa”, elencará, em pleno século XX, a opinião de alguns publicistas de que “no Estado do futuro a incumbência da imprensa seria precisamente trazer à luz pública aqueles assuntos que não possam ser submetido aos tribunais de justiça; sua incumbência seria a de assumir o antigo papel de censor” (WEBER, Max. Sociologia da imprensa: um programa de pesquisa. Tradução de Encarnación Moya. Lua nova – revista de cultura e política. n. 55-56. São Paulo: Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 2002. p. 187). A reivindicação da imprensa de ser o “Quarto poder” (que já ameaçava há mais de um século tornar-se, nas palavras de Oscar Wilde, “realmente o único poder”, pois “Devorou os outros três” (WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Tradução de Heitor Ferreira da Costa. Porto Alegre: L&PM, 2003. p. 59)), um poder moderador e fiscalizador, um poder que se exerce não pelas leis e sentenças, mas na ausência delas, é, nesse sentido, uma reivindicação da função censória.