Ballet… “Ballet mécanique” e a mecânia de Léger – Jacqueline Kremer

Florianópolis, 21 de novembro de 2011.

Ballet… “Ballet mécanique” e a mecânica de Léger

Parte 1 – http://www.youtube.com/watch?v=vbzz9qt6VIA

Parte 2 – http://www.youtube.com/watch?v=l7OLXELNPVU

                                                                                  Por Jacqueline Kremer *

Quando pensamos no ballé, logo pensamos na sua complexidade de movimentos, que forçam os bailarinos a  explorarem o ar em saltos surpreendentes e misturam a força que dá grandeza a essa arte. Pensemos também nos vários fouettés e giros, sequências complicadas de passos e movimentos formando um conjunto humano perfeito.
No século XVII, o centro de expressão do ballé se deslocou, da Itália para a França e Pierre de Beuchamps elabora uma codificação da dança clássica, que levou ao “academismo” e é claro ao “engessamento”. Balthasar de Beaujoyeux define o ballé como “uma combinação geométrica de várias pessoas dançando juntas” e com isso vamos aproveitar para darmos um “salto” até a França em 1908, onde Jules-Fernand-Henri Léger conhece os escritores Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars, que lhe apresentam o cubismo, movimento ao qual adere, criando uma linguagem pessoal. Em 1910, Léger se sente atraído pela concepção inovadora de Cézanne,que afirmava poderem todas as figuras naturais se transformar em geométricas, ponto de partida do Cubismo. Léger faz parte do grupo de intelectuais que revolucionaram a arte francesa, como: Apollinaire, Max Jacob, Blaise Cendrars, Reverdy, André Salmon e Robert Delaunay.
Léger recebeu influências cubistas de Picasso e Braque, nas quais trabalhou a maior parte de sua carreira, mas em 1914,com o início da Primeira Guerra, foi recrutado para as trincheiras e após essa experiência de vida, lhe foi revelado possibilidades visuais das máquinas como ícones da modernidade, mesmo que seu estilo já estivesse predisposto nesta direção, a partir das formas cilíndricas e geométricas para idealizar um mundo mecanizado. Embora diferente dos futuristas, ele não venerava a  máquina como algo que substituiria o ser humano. Ele queria conciliar suas formas metálicas e regulares com as formas orgânicas, aproximar máquinas e homens. Depois dessa experiência, Léger desenvolve uma expressão própria de arte: a estética da máquina.  Mostra em suas obras a integração “homem-máquina”, repleto de vida plástica e colorida, partindo da precisão das máquinas e fazendo abstração do espaço repletos de  sinais ferroviários e trilhos que se alternam, em suas telas imensas, com palhaços, bailarinas e operário.
Para Giulio Carlo Argan, Léger “foi um admirador da pureza e simplicidade das imagens de Rousseau; é, e se mantém por toda a vida, um homem do povo, um trabalhador que acredita cegamente na ideologia socialista, a qual ingenuamente associa ao mito do progresso industrial. Para ele, os objetos simbólico-emblemáticos da civilização moderna são as engrenagens, as tubagens, as máquinas, os operários da fábrica: sua finalidade é decorar, isto é, qualificar figurativamente o ambiente da vida com os símbolos do trabalho da mesma maneira que, antigamente, decorava-se a igreja com os símbolos da fé”.
Seu período mecânico começa de fato em 1919, fascinado por motores, trilhos de trem e ambientes de fábricas. Desenha também cenários e figurinos para o “Ballet suédous”, de Rolf de Maré. A partir de 1920,com toda a modernidade desta época, predomina em sua obra a figura humana enquadrada por elementos industriais.
Em 1924, numa nova fase da sua vida, aventurou-se na sétima arte, neste momento, nasce o “Cinema de Vanguarda”, transmitindo seus princípios estéticos para o cinema e o seu otimismo ideológico. Produz seu primeiro curta metragem experimental, “un filme de Fernand Legérd”, “sans scenario”, com os artistas Man Ray (câmera), Fernand Léger e Dudlay Murphy (direção) e George Antheil (trilha sonora). Eles transformam o mundo em um “Balé mecânico”, mostram suas facetas cubistas e inovadoras . O filme tem aproximadamente 16 minutos e a música originalmente 30 e mais de trezentas cenas onde a ideia de balé surge associada à fluidez da performance humana. Quanto ao som, foram criados separadamente e depois unidos. É um filme sem narrativa, apenas máquinas e corpos humanos flutuando.  De acordo com Eugenio Vital ,os segmentos com séries de movimentos que se repetem, como aquele em que uma mulher sobe uma escada com um saco ao ombro,sendo esse  um dos primeiros exemplos de “loop printing”, uma técnica que  veio a tornar-se comum no cinema experimental dos anos 60.  E como diz na abertura “pareceu-nos interessante no momento em que na tela se ouve o alto-falante descartamos qualquer possibilidade de sonho” e descartam mesmo qualquer possibilidade de sonho, a começar pela formatação e o modo em que as cenas são organizadas é essencialmente cubista, os objetos são expostos aos pedaços, uma imagem cubista animada de um homem que “cumprimenta” tirando a cartola nos faz entrar nesse mundo ágil e geométrico proposto por Léger, com um som estridente de uma sirene quase ininterrupta e uma moça em movimento num balanço,ufa!… pausa para falar um pouquinho sobre esta atriz, a francesa Aline Ernestine Prin, ou, como é mais conhecida, Kiki de Montparnasse, musa de uma época: cantou, atuou, pintou, dançou e trabalhou como modelo para a nova geração de artistas que surgia no entre guerras,modelo de beleza registrada nos turbulentos anos 20 europeus. Ela é a garota fotografada por Man Ray no inesquecível “O Violino de Ingres”, de 1924. Tanto no balanço,ir e vir, como no sorriso, que se abre e fecha, quanto no perfil e giro sobre seu rosto, aparecem também as máquinas, engrenagens, reflexos da câmera numa bola suspensa, números, garrafas,chapéu, triângulos, círculos, pernas de um manequim de loja, frase e outras composições sempre em movimentos e transformações. Os objetos ganham vida, enquanto as aparições humanas são mecânicas. Os objetos são expostos rapidamente,repetidos diversas vezes e os elementos ganham movimento nesse “balé mecânico”, onde objetos e pessoas, sorrisos, elos, frases aparecem, se juntam e se separam, multiplicam-se na frenética dança de Léger.
No ensaio “A New Realism: the Object (its Plastic and Cinematic Graphic Value)”, publicado em 1926, Léger manifestou com clareza “a intenção de trazer à tona os valores do objeto. Relegando para segundo plano as noções tradicionais da narrativa cinematográfica, Léger centrou a sua atenção nos objetos do quotidiano, como um cachimbo, uma cadeira, uma máquina de escrever ou um chapéu. Ao descobrir e mostrar as afinidades entre o movimento e a dinâmica das formas, ‘Ballet Mécanique’ separa o aspecto visual dos objetos de sua função utilitária usualmente, remetendo a outras conexões inusitadas e psicodélicas”. Com isso Léger tem a liberdade para explorar e desenvolver inovações abstratas em torno das possibilidades plásticas dos objetos comuns.
Assim como o balé ocidental, ao não poder se inserir na vida real, foi buscar seus temas nos contos de fadas,assinalando o contraste entre a natureza e o sobrenatural, o sonho e o real, tanto que Diderot definiu na sua Enciclopédia como “o ballet é uma ação explicada pela dança”, e Léger como definiu Eugenio Vital “nos seus múltiplos segmentos e quadros fixos deparamos com inúmeras imagens caleidoscópicas em movimento e formas geométricas planas que remetem para o conceito gestáltico de figura e de fundo”. A dança de Léger são os movimentos repetitivos, que se transformam e voltam as mesmas imagens, cortadas ou não e criam uma metáfora cinematográfica entre homem e máquina, fundidos por ações meticulosas criadas mediante essa nova proposta de arte e percepção.
Quando Garaudy desabafa, “não seria um símbolo desse impasse do ballet do século XX o destino trágico de Nijinski, o mais extraordinário dos bailarinos clássicos? Ele consumiu sua vida na procura de algo significativo para dizer e acabou mergulhando, antes dos trinta anos, na loucura e na morte, por não ter podido expressar, nessa língua morta, a mensagem que transbordava de seu coração.” Já Léger, através desse seu filme abstrato, tinha a intenção de chocar a burguesia, explorar novos ângulos, iluminações, roteiros absurdos e inusitados. Os objetos do cotidiano como plano principal e seus movimentos, privilegiava-os, dava valores de protagonistas, fugia do tradicionalismo e das convenções. Através desse filme, possivelmente ele queria demonstrar os valores dos objetos como plano principal, fugindo das noções tradicionais. A ideia do balé de Léger surge associada à fluidez da performance humana, como se dançassem uma única melodia, intercalando o material, as formas, movimentos e transformações, tem máquinas, mas os corpos humanos flutuam, como no balé. Talvez esta ideia seja o “colar de pérolas” roubado (do balé tradicional), que aparece várias vezes na tela, onde lemos  “Roubado um colar de pérolas de 5 milhões” e pensamos: “é uma fortuna esse ‘ballet mecanic’” sem contar que nos liberou dos tutus, sapatilhas, do virtuosismo físico e da dança meramente como uma arte decorativa, possibilitou para uma época em que, principalmente, a Europa sofria as consequências da Primeira Guerra Mundial e todos acertavam seus passos pelo ritmo acelerado e frenético da vida moderna, os cinemas se enchiam, fascinados por essa nova arte, sinais de novos tempos, hábitos e experimentações!

(Conferir “Ballet Mécanique”, de Fernad Léger, na janela “Teatro na Praia”)

* Aluna do Curso de Artes Cênicas da UFSC.