Subversão da écfrase em “Primeira foto de Hitler” e “Fotografia de 11 de setembro”, de Wisława Szymborska – Rosalia Rita Evaldt Pirolli

Subversão da écfrase em “Primeira foto de Hitler” e “Fotografia de 11 de setembro”, de Wisława Szymborska

 

Rosalia Rita Evaldt Pirolli[1]

Universidade Federal do Paraná

 

 

  1. Sobre a poesia de Wisława Szymborska

Wisława Szymborska é uma poeta polonesa nascida em 1923, na cidade de Kórnik e falecida em 2012. Sua obra completa é compacta, sendo composta de treze volumes, publicados entre 1952 e 2012, totalizando aproximadamente trezentos poemas. Desse conjunto, os dois primeiros livros, “Por isso vivemos” (1952) e “Perguntas feitas a mim mesma” (1954), foram renegados posteriormente pela poeta devido a sua adesão, na época, à estética do socialismo real. Essa produção, segundo Siewierski (2000), era constituída sobretudo de “poemas de caráter didático e propagandista a serviço da ideologia [comunista] dominante.” (SIEWIERSKI, 2000, p. 207).

A produção de Szymborska, apesar de sua dimensão reduzida, manteve, segundo o poeta e crítico Stanisław Barańczak (1997, p. 387), uma extraordinária regularidade em relação à qualidade poética. Sua excelência foi reconhecida internacionalmente em 1996, ano em que foi laureada com o Prêmio Nobel de Literatura, pelo conjunto de sua obra. No Brasil, seus poemas já haviam sido traduzidos e publicados em coletâneas mistas, como “Quatro poetas poloneses” (1994) e, em revistas, como a “Poesia sempre” (2008). Em 2011, publicou-se a primeira antologia exclusiva da poeta, intitulada “Poemas”, pela Companhia da Letras; a tradução ficara a cargo da tradutora e pesquisadora Regina Przybycien. Cinco anos mais tarde, a mesma editora publicou um novo volume, mais robusto, sob o título “Um amor feliz”, também com tradução de Przybycien.

Apesar de ter começado a produzir seus poemas no início da década de 1950, a crítica costuma aproximar a produção de Szymborska, sobretudo a partir de seu terceiro livro, à da “Geração de 56”, grupo constituído principalmente por poetas poloneses nascidos no período entreguerras.

“Bastante heterogênea, a Geração de 56 recupera a vocação lírica da poesia, valoriza o sensível e o imaginário, toma o partido das coisas simples e sentimentos elementares. Ao celebrar o fim da sujeição da época stalinista, os poetas não só caem numa euforia surrealista, não só exploram os elementos de humor, escárnio e ironia, mas também julgam a sua contemporaneidade do ponto de vista de exigentes critérios éticos.” (SIEWIERSKI, 2000, p. 189).

 

Dessa forma, a produção dessa geração parece apontar para um maior distanciamento em relação às experimentações mais radicais da poesia moderna europeia, da poética do “l’art pour l’art”, tanto no contexto europeu, de modo geral, quanto nos desdobramentos das próprias vanguardas polonesas. Além disso, diferentemente da poesia produzida imediatamente após o final da Segunda Guerra Mundial, por poetas como Miłosz e Baczyński (KILANOWSKI, 2014[2]) – cuja maior preocupação consistia na reabilitação da linguagem poética em meio à ruína, elegendo-a como um espaço privilegiado de testemunho e de memória contra a barbárie –, a poesia da Geração de 56 já se mostra mais capaz de desenvolver uma reflexão distanciada e, talvez menos fatalista, a respeito da História, de seu curso, de sua inevitabilidade e de suas margens, embora ainda manifestem uma certa descrença em relação ao modelo de humanidade guiado pelo progresso e pela civilização. No entanto, segundo Przybycien (2005, p. 27), essa reflexão não desponta na obra da poeta polonesa pelo signo do trágico, mas se realiza através da simplicidade, do despojamento e do emprego de uma ironia constante e aguda. Segundo Siewierski (2000, p. 208), a obra de Szymborska, que pode ser definida pelo par paradoxal do encantamento e do desespero, é o espaço por excelência das possibilidades, do “mundo em revisão” (LIGĘZA, 2014).

Para explicar a produção poética desse mundo em aberto, Przybycien (2011, p. 13) emprega a formulação de Gerhard Bauer, que interpreta a obra de Szymborska como uma “arte da pergunta”, caracterizada por uma série de questionamentos de natureza filosófica que têm, por finalidade, desestabilizar, desestruturar e revisitar aquilo que é conhecido como real ou como verdadeiro. Segundo Barańczak (1991, p. 9), “o método de Szymborska consiste em tomar um elemento da experiência quotidiana e refratá-lo através do prisma de uma narrativa específica ou de um dispositivo estilístico para que o absurdo e a falta de sentido da realidade firmem compromisso, por assim dizer”. É através desse prisma, narrativo e estético, que a poeta revela sua perspectiva revisionista, empregando pontos de vista que não são convencionalmente explorados, iluminando a vida dos homens comuns, seja em relação aos assuntos mais banais do quotidiano, seja lançando um olhar incomum sobre a própria História – como é o caso dos poemas que iremos analisar neste artigo.

Na produção dessa poeta, é possível encontrar também uma parcela pequena, porém constante e significativa, de poemas dedicados a um importante intérprete do homem, da realidade e da História: a Arte. Na tradição poética, as obras de arte costumam ser o objeto por excelência do subgênero, ou técnica, conhecido por écfrase. De acordo com Verdonk (2005):

“[…] a écfrase literária […] pode ser compreendida de uma forma mais abrangente ou mais restrita. No sentido mais abrangente, trata-se de uma descrição detalhada de qualquer objeto ou cena, real ou imaginário, ou ainda de uma ideia abstrata, de uma imagem mental ou de uma emoção. No sentido mais restrito, a écfrase é associada à poesia que se endereça não apenas a obras de artes visuais, como pinturas, tapeçarias e escultura, mas também obras arquitetônicas ou ainda certos artefatos, tais como cálices, vasos ou armas – espadas, escudos ou peças de armadura.” (VERDONK, 2005, p. 2003).

 

Ainda segundo esse pesquisador, a poesia do século XX – de nomes como Sylvia Plath, William Carlos Williams, W. H. Auden e Czesław Miłosz – foi bastante prolífica na produção de poemas ecfrásticos. Na produção de Szymborska, “Dois macacos de Brugel”, de “Chamando por Yeti” (1957), “As mulheres de Rubens”, de “Sal” (1962) ou ainda “Vermeer”, de “Aqui” (2009), podem ser lidos, segundo Czermińska (2012, p. 188-189) a partir do conceito mais restrito de écfrase. Tratam-se de poemas que identificam claramente, logo no título, a qual obra ou conjunto de obras fazem referência, que brincam, na passagem entre o pictórico e a escrita, com as noções de imitação e de representação. Entretanto, de acordo com Czermińska (2012), mesmo nesses poemas, “a descrição precisa da imagem não tem um fim em si mesma, mas tem o objetivo de formular uma reflexão útil em relação à vitória do artista sobre o tempo” (CZERMIŃSKA, 2012, p. 193).

Além disso, ainda segundo Czermińska (2012), uma subversão importante dos poemas ecfrásticos de Szymborska é o aparecimento de várias vozes poéticas, organizadas de forma dialógica em poemas como “Mosaico bizantino”. Ao lado das descrições das cenas representadas na obra de arte, a poeta constrói pequenas narrativas ou dramatizações com as personagens que participam da imagem. Dessa forma, ela contribui para a renovação (ou subversão) desse subgênero poético, pois “podemos encontrar écfrases na obra de Szymborka não apenas em relação às formas tradicionais de arte erudita. Ela expandiu o uso da écfrase para fenômenos pertencentes à cultura moderna e tecnicista e que têm um caráter mais utilitário do que  artístico.” (CZERMIŃSKA, 2012, p. 197).

Neste artigo, a partir dos poemas “Primeira foto de Hitler” (“Pierwsza fotografia Hitlera”) e “Fotografia de 11 de setembro” (“Fotografia z 11 września”), tentaremos compreender como se dá essa subversão da écfrase em ambos.

 

 

  1. “Primeira foto de Hitler” e “Fotografia de 11 de setembro”, de Wisława Szymborska

 

Pode a imagem, na sua desesperançada aspiração a retratar as coisas no correr do tempo e na imensidão do espaço, evidenciar essa inominável incerteza – até hoje reconhecida apenas à poesia – que é a presença do ser?

Nelson Brissac Peixoto

 

Segundo Ligęza (2014), os poemas de Szymborska dialogam com “fascínio pelos universos próprios da arte […], criam mundos alternativos, talvez melhores e mais bonitos, mas marcados pela mancha da ruptura com o real” (LIGĘZA, 2014). Entretanto, “Primeira foto de Hitler” e “Fotografia de 11 de setembro” apontam, logo nos títulos, imediatamente para a crua realidade, para dois trágicos marcos históricos: a “Shoah” e o ataque ao conjunto do World Trade Center, nos Estados Unidos, em 2001. Antes de prosseguir com a análise, passemos à leitura do primeiro poema, acompanhado da fotografia a qual faz referência.

 

 


Primeira foto de Hitler

 

E quem é essa gracinha de tiptop?

É o Adolfinho, filho do casal Hitler!

Será que vai se tornar um doutor em direito?

Ou um tenor da ópera de Viena?

De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?

De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:

de um tipógrafo, padre, médico, mercador? Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?

Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório com a filha do prefeito?

 

Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,

quando chegou ao mundo um ano atrás,

não faltaram sinais na terra nem no céu:

gerânios na janela, um sol primaveril,

a música de um realejo no portão,

votos de um bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,

pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:

sonhar com uma pomba – sinal de boas-novas,

se for pega – vem uma visita muito esperada.

Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.

Fralda, babador, chupeta, chocalho,

o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,

parecido com os pais, com um gatinho no cesto,

com os bebês de todos os outros álbuns de família.

Não, não vai chorar agora,

o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.

 

Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunaun,

e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,

firmas sólidas, vizinhos honestos,

cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.

Não se o ouve o ladrar dos cães e nem os passos do destino.

Um professor de história afrouxa o colarinho

e boceja sobre os cadernos.

“Primeira foto de Hitler” é um poema do volume “Gente na ponte” (1987).  A representação das artes se encontra logo no título do volume: o poema homônimo remete à xilogravura japonesa do século XIX, inclusive evocando o nome do artista, Hiroshige Utagawa, em um dos versos. No entanto, como dito anteriormente, a autora raramente se detém na écfrase mais clássica, que se restringe à descrição da obra de arte. Nesse volume, a arte é um dos prismas pelos quais se pode ler a realidade, a existência humana e a própria História. Em “Primeira foto de Hitler”, o tema é uma fotografia que, no entanto, não é necessariamente artística; trata-se, sobretudo, do registro de um momento, de uma recordação que interessa à família e, talvez, ao próprio retratado. O primeiro retrato de uma criança era – e é possível que atualmente não mais – um acontecimento da esfera privada, guardando pouca relação com aquela história com H maiúsculo, dos grandes homens e grandes feitos. Além disso, fotografias de crianças costumam ser objetos de afeição, que evocam inocência, colorindo o presente com a nostalgia da infância. Nesse poema, de forma bastante violenta, Szymborska manipula essas percepções logo no título. A figura pública de Adolf Hitler é a que menos esperaríamos ver associada à ingenuidade infantil. Com o seu constante exercício de testar possibilidades pouco exploradas, a poeta vai além desse primeiro choque, lembrando-nos que até mesmo a mais desumanizada figura histórica já esteve em uma posição de fragilidade e de inocência absolutas.

Szymborska satura as três primeiras estrofes – de um total de quatro, com versos livres e brancos – com um tom extremamente afetivo, de um eu lírico que parece se dirigir, do modo mais carinhoso possível, ao bebê. O poema, tanto no original em polonês, quanto na tradução de Przybycien, é coalhado de diminutivos: “gracinha”, “Adolfinho”, “mãozinha”, “orelhinha”, “olhinho”, “pernocas”, “narizinho, “barriguinha”, “coraçãozinho”, “anjinho”. Acompanhando os diminutivos, há também elementos do universo de um recém-nascido: “fralda”, “babador”, “chupeta”, “chocalho”.  Além disso, não faltam referências às possibilidades em aberto desse novo indivíduo, sobretudo no primeiro parágrafo. A essa altura, o leitor, que está temporalmente distanciado da cena e que já conhece o curso da História, vai respondendo às perguntas do eu lírico. A “mãozinha”, a “orelhinha”, o “olhinho” e o “narizinho” pertencem ao filho dos Hitler – ele não será tipógrafo, padre, médico, mercador, mas um ditador genocida. Os bons augúrios, evocados na segunda estrofe – “sinais na terra nem no céu / gerânios na janela, um sol primaveril/ a música de um realejo no portão” – não significam absolutamente nada à luz dos acontecimentos; a natureza não se mistura com a história dos homens, permanecendo impassiva. Dessa forma, atritam-se, pois, a História dos grandes acontecimentos, conhecida pelo leitor, e a história privada desse indivíduo, ironicamente apresentada pelo eu lírico.

A terceira estrofe, além do título, menciona diretamente a fotografia. O eu lírico mostra os bastidores do retrato, e esse fotógrafo, anônimo, não pressente nenhuma ameaça, fazendo a fotografia como a de tantos outros bebês que enchem os álbuns de família. Na estrofe seguinte, o verso “Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau” localiza geograficamente a cena. Não se trata de um sonho ou de uma realidade alternativa, mas de um evento concreto, que pode ter acontecido em um ateliê fotográfico de uma cidade que realmente existe, Braunau, a cidade natal de Hitler. Assim como o bebê, com o futuro ainda todo pela frente, a cidade também não apresenta nenhuma mácula visível, apenas uma quotidianidade respeitável, representada pelo cheiro de pão e de sabão. Além dessa marca geográfica, esse mesmo verso também faz referência à rubrica dessa primeira foto de Adolf Hitler, que dificilmente aparece nas versões que circulam pelas mídias.

Figura 2 – Primeira foto de Hitler, publicada em livro

Fonte: Hoffmann, 1932

Enquanto o retrato é tirado e os pais sonham apenas com os melhores caminhos para aquela criança, “não se ouve o ladrar dos cães nem o passo do destino”. A tradução de Przybycien suaviza um pouco o verso, substituindo “wycia” por “ladrar”, ao invés de “uivo”, um substantivo mais acurado e que poderia carregar um pouco mais na tragicidade desse destino, que não se anuncia de antemão. O último par de versos acentua a quebra do clima pueril do poema.

No surdo decorrer da história, “um professor de história afrouxa o colarinho / e boceja sobre os cadernos”. Para esse trecho, há uma leitura possível – talvez a mais evidente – na qual localizamos o professor na mesma temporalidade da cena, pacífico, quase entediado, sem antever a barbárie que ocorrerá mais tarde. No entanto, Czermińska (2012) chama a atenção ainda para a possibilidade desse professor ser contemporâneo do leitor e assim “a voz de um narrador oculto, falando de uma perspectiva histórica distinta, desponta […] e já está familiarizado com as ações futuras do pequeno garoto […].” (CZERMIŃSKA, 2012, p. 199). Nesse segundo caso, a postura desinteressada do professor, representada pelo afrouxar do colarinho e pelo bocejo, apontam um desligamento entre passado e presente, remetendo a um abandono do exercício de memória e da vigilância para que esse passado não torne a se repetir.

Se esse poema trata, de maneira oblíqua, de um dos maiores acontecimentos históricos do século XX, por intermédio do retrato infantil, unindo as figuras irreconciliáveis do genocida e da criança, o poema seguinte, “Fotografia de 11 de setembro”[3], do livro “Instante” (2003), trata de um acontecimento histórico que marca, de forma trágica, o início do século XXI. A relação com a fotografia, nesse caso, também evidente e é marcada logo a partir do título.

 

Saltaram dos andares em chamas –

um, dois, alguns mais

acima, abaixo.

 

A fotografia os susteve em vida

e agora os mantém

sobre a terra em direção à terra.

 

Cada um ainda é um todo

com um rosto próprio

e o sangue bem escondido.

 

Há bastante tempo

para os cabelos se soltarem

e dos bolsos caírem

chaves, dinheiro trocado.

 

Ainda estão ao alcance do ar,

nos limites dos lugares

que acabaram de se abrir.

 

Só posso fazer duas coisas por eles –

descrever esse voo

e não acrescentar a última sentença.

 

Figura 3 – “Jumpers” do 11 de setembro

Fonte: Cobertura jornalística

Figura 4 – The Falling Man

Fonte: DREW, 2001.

 

Novamente, como fizera em “A primeira fotografia de Hitler”, Szymborska também trabalha nesse poema com o fato histórico, sob o prisma de uma narrativa específica. A poeta escolhe uma das cenas mais icônicas, que foi amplamente divulgada pela imprensa durante a cobertura do evento: o salto para a morte dos “jumpers” conforme foram chamados pela mídia norte-americana –, que podemos ver nas imagens anteriores. A Figura 4, feita pelo fotógrafo americano da “Associated Press”, Richard Drew, propõe esse outro olhar para o evento, deslocando o foco dos aviões e dos edifícios destruídos para a tragédia pessoal dos indivíduos envolvidos no acontecimento. Esse deslocamento proporcionado pela imagem e que redimensiona o sentido dos fatos, é de que se vale também Szymborska.

Seu título não deixa margem à dúvida, acionando imediatamente as imagens acondicionadas no imaginário do leitor a respeito do que aconteceu naquele dia. O poema posiciona sutilmente o edifício como plano de fundo a partir de sua própria estrutura, que pode remeter a uma torre em colapso: estrofes curtas, cinco delas com três versos e uma com quatro; os versos também são curtos – o mais longo, no original, tem apenas sete palavras. A quarta estrofe, com quatro versos, desestabiliza a estrutura até então regular do poema. Além disso, a impressão de queda e de fragmentação é reforçada pelos espaços em branco entre as estrofes. Tudo isso é mantido também na tradução de Przybycien, com um pequeno acréscimo de palavras em alguns versos, que não altera muito a silhueta criada pelo poema.

O eu lírico, assim como o fotógrafo, destaca o elemento humano da tragédia, delimitado pelo quadro que se desenha entre a primeira e última palavra do poema, “saltaram” e “sentença”, respectivamente. Do título, “Fotografia de 11 de setembro”, passamos, no primeiro verso, diretamente aos “jumpers”. Empregando, logo no início, o plural, o eu lírico também chama a atenção para aqueles indivíduos que não estão na fotografia célebre de Drew, aqueles cujas quedas não foram objeto de um olhar tão estetizante quanto a de “The Falling man”, mas que, de todo modo, compartilharam o mesmo destino. O breve intervalo de tempo entre o “salto” e a “sentença”, que se produziu efetivamente durante o acontecimento com essas centenas de indivíduos, é reproduzido igualmente na leitura, que não dura mais que poucos segundos.

O momento congelado, tanto pela fotografia quanto pelo poema, é uma sentença inexorável para o indivíduo retratado, contra a qual nada ou ninguém poderá intervir. Apesar de incontornável, o olhar do fotógrafo e do eu lírico demostram compaixão ao fixarem somente a trajetória, prolongando-a indefinidamente. O eu lírico, impotente, afirma, na última estrofe poder apenas “descrever esse voo/ e não acrescentar a última sentença” (SZYMBORSKA, 2016, p. 223) que, no entanto, já é conhecida. Nesses dois casos, oferece-se uma alternativa terrível, mas ainda assim mais piedosa e empática ao destino daquelas pessoas que, ao menos no corpo do poema, jamais tocarão o solo.

Entre o primeiro e o último verso, o poema dialoga diretamente com o momento fotográfico, com essa possibilidade quase fantasmagórica de fixar o tempo. O espaço da fotografia e do poema são intervalos nos quais é possível, de formas distintas, apreender e capturar a vida. O eu lírico, ciente do “pathos”, da gravidade da situação, escolhe reafirmar, nesse instante, a concretude e a vitalidade daquelas pessoas. Nesse momento, poético ou fotográfico, indefinidamente congelado, “cada um ainda é um todo / com um rosto próprio / e o sangue bem escondido” (SZYMBORSKA, 2016, p. 223), indivíduos que, há poucos minutos, conduziam suas vidas dentro da normalidade do quotidiano, com chaves e moedas no bolso, pegos de surpresa em suas jornadas de trabalho. Apesar da gravidade do tema, do peso simbólico da situação registrada, a linguagem empregada é leve, mas profundamente irônica, e repleta de elementos da vida quotidiana.

Nos dois poemas analisados, podemos perceber a presença de um eu lírico que cria um distanciamento, seja em relação às imagens que observa, seja em relação às cenas que narra. Esse “Single Observer”, mencionado por Barańczak (1991) como um tipo de eu lírico recorrente na poesia polonesa pós-guerra, é constituído por “um ponto de vista concreto e específico, que consiste em um círculo de observações dentro do alcance de um único participante ou testemunha.” (BARAŃCZAK, 1991, p. 6). A presença desse eu lírico, em diálogo ou em confronto com as fotografias dos poemas, é um dos elementos que apontam para aquilo que chamamos, em nosso título, de subversão da écfrase e que será tema de nossa última seção.

 

  1. Subversão da écfrase em “primeira foto de hitler” e “fotografia de 11 de setembro”

Nos poemas analisados nesse artigo, Szymborska subverte o conceito mais restrito de écfrase, tanto em relação ao tema, quanto à forma. As duas fotografias que estão nos títulos e que são representadas verbalmente nos poemas não são necessariamente obras de arte, sob um ponto de vista conservador sobre o que é arte. A primeira é o retrato de uma criança que não receberia nenhuma atenção especial, caso o retratado não fosse Adolf Hitler.

Figura 5 – Falsa fotografia do bebê Hitler

Fonte: Chicago Tribune

Essa fotografia se tornou pública no início da década de 1940, tendo sido publicada, na revista “Life”, para responder a uma outra imagem, manipulada, amplamente divulgada pela imprensa da época, sob a forma de um “hoax”, de um bebê mais “condizente” com a imagem do ditador (Figura 5). É perceptível a tentativa de desumanização do indivíduo desde o início de sua vida, procurando indícios que, contrariamente ao que diz o eu lírico no poema, pudessem justificar o que aconteceu mais tarde. A relação entre essa falsa imagem e a do genocida seria muito mais pacificadora do que a relação que se estabelece com a verdadeira fotografia infantil, objeto do poema de Szymborska. Aliás, é exatamente esse o exercício do eu lírico no poema; ele nos mostra que, naquele momento, era impossível apontar qualquer nexo entre passado e presente. A écfrase, no poema, vai muito além da descrição da imagem, catapultando o leitor, já familiarizado com a História, diretamente para aquela cena. Entretanto, testemunhando a cena, o leitor não é apresentado a um passado pacificado, mas é confrontado com a reiteração de um compromisso ético, mediado pela imagem, que impõe a necessidade de continuar questionando os fatos – ainda que eles não apontem para uma resposta satisfatória, definitiva.

O segundo poema procede de forma semelhante, em relação ao tema e à forma. Apesar de as imagens do 11 de setembro estarem associadas principalmente ao jornalismo, e não à arte, não faltaram interpretações artísticas, bastante polêmicas, do acontecimento – inclusive do que aconteceu com os “jumpers”. O fotógrafo americano Kerry Skarbakka, por exemplo, recriou, com um pano de fundo quotidiano e tirando completamente a contextualização histórica, as posições registradas dos “jumpers” pelos fotógrafos, durante suas quedas (Figura 6).

Figura 6 – “The Falling Man”, de Kerry Skarbakka

Fonte: The Guardian

Porém, apesar da leveza e da quotidianidade da linguagem nos poemas de Szymborska, esse não é o tom empregado pela poeta. O eu lírico, ao escolher uma fotografia desse evento – deixando de lado toda uma infinidade de registros em vídeo – está confiando no poder simbólico, tanto da poesia quanto da fotografia, de congelar o tempo. O aspecto mais importante do poema não é a descrição efetiva da fotografia, a realização da écfrase em si, a pura verbalização da imagem, mas sim a escolha ética desse momento em específico, da queda e dessas vidas indefinidamente em suspenso, em um ato carregado de compaixão e de empatia.

Dessa forma, podemos dizer que o eu lírico dos poemas de Szymborska encontra-se na confluência de linguagens – a fotográfica e a poética – e da representação, no sentido mais clássico, de mimese, mas também de um profundo sentido histórico e ético. A poeta propõe, com sua mediação pela via da fotografia, uma leitura alternativa da realidade e, sobretudo, desses dois eventos de proporções mundiais, dos séculos XX e XXI. O leitor, confrontado com essas imagens, que não são somente descritas nos poemas, mas que funcionam principalmente como um ponto de partida para elaborações filosóficas mais sofisticadas, é deslocado de seu posto de mero espectador – papel que, para Enzensberger (1985[4], p. 47), é irreconciliável com o trabalho poético, em razão de sua passividade. O eu lírico distanciado nesses poemas, diante das imagens, coloca-se, ao mesmo tempo, em uma posição de testemunha e de espectador, equiparando-se à própria posição do próprio leitor. Quando o mundo inteiro parou, na data dos atentados, e passou o dia diante da televisão, tentando compreender o que havia acontecido, as posições de testemunha e de espectador se integram, associando-se ainda a um certo nível de voyeurismo, característica cada mais presente das sociedades contemporâneas urbanas, na qual o audiovisual tornou-se onipresente e a velocidade das trocas de informações se dá em tempo real. No poema de Szymborska, a escrita e a leitura de poesia não são excludentes à participação em uma sociedade industrial, de consumo, que propõe substitutos à linguagem poética e é excessivamente apegada à notícia e à imagem. Entretanto, a poesia, diferentemente da imagem, tomada isoladamente, surge como um espaço não apenas de apresentação e de registro, mas principalmente de questionamento.

A linguagem, de aparente simplicidade dos poemas de Szymborska, não afasta os leitores não-especializados, e tampouco cria uma aura de dificuldade – rótulo que, de acordo com Enzensberger (1985, p. 46), costuma ser aplicado indiscriminadamente à poesia moderna. Com uma poesia que, segundo Przybycien “nos dá sensação de simplicidade e leveza” (PRZYBYCIEN, 2011, p. 20) e que dialoga com a produção poética polonesa do pósguerra – a chamada de “poesia austera” ou de “antipoesia” (cf. HAMBURGER, 2007, p. 343), que se opõe a uma ideia de poesia autotélica –, a produção de Szymborska dialoga não apenas com a crise da poesia – seja na própria questão da linguagem poética, seja em relação à redução crescente no público leitor –, mas também com a crise da ideia de civilização e de historicidade.

A poesia e a linguagem poética de Szymborska, portanto, rompem com uma tradição de poesia pura, em que se estabelecia como um abismo entre a poesia e o real, entre a linguagem poética e a História. Na sua produção, a poesia não se perde de forma alguma diante da “pressão da realidade” – uma preocupação recorrente, de poetas como Wallace Stevens. Mediada pelo olhar da fotografia, a poeta não deixa de estar profundamente ancorada no real, lidando com temas incômodos, sem perder de perspectiva o endereçamento ético em seu trabalho. Ao mesmo tempo, os dois poemas que analisamos trabalham no limite da imaginação, daquilo que chamamos anteriormente de mundo em aberto ou em revisão.

Além disso, a sua obra trabalha com o objeto fotográfico, com a sua materialidade, com a sua “capacidade de cruzar a fronteira do tempo” (CZERMIŃSKA, 2012, p. 199), com a representação fotográfica e poética das cenas e com uma investigação filosófica dessas realidades, eventualmente dando margem para questionamentos que se estendam até o presente. O seu leitor, ainda que não seja tocado por um “êxtase fotográfico” no sentido barthesiano, encontra-se a meio caminho, entre a segurança da imagem congelada, reforçada pela própria natureza da fotografia, e a desestabilização dessa impressão, em razão do método szymborskiano da “arte da pergunta”. Para Czermińska (2012, p. 199), a “principal característica dos poemas ecfrásticos de Szymborska é o fato de apresentarem determinada obra de arte não como um fim em si, mas com outra finalidade, que se apresenta como alguma reflexão estimulada pela obra original” (CZERMIŃSKA, 2012, p. 199). Essa subversão da écfrase pode ser interpretada como uma forma de reconciliação entre arte e realidade, propondo uma perspectiva poética que não basta em si mesma e que deve ser colocada em perspectiva ao lado da História mas que, ao mesmo tempo, não se limita à descrição da realidade. Trata-se, em última instância, de um equilíbrio cuidadosamente projetado, mediado pela fotografia, entre a construção e a superação do real, entre os fatos tais como se apresentam e todas as outras possibilidades, que se encontram adormecidas nas entrelinhas, esperando ser ativadas por um olhar que possa ir além das coisas tais como se apresentam.

Referências

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_____. Afterword. In: SZYMBORSKA, S. Nothing twice: Selected poems. Cracóvia: Wy dawnictwo literackie, 1997.

CZERMIŃSKA, M. Ekphrases in the poetry of Wisława Szymborska. Teksty Drugie (Special Issue – English Edition), v. 1, 2012, p. 188-200. Disponível em:

<http://rcin.org.pl/Content/52163/WA248_71515_P-I-2524_czermin-ekphrases.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2017.

ENZENSBERGER, H. M. Linguagem universal da poesia moderna. In: _____. Com raiva e paciência – Ensaios sobre literatura, política e colonialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Instituto Goethe, 1985.

HAMBURGER, M. A verdade da poesia. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

HOFFMANN, H. Hitler wie ihn keiner kennt. Zeitgeschichte: Berlin, 1932?.

KILANOWSKI, P. Os nomes e o silêncio. Reflexão sobre dois poemas de Wisława

Szymborska no quadro da poesia polonesa sobe a Shoah. Qorpus, v. 15, 2014. Disponível em: <http://qorpus.paginas.ufsc.br/como-e/edicao-n-015/os-nomes-e-o-silencio-reflexao-sobredois-poemas-de-wislawa-szymborska-no-quadro-da-poesia-polonesa-sobre-shoah-piotrkilanowski/>. Acesso em: 7 jul. 2017.

LIĢEZA, W. A vida inconcebível – Sobre os poemas de Wisława Szymborska. Tradução de Piotr Kilanowski. Qorpus, v. 13, 2014. Disponível em: <http://qorpus.paginas.ufsc.br/comoe/edicao-n-013/2943-2/>. Acesso em: 10 jul. 2017.

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[1]  Doutoranda em Letras (Estudos Literários), pela Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, no estado do Paraná, Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: rpirolli@gmail.com.

[2] Tanto Kilanowski (2014) quanto Ligęza (2014), ambos publicados na revista “Qorpus”, não possuem número de paginação em razão da natureza digital do periódico.

[3] A tradução deste poema para o português se encontra no volume “Um amor feliz” (2016).

[4] Esse texto de Enzensberger data de 1962. No entanto, o volume de ensaios consultados para este trabalho é de 1985.