Sobre as máquinas e os seus humanos. Algumas considerações sobre As fábulas de robôs e Ciberíada de Stanisław Lem – Piotr Kilanowski

Sobre as máquinas e os seus humanos. Algumas considerações sobre As fábulas de robôs e Ciberíada de Stanisław Lem[1]

 

Piotr Kilanowski*

"Solaris", cena do filme de Tarkovsky, de 1972

“Solaris”, cena do filme de Tarkovsky, de 1972

https://www.youtube.com/watch?v=Jorf-2o5YfU (link para a última cena de “Solaris”)

 

Stanisław Lem (1921-2006), grande escritor polonês de origem judaica, certamente figura entre os maiores escritores mundiais do gênero conhecido como ficção científica. Ao que parece, ao lado de Ryszard Kapuściński[2], é um dos autores poloneses mais traduzidos pelo mundo afora. Suas obras são conhecidas em mais de 40 idiomas. O grande peso dado à sua criação literária normalmente é justificado por sua capacidade de previsão futurológica e imaginação que lhe permitiram introduzir novidades na literatura de ficção científica, como por exemplo a ideia de um alien mais estranho e terrível que o da série de cinema Alien, em seu romance Solaris. O romance ganhou três adaptações para o cinema, nenhuma delas aprovada pelo autor. Enquanto Lem não poupou palavras duras a Tarkovski, com Soderbergh foi basicamente reticente. Sua obra foi adaptada em algumas oportunidades, por outros diretores. Talvez as melhores sejam as adaptações de Andrzej Wajda O mesclado (Przekładaniec, 1968) e o seriado alemão Ijon Tichy: Raumpilot (primeira temporada em 2007, segunda em 2011) baseado livremente em Diários estelares (Dzienniki gwiazdowe 1957). A adaptação mais recente, de 2013, The Congress baseada em O incrível congresso de futurologia[3] (Kongres futurologiczny, 1971), dirigida por Ari Folman, também merece lugar de destaque entre as tentativas de levar as obras de Lem à tela.

 

Talvez a grande dificuldade de levar a cabo tais tentativas se deve às próprias obras de Lem. Embora o próprio autor parecesse dar mais valor à sua obra futurológica e dissesse a respeito de suas grandes obras, de linguagem genial, que eram apenas brincadeiras com a língua, tanto o fator estilo quanto o fator linguagem com certeza não facilitam a vida de quem tenta reinventar os livros do autor na tela. Certamente é pelo fator linguagem que a obra de Lem, embora existam algumas traduções indiretas, ainda permaneça pouco conhecida no Brasil.

 

A obra de Lem é multifacetada. Tanto assim que um dos grandes autores de ficção científica norte-americana, Philip K. Dick, chegou, durante uma crise num quadro de doença mental, a fazer uma denúncia escrita ao FBI, de que Stanisław Lem não existia e que suas obras eram preparadas por uma célula de escritores que o partido comunista tinha criado para manipular a opinião pública. A prova disso seria a multiplicidade dos estilos, o muito amplo escopo de temas tratados em detalhe e de modo competente e, por fim, o sobrenome não eslávico, que provavelmente era uma sigla da tal célula. Por mais que esta história seja surreal serve perfeitamente para comprovar a versatilidade do autor. Poderíamos distinguir nela algumas vertentes: romance autobiográfico (ex.: Wysoki zamek [Castelo Alto],1966), romance realista (ex.: Szpital przemienienia, [O hospital da transmutação] 1955), ficção científica clássica (ex.: Eden,1959; O regresso das estrelas[4] [Powrót z gwiazd, 1961]; Solaris[5], 1961; A voz do mestre[6] [Głos pana,1968]), romances que misturam a novela policial e de espionagem com ficção científica (ex.: Śledztwo [Investigação], 1959; Memórias encontradas na banheira[7] [Pamiętnik znaleziony w wannie, 1961; Katar [Febre do feno], 1976), contos e romances que misturam ficção científica com grotesco, elementos de conto filosófico iluminista (ex.: o ciclo de aventuras de Íon Tichy, composto de contos e romances), contos grotescos, estilizados a contos de fadas, romances de cavalaria (ex.:Bajki robotów [As fábulas dos robôs] 1964, Cyberiada [Ciberíada], 1965), coletâneas de posfácios, resenhas e introduções a livros inexistentes (ex.: Doskonała próżnia [O vazio perfeito], 1971; Prowokacja [Provocação], 1984; Biblioteka XXI wieku [A biblióteca do século XXI], 1986) e, por fim, ensaística filosófica e futurológica (ex.: Dialogi [Diálogos], 1957; Summa technologiae, 1964; Okamgnienie [Piscar de olho], 2000).

 

Os temas tratados por Lem também compunham um leque muito amplo: se por um lado predominam viagens cósmicas e temas futuristas, por trás disso temos um humanista muito perspicaz e pessimista quanto ao ser humano. O grande tema das viagens cósmicas e encontros com as civilizações alienígenas geralmente leva à conclusão da impossibilidade de estabelecer tal contato. Ou o outro é inconcebível, como no caso do oceano pensante do planeta Solaris, ou os seres humanos, com sua imutável lógica belicosa e a imagem preconcebida de como o outro deveria ser, arruínam qualquer possibilidade de contato, além da destruição. A filosofia da ciência e o fenômeno da descoberta científica são tratados com um realismo pessimista, como podemos ver no conto “Como o mundo foi salvo”. O acaso como elemento que move a evolução também aparece com frequência. Lem foi agudo crítico das utopias sociais e totalitarismos, o que não o impediu de criticar veemente também a sociedade de consumo.

 

Lem sempre foi um gênio da palavra. A sua invenção linguística é das mais incríveis. As duas obras mais interessantes desta vertente do autor são Bajki robotów [Fábulas dos robôs] de1964 e Cyberiada [Ciberíada] de1965. Para seus primeiros leitores a linguagem de Lem criava um mundo paralelo, diferente da cinzenta realidade de um país comunista. Era uma descoberta saber que por meio das palavras podia-se não só fugir dela, como também lhe dar contínuas beliscadas sob a máscara de uma realidade do futuro muito distante, de um mundo de robôs, que nada teria em comum com o presente de então. Além disso, como é possível observar da perspectiva de hoje, suas histórias são absolutamente universais, pois os robôs herdaram vários vícios de seus criadores, que quase desapareceram de sua memória. Naquele mundo ninguém nasce, todos são construídos. Lem iniciou o experimento cruzando o mundo do futuro com a estilização arcaizante das fábulas. Estudioso do autor, Jerzy Jarzębski compara a estrutura de um conto de fadas clássico com o inventado por Lem, indicando três pontos de convergência. Em primeiro lugar o “era uma vez num país muito distante” é traduzido por “em algum lugar do espaço cósmico” (que sem dúvida acabou influenciando as palavras “em uma galáxia muito distante” conhecidas de todos os admiradores de Guerra nas Estrelas). Em segundo, o mundo do conto de fadas é um mundo feudal de reis, cavalheiros e cortes, o que Lem transpõe para o seu mundo ressaltando o problema do poder e de toda sorte de corrupção a ele ligadas. Em terceiro, por fim, no mundo das fábulas um papel importante é dado à magia, que Lem substitui por uma sobrenatural capacidade técnica; os magos do seu mundo são fantásticos construtores. “Além disso, Ciberíada é o lugar onde se medita sobre os mais sérios problemas da ética, sociologia ou socioengenharia”[8].

 

Adam Michnik[9], um dos mais proeminentes dissidentes poloneses da época comunista e chefe do jornal mais influente da Polônia de hoje, “Gazeta Wyborcza”, compara Lem com Swift e Orwell e considera Ciberíada uma análise cética sobre como o prometeicismo do ser humano acaba provocando a existência de sistemas totalitários. A sátira que zomba do sistema totalitário acaba também analisando um dos maiores problemas humanos. O ser humano é condenado à imperfeição, pois tentando construir a perfeição, sempre a constrói à imagem e semelhança de si mesmo, um ser imperfeito.

 

Fábulas dos robôs e Ciberíada são um verdadeiro desafio para o tradutor, pois o autor além de brincar com as palavras, cria enxurradas de neologismos. Tentarei exemplificar a inventividade de Lem traduzindo alguns exemplos: Eletrovador (Elekrybałt), Couraçadico (o nome do rei Panceryk), numeróticon (cyfrotikon – tratado sobre o amor no mundo digital), gastronáutica (diz o autor que é uma ciência parente da gastronomia), Troglógico (Troglodyk, o nome do outro rei) ou Cloriano Teorício Tapóstolo (Chloryan Teorycy Klapostoł, nome de um personagem, que era um inteléctrico e pensandro). Além dos neologismos há também na obra do autor siglas divertidas, dou exemplo de duas não provenientes de Ciberíada: POLE (Popularizador de Lem) ou POLACO (Popularizador de Lem que Atua no Computador). Como se isso fosse pouco, o autor ainda usa estilizações que parecem impossíveis de serem passadas para outro idioma, pois partem de uma tradição literária própria da Polônia. A estilização arcaizante, que mistura o conto de fadas com o conto filosófico iluminista (parodiado), cheia de neologismos tão grotescos quanto inventivos, tem como base o gênero de gawęda. Tal gênero, à semelhança de um causo, era um gênero oral, que narrava de forma longa, rica, cheia de rodeios, digressões e intromissões de palavras latinas misturadas com a fala corriqueira os acontecimentos da vida real, misturados com as invenções do narrador. As marcas mais fortes do gênero estão em Fábulas dos robôs, mas em Ciberíada também encontramos as suas influências.

 

No mundo das Fábulas dos robôs, o ser humano, geralmente chamado de bladawiec (neologismo, algo como palidáceo) ou lepniak (algo como grudário ou, quem sabe, viscário), é a personificação do mal. Ora os palidáceos são criaturas malévolas e astutas que querem dominar os robôs, ora aparecem como uma raça de vingadores cósmicos, ou como uma besta cujas propriedades oxidantes, advindas da sua composição aquática, são letais para os robôs feitos de metal. Antes de apresentar algumas ideias sobre o conto “Como o mundo foi salvo” gostaria de expor alguns fragmentos daquilo que um outro grande escritor de ficção científica, Kurt Vonnegut[10], classificou como a descrição mais asquerosa do ser humano que leu[11]. Vonnegut teve a oportunidade de ler Lem graças às traduções geniais de Michael Camden, que verteu para o inglês as obras mais difíceis do polonês. Os trechos em questão provêm do conto “Sobre o príncipe Ferrício e a princesa Cristalla” e denotam a famosa misantropia do autor. A história dos palidáceos é contada a um jovem, príncipe Ferrício, que por motivos de amor vai se disfarçar de palidáceo para satisfazer a loucura, para não dizer desejos perversos, da princesa cuja mão pretende assim conquistar.

 

[…]Esta raça da Galáctica nasceu de modo tanto secreto quanto obsceno, quando ocorreu a deterioração geral dos corpos celestes; surgiram neles então os vapores e decoctos frio-molhados e deles chocou a estirpe dos palidáceos, mas não de uma vez. No início eram o mofar e o rastejar, depois se derramaram do oceano à terra firme, vivendo de devorar-se uns aos outros; e quanto mais se devoravam, maior era o seu número, por fim ergueram-se, pendurando o seu conteúdo grudento nos andaimes de cálcio e construíram as máquinas. Destas tátara-máquinas surgiram as máquinas pensantes, que engendraram as máquinas sábias, que inventaram as máquinas perfeitas.[…]

A estirpe dos palidáceos-soladícitas levantou por fim voo para o céu nas máquinas (…) vexando os nobres metais, judiando da doce eletricidade e depravando a energia nuclear. Mesmo assim aconteceu que transbordou a medida de suas iniquidades, o que foi percebido profunda e universalmente pelo primeiro pai da nossa estirpe, o grande Calculador Genetofório; assim começou a mostrar a estes viscosos tiranos como é desonroso o seu proceder, quando conspurcam a inocência da sabedoria cristalina pondo-lhe os arreios de seus desígnios vis, quando escravizam as máquinas a fim de satisfazer a sua impudicícia – mas não encontrou ouvidos. O Calculador lhes falava de ética, e eles respondiam que ele tinha defeito de programação. Naquele tempo o primeiro pai nosso criou o algoritmo de eletrincarnação e com grande faina engendrou a nossa tribo, tirando com esta virada das coisas, as máquinas da casa da escravidão. Entendes pois, filho, que não pode haver acordo nem ligação que nos una a eles; nós atuamos irradiando, soando e faiscando e eles poluindo, balbuciando e pingando.”

Por fim o príncipe se vê disfarçado de palidáceo num espelho: “não a si mesmo, mas a um monstro-pesadelo, um palidáceo cuspido e escarrado, com o olhar umedecido como uma velha teia de aranha na chuva, pelancudo aqui e acolá, com um tufo ferruginoso na cabeça, pastoso e provocando náuseas; e quando se moveu, o seu corpo tremia como uma gelatina rançosa.”

 

O diálogo, para não dizer a festa, com o antropocentrismo continua ao longo do conto quando o príncipe descreve a si mesmo como um palidáceo falando da sua raça.

 

” – Ó princesa, me chamo Nhamlhaco e não há nada que mais deseje do que me unir contigo de modo derramado, fofo, massudo e aquoso, como é de costume da minha tribo (…) pois estou cheio de amor por ti como uma poça é cheia de barro.

E surpreendeu-se a princesa, pois verdadeiramente discursava com o modo próprio aos palidáceos, e disse:

– Me diz, tu, que te autodenominas de Nhamlhaco, o palidáceo, o que fazem os teus irmãos durante o dia?

– Ó princesa – respondeu Ferrício – pela manhã molham-se em água pura, derramam-na sobre os seus membros e para dentro de si, pois isto lhes traz bem-estar. Depois andam de um lado para outro de modo ondulante e líquido, respingam e estalam os lábios e caso algo lhes entristeça tremem e dos seus olhos pinga água salgada, e caso algo lhes alegre tremem e soluçam, mas seus olhos permanecem secos. Os gritinhos molhados chamamos de choro e os secos de riso.

– Se for verdade o que dizes – falou a princesa – e se compartilhas com os seus o amor pela água, mandarei te jogar no meu chafariz, para que te sacies com ela, e para que não venhas à superfície antes da hora, mandarei colocar pesos de chumbo nos teus pés…

– Ó princesa – respondeu Ferrício, ensinado pelo sábio – se assim procederes, perecerei, pois embora dentro de nós haja água, não a suportamos fora de nós, mais que por um momento, pronunciando então as nossas últimas palavras “glu-glu-glu”, que é o som com o qual nos despedimos da vida.

– E diz-me, ó Nhamlhaco, de que maneira consegues a energia para caminhar respingando e estalando, balançando e dominando como dono e senhor aqui e acolá? – perguntou a princesa.

– Princesa – replicou Ferrício – lá no lugar onde moro, além dos palidáceos escassipeludos há também outros, que passeiam geralmente de quatro. Os furamos aqui e acolá até que morram; os seu corpos escaldamos e fervemos, cortamos e trituramos e depois recheamos com a sua corporalidade a nossa corporalidade; e conhecemos trezentas e setenta e seis maneiras de matar, e vinte e oito mil quinhentas e noventa e sete maneiras de tratar os cadáveres assim, para que ao inserir os seus corpos nos nossos corpos, por meio de um pequeno buraco, chamado boca, sintamos um grande gozo; e a arte de preparo dos cadáveres é mais famosa entre nós que a astronáutica e chama-se gastronáutica ou gastronomia; embora com astronomia nada tenha em comum.

– Isto significa que vocês brincam de cemitérios, fazendo as sepulturas dos vossos irmãos quadrúpedes dentro de vós? – perguntou capciosamente a princesa, mas Ferrício instruído pelo sábio contestou:

– Ó princesa, não se trata de brincadeira, mas de necessidade, pois a vida se alimenta de vida; mas nós da necessidade fizemos uma arte.

– E conte-me, ó Nhamlhaco-palidáceo, como construís a vossa prole? – perguntou a princesa.

– Não a construímos, mas a programamos- respondeu Ferrício – com o método estatístico, baseado no processo de Markov, ou estocasticamente, lindamente, embora probabilisticamente; e o fazemos sem querer e circunstancialmente, pensando na oportunidade sobre coisas variadíssimas além da programação estatística, não linear e algo rítmica. No entanto, a programação ocorre por vontade própria neste momento, por si e de modo completamente automático, pois desta forma e de nenhuma outra somos feitos, que cada palidáceo tenta programar a prole, pois é delicioso para ele, mas programa sem programar e muitos fazem de tudo para que a programação não dê resultado nenhum.

– É muito estranho – disse a princesa, cujos conhecimentos eram menos detalhados que os do sábio Polifásio – Então como é que fazeis?

– Ó princesa! – falou Ferrício – Possuímos aparelhos apropriados, construídos de acordo com o princípio de retroalimentação, mesmo que esteja tudo dentro da água; estes mecanismos são um milagre do ponto de vista da tecnologia, pois podem ser facilmente usados pelo maior dentre os cretinos; no entanto para lhe revelar detalhadamente os métodos que usamos precisaria falar por muito tempo, já que não são nada simples. De fato é estranho, considerando que não inventamos estes métodos, mas, por assim dizer, estes métodos inventaram-se a si mesmos; porém são gostosos e não temos nada contra eles.”

 

Ao mesmo tempo que o leitor se diverte, é obrigado a refletir a respeito de si mesmo e de sua raça. Podemos dizer que é frequente nos depararmos com momentos assim na obra de Lem. Passaremos agora para uma curta análise do conto “Como o mundo foi salvo”, que abre a Ciberíada.

 

As histórias dos robôs inventores, Trurl e Clapáucius, compõem uma epopeia daquele mundo. Assim como o nosso mundo ocidental é fundado pela Ilíada e pela Eneida, (Aquileida e Tebaida só sobrevivem para os estudiosos da tradição clássica), para os portugueses a epopeia nacional é Os Lusíada. Para aquele mundo do futuro, Lem criou Ciberíada, a epopeia dos seres cibernéticos ou robôs.

 

A sua estilização arcaizante, ao mesmo tempo que acontece num futuro muito distante, remete à sensação que temos ao ler as epopeias da civilização ocidental, de ser algo muito velho. Seus temas são variados e universais. Destacam-se o tema do poder, das utopias perfeccionistas que viram totalitarismos, da engenharia social e o tema dos limites da ciência. A maioria deles pode ser ilustrada por um pequeno conto que é uma das obras mais famosas de Lem. “Como o mundo foi salvo”, o conto em questão serviu até de inspiração para a homenagem que Google prestou a Lem no aniversário de 60 anos da publicação de seu primeiro livro. A homenagem é um joguinho baseado nos contos de Ciberíada com desenhos de Daniel Mróz, que ilustrou as primeiras obras de Lem e pode ser acessada pelo link https://www.google.com/logos/lem/. Mróz foi amigo pessoal de Lem e dizem que o seu desenho de Trurl foi inspirado na figura do autor, enquanto o desenho de Clapáucius era um autorretrato seu.

 

No conto, que pode ser lido na seção Teatro na praia, o construtor Trurl inventa a máquina que pode fazer tudo que começa com a letra “n”. Logo a máquina é testada por seu amigo, o construtor Clapáucius, que manda a máquina fazer “o nada”. O resultado é a destruição do mundo, evitada por pouco. Enredo não muito complicado, conto curtinho e mesmo assim muitos assuntos importantes aparecem nas entrelinhas, fora a deliciosa brincadeira com os objetos que começam com “n”. Primeiramente salta aos olhos o problema da ciência que, em nome de conseguir a perfeição, cria uma máquina imperfeita, que trabalha apenas no conteúdo limitado da letra “n”. Por acaso, a imperfeição da máquina, testada com uma certa malevolência, além de trazer a destruição do mundo, está por um triz de trazer a única coisa que pode ser perfeita em nosso universo imperfeito: o nada. A crítica da ciência, tanto na brincadeira de mandar a máquina fazer neociência, quanto no fato de que, por conta das animosidades entre os construtores, o mundo quase acaba, mostra que mesmo quando casualmente é criada a máquina que casualmente faz algo perfeito, ainda assim o resultado é sujeito às imperfeições humanas. Sim, humanas, pois os robôs, e entre eles os construtores, herdaram dos humanos, os seus criadores, as suas características. Trurl e Clapáucius além de serem máquinas antropomórficas, foram feitos pelos robôs, que em alguma geração anterior foram criados à imagem e semelhança de seu humano construtor. Portanto, já que os robôs são herdeiros dos humanos, assim como aqueles, estes também utilizam a tecnologia e suas novidades primeiramente (e inconscientemente) para fins destrutivos. Os gloriosos inventores idealistas sempre encontrarão especialistas em usar as suas invenções de modo indesejado e bastante prático – para a destruição. Assim a falta de capacidade de prever é uma outra qualidade que as nossas criações herdaram. Nem o construtor, nem aquele que utiliza a máquina são capazes de vislumbrar todo o alcance nocivo do seu funcionamento. Curiosamente, por trás disto está a ânsia de perfeição.

A inteligência artificial em Lem ganha todas as características da humana. As máquinas, tanto quanto os seus construtores-máquinas, possuem personalidades. Podem ser orgulhosas, espertas, malévolas, invejosas e também burras. Num outro conto da Ciberíada com título “A máquina de Trurl” conhecemos uma máquina que além de ser a maior máquina do universo teima que dois mais dois são sete, e quando insultada pelo seu construtor passa a persegui-lo implacavelmente. Cada um de nós certamente já conheceu personalidades assim, prontas para defender o seu erro até as últimas consequências, sem nenhuma humildade para reconhecê-lo.

Voltando ao conto “Como o mundo foi salvo”, talvez o problema mais interessante entre os levantados por ele seja justamente da área que chama nossa atenção desde o primeiro até o último momento do conto, pela imaginação linguística do autor. Já que um dos protagonistas é a linguagem, cujas brincadeiras linguísticas fazem o pobre tradutor decorar os verbetes iniciados pela letra “n” no dicionário, é interessante perceber o porquê de colocar a linguagem em ponto de destaque neste conto. Somente ao refletir, depois de nos divertirmos com as piruetas com a letra “n”, percebemos que o conto trata também do papel da linguagem no processo de perceber o mundo. Todos que já refletiram sobre a linguagem esbarraram no problema que permanece insolúvel, assim como o problema-irmão que quer entender a relação de antecedência entre o ovo e a galinha. No caso da linguagem, a pergunta é: a linguagem engendra a percepção ou a percepção é que engendra a linguagem?

Não se pode nomear algo de cuja existência não se tem consciência. Por outro lado, as coisas que têm nomes sempre serão percebidas em primeiro lugar, em detrimento das coisas inominadas, mesmo que sejam tão visíveis quanto as nomeadas. Usando o exemplo mais comum: precisamos da experiência de um esquimó para perceber e nomear diferentes tipos de neve. A máquina que sabe fazer tudo o que começa com “n” é um símbolo da nossa consciência, que permite que percebamos somente aquilo que tem nome. Só usando os nomes dados às coisas é que a máquina consegue construir ou destruir o mundo. A limitação linguística da máquina, ou a nossa incapacidade de percepção, faz com que nunca possamos ver sirliriços e murfias.

 

BIBLIOGRAFIA

 

GONDOWICZ, Jan. Pan tu nie stał. Varsóvia: Nisza, 2011.

JARZĘBSKI, Jerzy (org.). Lem w oczach krytyki światowej. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 1989.

__________. “Naprawić świat” In: LEM, Stanisław Cyberiada. Dzieła, tom XV. Varsóvia: Biblioteka Gazety Wyborczej, 2009. p. 399-405.

__________. Wszechświat Lema. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 2003.

LEM, Stanisław. Bajki robotów. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 1967.

__________. Cyberiada. Dzieła, tom XV. Varsóvia: Biblioteka Gazety Wyborczej, 2009.

MICHNIK, Adam. “Summa smokologiae”. In: LEM, Stanisław Cyberiada. Dzieła, tom XV. Varsóvia: Biblioteka Gazety Wyborczej, 2009. p. 415-426.

VONNEGUT, Kurt. “Ludzie, czy to tylko żarty?”. IN: JARZĘBSKI, Jerzy (org.). Lem w oczach krytyki światowej. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 1989. p. 24-27

 

* Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura na UFSC.

 

[1] O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e Tecnológico – Brasil.

Agradeço encarecidademente o trabalho de revisão a Luiz Henrique Budant e Eneida Favre.

[2]Ryszard Kapuściński (1932-2007) foi um grande escritor e jornalista polonês, o maior representante da vertente de reportagem literária na Polônia, autor de obras como

Ébano (2002), A guerra do futebol (2008), O imperador (2005), Imperium (1994),

Minhas viagens com Heródoto (2006), O xá dos xás (2012). Os anos entre parênteses referem-se às traduções brasileiras editadas pela Companhia das Letras.

[3] editado por Nova Fronteira em 1977

[4] editado pela Editora Europa – América de Portugal em 1983

[5] várias edições no Brasil, a mais recente, na esteira do filme de Soderbergh, veio a lume pela Relume Dumará em 2003

[6] editado pela Francisco Alves em 1991

[7] editado pela Francisco Alves em 1985

[8] JARZĘBSKI, Jerzy. “Naprawić świat” In: LEM, Stanisław Cyberiada. Dzieła, tom XV. Varsóvia: Biblioteka Gazety Wyborczej, 2009. p. 399.

[9] MICHNIK, Adam. “Summa smokologiae”. In: LEM, Stanisław Cyberiada. Dzieła, tom XV. Varsóvia: Biblioteka Gazety Wyborczej, 2009. p. 415.

[10] Kurt Vonnegut (1922-2007), foi um escritor norte-americano. A sua obra mais famosa é o Matadouro 5 (Slaughterhouse five or The Children’s Crusade: A Duty-Dance with Death) editado no Brasil pela L&PM.

[11] VONNEGUT, Kurt. “Ludzie, czy to tylko żarty?”. IN: JARZĘBSKI, Jerzy (org.). Lem w oczach krytyki światowej. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 1989. p. 24. O original em inglês levava o título “Only Kidding, Folks?” e foi editado na revista The Nation, de 13 de Maio de 1978, p. 575.