“Toda a nudez será castigada” – Jacqueline Kremer

“TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA”

Jacqueline Kremer*
                 

De Nelson Rodrigues, a peça “Toda Nudez Será Castigada” (1965), um dos maiores sucessos do grupo “Armazém Companhia de Teatro”, apresentou-se na terça-feira, 20 de novembro, no Centro de Eventos da UFSC, com apoio da SECULT para o projeto “Quem faz 100 anos ou +”.

 

 

                                 “Toda nudez será castigada” – Nelson Rodrigues

No elenco, Patrícia Selonk (Geni), Ricardo Martins (Herculano), Marcelo Guerra (Patrício), Sérgio Medeiros (Serginho), Simone Mazzer (tia 1), Isabel Pacheco (tia 2), Flávia Menezes (tia 3), Simone Vianna (puta e médico), Raquel Karro (puta e padre) e Marcos Martins (puta e delegado). A direção é de Paulo de Moraes.
 

“Toda Nudez Será Castigada” foi a montagem mais premiada de 2006, conquistando o Prêmio Shell nas categorias Direção (Paulo de Moraes) e Iluminação (Maneco Quinderé); e o Prêmio Eletrobras de Iluminação, Cenografia (Paulo de Moraes e Carla Berri) e Figurinos (Rita Murtinho).

Definido como uma “tragédia carioca”, essa obsessão em 3 atos (como a nominou Nelson Rodrigues), oscila o tempo todo entre o cômico e o trágico. Nuances de cinismo e humor de navalha deixam a mostra as vísceras da sociedade carioca dos anos 50/60, que tão bem Nelson ampliou com seu olhar de jornalista e de “anjo pornográfico”.

A peça se manteve “rodrigueana”, tão bem marcado pelas gírias cariocas da época, perversões e puritanismo social. A crítica aos costumes ou maus costumes da época permanece viva ainda hoje. A hipocrisia humana continua humana. O figurino, com exceção das tias, fiel com os paletós, camisas com botões e mangas compridas; a saia e o sobretudo da Geni; jaqueta do Patrício à moda James Dean. Em contraponto, as prostitutas estavam atuais, talvez trazendo a peça para os dias de hoje (?), se essa era a ideia, faz sentido! Os papeis femininos, na clandestinidade da “luz vermelha”, usavam salto alto, assim como o travesti. Os atores nos papeis masculinos estavam descalços, opção hábil e sagaz: o homem, literalmente com os “pés no chão”, é detentor de escolhas por onde caminhar. Esse homem vai ao encontro do seu fado, seu destino e isso foi uma sacada “rodriguena”. Sim, talvez seja uma litura minha muito particular, mas veja como detalhes instigam e nos faz refletir. Essa é uma excelente proposta do teatro, não é mesmo?! E falo daquele teatro inteligente, onde os signos excedem seu simples significado.

Outra coisa que me instigou foi o figurino das tias pudicas, severas, antigas e antiquadas, mas quão antiquadas? O figurino remetia ao século XIX, onde o traje feminino usou e abusou de saias compridas até ao chão, deixando-se por vezes ver o pé. A cintura usou-se alta, pouco abaixo dos seios, durante o estilo «Império», descendo depois para o seu lugar natural. As saias foram-se alargando, muito volume e muito rodadas, chegando a usar, por baixo delas, uma armação de lâminas de aço e barbatanas chamada “crinolina”, ou ainda quatro saias interiores de tecidos duros para permitir um máximo de volume. Esta moda atingiu o auge entre 1845 e 1866. Depois, abandonou-se a crinolina, mas passou a usar-se, por baixo do vestido, sobre os rins, uma espécie de almofada, a “tournure”, que levantava a saia atrás. Volto a essa explicação, um tanto quanto didática, somente para refrescar a memória e fazer comparações com o figurino das tias e a época dos demais. Acho importante frisar que é incrível esse figurino: as três de negro, leques negros, mas… século XIX, 1845 e 1866!? Depois de pensar em tamanho deslocamento temporal, penso na maneira como os vestidos faziam as atrizes sumirem no palco. Os figurinos também participam como elementos cenográficos. Na cauda de um dos vestidos, um dos atores é carregado pela tia atravessa o palco indulgentemente. Isso tudo me faz pensar o quanto o figurino pode ser estratégico, não só como vestimenta, mas com o que pode se tornar cenografia: um carrinho, uma mesa, pedras grandes, cobertas, etc. O figurino negro das tias foi múltiplo, extrema criatividade da Rita Murtinho e usado com qualidade pelas três atrizes.

Quanto ao cenário, faz tempo que não vejo um cenário tão incrivelmente pensado para tornar a peça dinâmica. Cenário pensado com genialidade! As várias portas que o compõem abrem lembranças dos personagens, ou onde vivem, onde estiveram e como tudo se desenrolou. Abrem de várias maneiras, como as portas habituais que abrimos, pela metade, quando também não estamos inteiros. Dessas portas surgem telefones, aparelho de música, maca de hospital. Uma ampla para a casa de prostituição, antiquada para o lar de Herculano e as tias. As portas falam e a maneira com que se abrem servem de apoio para o trabalho dos atores, que se sentam, se equilibram e usam as barras fixas eroticamente, arte genial! 

O cenário simples, em forma de meio hexágono, dividido em nove portas diferentes, como a diversidade dos personagens e suas vidas, captou como Nelson Rodrigues a diversidade e auxilio a fatalidade com o tempo, tão precioso para a cadência de uma peça.

*Atriz e aluna do curso de Artes Cênicas da UFSC