Geografias imateriais – Manoel Ricardo de Lima

Geografias imateriais*

 

Manoel Ricardo de Lima **

 

Dar um nome ainda é dar?

    Jacques Derrida

 

Reflita comigo um instante. Aqui estavam treze bestas

como nós reinando sobre meio milhar de outras bestas.

[…] Era impossível, considerando a natureza das bestas,

governar por caridade. Nós governamos por medo.

Jack London

 

 Sertão

Euclides da Cunha toma nota quase no início de seu Os sertões [1900] para indicar a instabilidade do espectro de uma morfologia da terra [com suas analogias mágicas] e, ao mesmo tempo, de sua facies geográfica tomando como modelo e centro dessa alocução, o homem – mas o homem mapeado –, este que ao mirar-se apenas em si afronta tudo o que é outro. Diz ele:

 

Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável – o homem.

Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos.

Começou isto por um desastroso legado indígena.

Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental – o fogo.

[CUNHA: 1995, p. 39]

 

Euclides não perde de vista o hiato produzido pela mimese imaterial da modernidade entre ser e dizer, tal como aquela que seria denunciada alguns anos depois por Walter Benjamin [1933] em meio a seu embate com as teorias místicas da linguagem e uma necessidade de as combater a partir das perspectivas marxistas deixando vir à tona também as suas leituras seguidas de um mesmo texto de Freud: Psicanálise e telepatia [1921]. Benjamin diz que uma mimese imaterial é a que nos força a reaprender a ler e a tocar, como reação e política, no mais perfeito arquivo de semelhanças imateriais que antecipa a linguagem [esta semelhança não-sensível]: LER O QUE NUNCA FOI ESCRITO.[1]

No caso, uma imaterialidade que engendra tensões entre o que se fala e o que se entende, entre o que se escreve e o que se compreende, entre o dito e o escrito, entre uma imagem e sua mera visibilidade assemelhada etc. porque estamos também diante daquilo que o fogo tratou de deixar como pó ou de transformar em pó. Para Benjamin, estas são as forças de ação e as formas de leitura mais antigas: ler antes de toda a linguagem a partir das entranhas, dos astros ou da dança. Por isso, por exemplo, como quer Edmond Jabès, não se pode ler o deserto [como faz Euclides, por exemplo] como se fosse apenas um vazio, o nada, nem muito menos lê-lo como um termo, um fim, porque ele é também ao mesmo tempo um começo naquilo que oscila entre uma disponibilidade e uma disposição para começar: lugar da ação, do “vamos fazer coisas”, de um “se possível fosse”, lugar para “uma criança preenchida” etc. E isto tem a ver com uma “animalidade primitiva que, lentamente, foi expungida pela civilização” e que, para Euclides [1995, p. 382], como uma desforra, ressurge inteiriça nos traços das faces indeléveis e multiformes das raças que alargam o jagunço e, por isso, de certo modo, arrebentam as linhas já fascistas de fronteira e de nação nas quais se pautam as pretenções falseadas de uma ideia de república: um para todos sem atestação, logo inexistente porque é exatamente mapa, modelo.

Numa outra ponta dessa instabilidade do espectro de uma morfologia da terra e, ao mesmo tempo, de sua facies geográfica, praticamente um século depois de Euclides e já apoiado em Benjamin, Jacques Derrida, numa carta de março de 2002, enviada para um encontro de escritores em prol de uma Palestina livre, reclama um “nós”, um dizer “nós”, que ultrapasse a razão [a linguagem e suas grafologias do alfabeto próprias dos povos policiados e escravizados] e que seja o “menos injusto possível” e também o mais perto possível do coração num apontamento de sentido para a urgência: porque o coração está do lado da vida e porque é importante tratar de outra forma a irreversibilidade de todo mapa, de todo modelo. Diz ele que “Se a palavra povo tivesse ainda um sentido [duvido um pouco], esse sentido deveria ser buscado nessa razão do coração.” [2004, p. 151] O ponto, para Derrida, é desfazer o centro ou deixá-lo minimamente disponível num futuro anterior:[2] 1] o que se antecipa como perigo absoluto [Dante já dissera que o que lhe interessava era uma poesia perigosa]; 2] o que rompe com toda normalidade constituída;  3] e o que se apresenta como monstro.[3]

Ele reclama, porque insiste que não há hoje coisa alguma para escolha, transfigurar as ofensas mais legítimas e, sobretudo, reclama duas urgências:1] a de que é preciso partilhar a terra e 2] e a de que se deve interromper velhas formulações sempre prenhes de signos terrivelmente inflacionados. É exatamente diante da linguagem que o homem começa a agir como Deus porque imagina-se absoluto como um fazedor de obras, e nisso insere todo um projeto de nomeação, contenção, cerceamento, limite e finitude.

Um outro apontamento é que já no século VI a.C., Anaximandro, um suposto discípulo de Tales e habitante de Mileto, tomava o ser das coisas como a injustiça – o ser das coisas É a injustiça – e dizia que para reparar essa injustiça seria preciso que as coisas, todas, e cada uma, reintegrassem-se de alguma maneira no escuro,[4] no indeterminado apéiron. O apéiron é algo insurgido (o que não surgiu nunca, embora exista – o indistinto) e imortal. María Zambrano, de outro modo, relendo Anaximandro, diz que “não há motivo para que seja concedida a existência a nada determinado; que algo exista é já uma injustiça. Todo o ser algo significa ser à custa de algo; ser algo à custa de que outro algo não seja.” (2000, p. 74) Naquele momento, Mileto passava por um doloroso processo político: o rei fora expulso por uma aristocracia que se viu ameaçada por alguns novos ricos comerciantes que, por sua vez, eram os mediadores entre essa aristocracia e o mundo-artesanal camponês. O que se tinha era uma luta política entre um partido dos ricos e um partido dos trabalhadores, como nos lembra Carlo Rovelli.

E é numa reconstrução da história da ordem presente das coisas e partindo desse pressuposto entre ser e injustiça que Anaximandro se dedica à elaboração de uma primeira representação geográfica do mundo, tomando como critério que o que passa a valer e a sustentar a Terra é apenas a precariedade desenhada de seu modelo antecipado, ou seja, temos aí uma espécie de primeiro mapa. Assim, já estamos diante da lei, da realidade da lei e de sua matemática rudimentar [flageladora, inapelável e absoluta], algo como controle e poder. Num contraponto, Anaximandro praticamente desfaz esse mapa quando também projeta a ideia de que a Terra está suspensa e voa sobre nada, flutuando no nada [ – NONADA, é também a palavra inoperosa que voa suspensa no começo do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, esta máquina celibatária construída ao modo de Marcel Duchamp para desfazer modelos eminentemente literários].

Assim, o mundo passa a ser também um espaço aberto e sem suporte algum. As coisas caem em direção à Terra e a Terra não cai porque não tem nenhuma direção para onde cair. Anaximandro redesenha o universo, muda a gramática de compreensão do universo, nos coloca um impasse e a possibilidade de abandonar toda e qualquer imagem do mundo que nos seja familiar, inventa o espaço aberto do cosmo quando o centro nunca é o centro. E é isto que, depois, para Copérnico, se pode chamar de fato de revolução: subverter tudo, virar ao avesso, confrontar-se não apenas com um si mesmo familiar, mas com um desconhecido que o impossível de nossa pequena experiência e capacidade de experimentação ainda pode projetar. Hélio Oiticica, numa pequena anotação de caderneta [28.maio.1974] propõe que “experimentação”, por exemplo, tem a ver com isso, diz ele: “condição do experimental: mergulho essencial no desconhecido.” E é isso que causa um medo extremo ao homem: ser-não ser diante da ordem da natureza / da cultura. O que nos leva a pensar sobre a perniciosa separação deste tempo agora, como afirma Carlo Rovelli, entre saber científico e algum saber literário-artístico-histórico-filosófico etc.

É possível ler no livro III Guerra Mundial [2013], de Andi Nachon, um desdobramento dessa questão – também diante de uma ideia para a morfologia da terra e sua facies geográfica – quando propõe um jogo heterogêneo e severo de interferência na catástrofe: submeter todo mapa a um pensamento nu para tensionar imparavelmente seu sistema redutor que se abrevia no nome, na rota, num traçado sem errância etc.:

 

Mapas, rutas, accesos cortados: crecemos navegando así

nuestra fe en la catástrofe. Cada vacación

un simulacro: Caracoles, Camarones

Los Toldos. Esta cartografia final

desplegada en la mesa familiar

donde hombro contra hombro

rastreamos huidas posibles. Duran las siestas

 

el tiempo sin fin que lleva a la tierra

alcanzar un final: “Subitamente

todo explotará” – así predica él y afuera

la explosión es otra história. Tu Hermano mayor y vos

al sur la travesía, una búsqueda de otra vida

que empieza en un final. Hombro contra hombro

 

para vos la tercera guerra

se traslada por esa fuga

donde él y vos hallarán cobijo

entre un pueblo sin nombre y otro.

[NACHON: 2013, p. 11]

 

A questão passa a ser uma tentativa de tocar alguma saída, alguma fuga, uma palavra nua ou um possível estado da palavra como nudez – um “se possível fosse”, que Derrida chama de “palavras do coração”, de onde advém a memória ou quando dos fins do homem chega-se ao animal [“um animal me olha”] que nos é todo outro-sem nome e que Jean-Luc Nancy, por sua vez, lendo Bataille e apoiado em Derrida, delibera como um pensamento despojado: aquilo que é tomado por surpresa, um imprevisto, um acidente, o que despoja o pensamento despojando-se também de si mesmo, quando o sentido do ser está também numa entrada no não-saber e se pergunta: o que um pensamento despojado pensa?  o que o não-saber não-sabe? [5]

Ombro contra ombro, anota Andi Nachon, numa fuga em direção a um abrigo entre um povo sem nome e outro – algo como o que se passa de um ao outro entre as conversas, os risos, o erotismo, a vida dos amigos etc sem um efeito de lei, de vontade de princípio ou fim, de totalização da história etc. O não-saber é não-saber da liberdade do sentido e, radicalmente, da necessidade de chance e da capacidade de escolha. Para Nancy, o pensamento despojado pensa isto:

 

Estamos aqui para nada, o mundo está aqui para nada, estamos no mundo para nada – e é o que quer dizer ‘estar no mundo’. Pensar esse nada, é pensar o pensamento nu: o pensamento que apenas faz chamar sua passagem ao outro, sem intenção, para além de toda intenção, para nada, nada senão para estar entre nós, nada senão para estar no mundo – e esse ‘para’ aqui é um ‘para’ sem intenção, sem projeto e sem fim. […] O que pensa o pensamento despojado, ele não o pensa, portanto, senão como o que o despoja de si mesmo. [NANCY: 2015, p. 43-44]

 

Esse pensamento despojado tem a ver com uma imprecisão de esforço: ação que no cálculo estrutural se assemelha imaterialmente a um “estágio da experimentação em que o corpo se deformando começa a deformar, por sua vez, o corpo deformador”. Num giro com um esforço e em torno de uma não-reconciliação, a questão  de uma geografia imaterial passa a ser como deixar algumas perguntas ativas: 1] como desmontar e desfazer toda ideia de centro, 2] como desmontar e desfazer a fábrica, 3] como desmontar e enganar todo e qualquer mapa [sair de uma ideia entre controle e poder que vem na composição do que se costuma chamar, como hábito e fala vazia, de “sistema para uma cartografia de possíveis”, que não é senão uma expressão inflacionada e centralizadora] e, principalmente, 4] como desmontar e enganar toda a arte. Essas proposições se esticam diante daquilo que Pasolini já apresentara ao dizer que, ao nosso redor o que se tem é um avanço estereotipado da fábrica [se a vida inteira é para o consumo, a arte é também inteira para o consumo] e da expressividade monstruosa: o homem médio, a opinião pública representada, oficializada pela notícia fabricada e, agora, por suas redes sociais [um contrassenso entre o que seria social e o dinheiro que, grosso modo, apenas reproduzem a pauta das notícias oficiais] que sempre pedem um bode expiatório e um linchamento.

Mas podemos nos colocar [colocar: ficar ao lado, agora] também diante da promessa de um sentido, da promessa a um acesso, quando um pensamento não-reconciliado e nu, um se possível fosse, pode ainda advir DA arte e COM a arte. E assim perceber que é esse mesmo pensamento que nos debilita a memória contra uma “inconsciência de quem não levanta certos problemas – que já ultrapassaram o limiar dentro do qual se situa a nossa forma de vida e o nosso horizonte mental”. [PASOLINI: 2005, p. 27] Talvez porque estamos diante de uma guerra, e diante de uma guerra nos transformamos, sem a inferência vigorosa da metamorfose, em técnicos da guerra, pequenos homens plenos e fazedores de mapas, de cartografias, de diásporas fixas, repetitivas e fajutas, técnicos de um sistema que, numa dimensão nociva, completa e monopolizadora, passamos a chamar, num eco [isto que se repete sem diferimento], de um sistema para uma cartografia de possíveis e, mais severamente, de domesticação[“a relegação do humano para o nível mais triste da vida animal” – Silvina Rodrigues Lopes]. E é essa a imagem que funda a modernidade [e se desdobra no que convencionamos também em chamar de “contemporâneo”, que é praticamente uma conserva no e do presente] para um desenvolvimento mímico e unânime e que impede o corpo [retirado do mundo porque estamos todos demasiadamente Cristãos] de qualquer possibilidade de avançar com alguma experimentação que se postularia entre un regard, un retard. Ou seja, como pensar um pensamento nu e com um pensamento nu que se mova também como uma interferência política despojada: proximidade absoluta, montagens agudas, olhar com todo o corpo, deixar o centro vazio, deixar o centro disponível, tornar possível o impossível etc.

 

Digressão, um

Em 1999, Maria Gabriela Llansol termina a inscrição severa de um confronto com o livro para rasgar a ideia da morte [que advém da tradição da metafísica] para tocar a problemática do morto entre o ser e a injustiça, uma morfologia da terra e sua facies geográfica, numa pequena pergunta: Onde vais, drama-poesia?A certa altura, procura tocar essa questão produzindo um fogo, logo também um pó, a partir de uma semelhança imaterial para ler o que nunca foi escrito:

 

Na paisagem, ou na geografia imaterial da espécie terrestre, os seres humanos distribuem-se em vagabundos, em formadores, em construtores e em poetas.

Os vagabundos erram à procura de uma nova paisagem. São, desde sempre, exteriores à comunidade. Os construtores são os elementos estabilizadores que prendem toda a geografia imaterial à vida quotidiana. Os formadores sentem essa geografia porque o seu órgão é o coração. Os poetas veem, e anunciam a geografia imaterial por vir.

Os construtores, os formadores são peregrinos.

Os poetas também o são, de certo modo. Há uma grande afinidade que os liga aos vagabundos.

[LLANSOL: 2000, p. 45-46]

 

Digressão, dois

E, por fim, para deixar suspenso num voo sobre nada, flutuando no nada, numa outra geografia aérea, duas inscrições de duas poetas que, salvo todo engano, deixam perguntas ativas girando em vagabundagem, feito espiral com alguma imaterialidade do sentido diante de um não-saber da liberdade e da impessoalidade de sentido, da necessidade de chance e da possibilidade de escolha para um pensamento nu e com um pensamento nu, despojado: Annita Costa Malufe [de Caderno para coisas práticas] e Júlia Studart [de Logomaquia]:

 

estamos todos no deserto

ele me acena de longe

sinal borrado pela areia

ar carregado não sei bem

decifrar o sinal mas os

dedos se agitam aqui há

quatro ou cinco animais

de espécies diferentes são

diferentes eu grito meu

braço acompanha a pergunta

mas a boca está cheia de

areia é como se você

acordasse com os pés cheios

de terra entre os dedos a boca

e o nariz cheios de areia

estamos no deserto ele

responde todos no

deserto o gesto indecifrável as

pontas dos dedos se movem

rapidamente quatro ou cinco

o quê? nesta distância

aparente a leitura labial seria

uma técnica inútil o sinal se

perde na névoa só ficam

os braços para cima em

movimento defasado

 

[MALUFE: 2016, p. 56]

 

I put a spell

on you

 

minha música

favorita, ela disse

em preto e branco

antes de sair de

casa levando apenas

o vestido novo, o

gravadork7 national

panasonic modelo

Rq 3095 e um

mapa de bolso

em baixo relevo

que unia Flórida,

Hungria, Cleveland

e Nova Iorque. tal

qual o mapa de

Silvia e Bruno, a escala

da maior carta

geográfica realmente

útil. uma milha por

milha cobre toda

a terra, impede a

passagem da luz. entre

viagens de balão e

a invenção de novos

planetas o velho

pergunta a Bruno qual

o menor mundo

onde ele gostaria de

morar. ‘um bem,

bem pequeno, só pra

mim e silvia’,

Bruno responde

 

[STUDART: 2015, p. 28-29]

 

Referências bibliográficas

 

ANTELO, Raúl. Transgressão & Modernidade. Ponta Grossa: UEPG, 2001.

BENJAMIN, Walter. Linguagem Tradução Literatura. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2015.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

DERRIDA, Jacques. Mensagem, in: Viagem à Palestina. Trad. Leneide Duarte-Plon. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

LLANSOL, Maria Gabriela. Onde Vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’água, 2000.

LONDON, Jack. De vagões e vagabundos – memórias do submundo. Trad. Alberto Alexandre Martins. Porto Alegre: L&PM, 2005.

MALUFE, Annita Costa. Caderno para coisas práticas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.

NANCY, Jean-Luc. O pensamento despojado. Trad. Eclair Antonio Almeida Filho et al. São Paulo: Lumme Editor, 2015.

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 20.a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROVELLI, Carlo. Anaximando de Mileto: o nascimento do pensamento científico. Trad. Fernando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

STUDART, Júlia. Logomaquia. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

 

 

[1]Doutrina das semelhanças / Sobre a faculdade mimética [1933]

[2] Esse tempo pré-cronológico: um tempo antes do tempo do mundo, por isso anacrônico, o tempo da posterioridade anterior, do passado absoluto do imemorial. É o tempo do outro, que está na origem do rastro como desvio, diferimento e infinita disjunção para um acolhimento do outro como outro.

[3] Pasolini, em 10 de maio de 1969, já chamava a atenção para isso e dizia que esta continua a ser uma civilização similar a de Himmler, a dos Lager, quando o diferente atribuído como criminoso, homossexual ou pobre etc., se configura como monstro; o impasse é que na perspectiva de um novo fascismo “o monstro” também passa a reproduzir, como mímica, o homem médio total e violento que não o tolera porque o poder decidiu que devemos ser todos iguais, isto é, uma humanidade unânime. E afirma, categórico: “A tolerância, fica sabendo, é só e sempre puramente nominal. Não conheço um único exemplo ou caso de tolerância real. E isto porque uma ‘tolerância real’ seria uma contradição nos seus termos. O fato de se ‘tolerar’ alguém é o mesmo que o ‘condenar’. Aliás a tolerância é uma forma de condenação mais refinada”. (PASOLINI: 2005, p. 127)

[4] Giorgio Agamben postula num pequeno ensaio enquanto lê o poeta Ossip Mandelstan, Che cos’é il contemporaneo, uma ideia de escuro (o seu apéiron) e nos convida a pensar uma perspectiva desse apéiron diante do que enredamos como justiça a um direito de conserva e de conservação: o contemporâneo – nosso tempo de vidência e evidência exatamente porque “nosso”. Agamben parece reler também a frase de Goethe quando este diz que “as trevas nivelam a tudo”, logo, é o escuro que conserva a tudo e desmonta toda e qualquer capacidade de metamorfose. O que faz também, muito antes, Flávio de Carvalho, no final de seu ensaio As ruínas do mundo (de 1936), quando imprime uma ideia da revolta como aquilo que pertence ao mundo extra-uterino da luz e dos domínios da reação, e retoma o princípio de Goethe na sua última frase: “As trevas são sempre niveladoras.”

[5] Podemos ler uma passagem do relato de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de Guimarães, Rosa, quando imagina a procura de um outro povo, sem nome, diferente, e se coloca diante de um esquartejamento de Narciso: O que é de paz, cresce por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha ideia de tudo ser só o passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do não-saber. E eu não tinha nenhuma notícia de ninguém, de coisa nenhuma deste mundo – o senhor pode raciocinar. Eu queria uma mulher, qualquer. Tem trechos em que a vida amolece a gente, tanto, que até um referver de mau desejo, no meio da quebreira, serve como benefício. Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente. E marchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei um ribeirão verde, com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados – e ali era vau de gado: ‘Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro no mais sozinho do vago…’ – foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um Corguinho que defrontei – um riachim à toa de branquinho – olhou para mim e me disse: – Não… – e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para adiante.” [ROSA: p. 365]

 

*Texto apresentado no Desilha_2016. Seminário de Pesquisas em arte e cidade realizado na Casa França Brasil entre os dias 27 e 27 de julho, 2016.

** Poeta. Professor da UNIRIO.