“Não eu”, de Samuel Beckett – Tradução de Lauro Baldini

NÃO EU

Samuel Beckett

Tradução de Lauro Baldini

 

Escrito em inglês, na Primavera de 1972. Encenada pela primeira vez no Forum Theater of the Lincoln Center, em Nova York, setembro de 1972. Publicado pela primeira vez pela Faber and Faber, Londres, em 1973. Encenada pela primeira vez na Grã-Bretanha em 1973, no Royal Court Theater, em Londres.

 

Palco na escuridão, exceto pela BOCA, no fundo do palco à direita, cerca de 2,5 metros acima do nível do palco, fracamente iluminada em close, por debaixo, resto do rosto na sombra. Microfone invisível.

 

AUDITOR, na frente do palco à esquerda, alto e em pé, sexo indeterminável, envolto da cabeça aos pés em uma djellaba de cor preta e tecido solto, com capuz, fracamente iluminado, de pé num pódio invisível de cerca de 1,5 metros de altura. Demonstra por sua atitude dirigir-se diagonalmente à BOCA; imóvel completamente exceto por quatro movimentos breves onde indicado. Ver Nota.

 

Ao apagarem-se as luzes do teatro, ouve-se a voz ininteligível da BOCA por detrás da cortina. Apagam-se todas as luzes. Voz continua ininteligível por detrás da cortina por l0 segundos. Com a ascensão da cortina segue-se improvisação a partir do texto até a abertura total da cortina e atenção do público:

 

…solta… neste mundo… este mundo… coisinha de nada… antes do tempo… em um bura- o quê?… menina?… sim… menininha… dentro deste… solta dentro deste… antes do tempo… buraco esquecido por Deus chamado… chamado… não importa… pais desconhecidos… não se ouviu falar… ele desaparecido… em pleno ar… mal abotoou suas calças… ela similarmente… oito meses depois… quase no ponto… então sem amor… poupada disso… sem amor tal como normalmente acontece… criança sem fala… na casa… não… nem de fato para constar nenhum de tipo algum… nenhum amor de tipo algum… em nenhum estágio subsequente… um caso tão típico… nada que mereça nota até chegar aos sessenta quando -… o quê?… setenta? bom Deus!… chegando aos setenta… vagando em um campo… procurando a esmo por flores… para fazer um buquê… alguns passos e para… olhar perdido no espaço… então continua… um pouco mais… para e novamente olha o nada… e assim vai… à deriva… quando de repente… gradualmente… tudo se foi… toda aquela luz de uma manhã do início de abril… e ela se viu no… o quê?… quem?… não!… ela!… [pausa e primeiro movimento]… se viu no escuro… e se não exatamente… insensível… insensível… pois ela ainda podia ouvir o zumbido… assim chamado… nos ouvidos… e um facho de luz veio e se foi… veio e se foi… tal como a lua poderia lançar… à deriva… para dentro e para fora de uma nuvem… mas tão entorpecida… se sentindo… se sentindo tão entorpecida… ela não sabia… em que posição estava… imagine!…em que posição estava!… se em pé… ou sentada… mas o cérebro -… o quê?… de joelhos? sim… se em pé… ou sentada… ou de joelhos… mas o cérebro – o quê?… deitada? sim… se em pé… ou sentada… ou de joelhos… ou deitada… mas o cérebro ainda… ainda… de certa forma… pois seu primeiro pensamento foi… oh muito tempo depois… súbito lampejo… criada como ela havia sido para crer… com os outros órfãos… em um misericordioso… [breve risada] Deus… [gargalhada] primeiro pensamento foi… oh muito tempo depois… súbito lampejo… ela estava sendo punida… por seus pecados… alguns dos quais então… futuras provas se provas fossem necessárias… passaram por sua mente… um após o outro… então descartados como tolices… oh muito tempo depois… pensamento descartado… enquanto ela subitamente percebeu… gradualmente percebeu… que ela não estava sofrendo… imagine!… não estava sofrendo!… de fato não podia lembrar… assim de cor… quando ela sofrera menos… a não ser claro que ela tivesse… nascido para sofrer… ha!… sido feita para sofrer… como na estranha época… de sua vida… quando claramente pretendeu ter prazer… ela não tinha… de fato… prazer algum… de forma alguma… de tal forma que… aquela sensação de punição… por um pecado ou outro… ou por todos eles… ou nenhum motivo em particular… para seu próprio bem… algo que ela entendia perfeitamente… aquela sensação de punição… que inicialmente ocorreu a ela… criada como ela havia sido para crer… com os outros órfãos… em um misericordioso… [breve risada] Deus… [gargalhada] inicialmente ocorreu a ela… depois descartado… como tolice… não era talvez tanta tolice… afinal… assim por diante… tudo aquilo… ideias vãs… até que outro pensamento… oh muito tempo depois… súbito lampejo… realmente muito tolo mas -… o quê?… o zumbido… sim… zumbindo o tempo todo… assim chamado… nos ouvidos… apesar de que é claro na verdade… não exatamente nos ouvidos… no crânio… fraco rugido no crânio… e o tempo todo esse facho, essa luz… como o luar… mas provavelmente não… certamente não… sempre no mesmo ponto… agora brilha… agora se encobre… mas sempre no mesmo ponto… como a lua não poderia… não… lua alguma… tudo parte de um mesmo desejo de… atormentar… apesar de que na verdade… de modo algum… nenhuma pontada… por enquanto… ha!… por enquanto… esse outro pensamento então… oh muito tempo depois… súbito lampejo… muito tolo mas tão típico dela… de certa forma… que talvez fosse melhor… que ela gemesse… de vez em quando… se contorcer ela não podia… como se em verdadeira agonia… mas não podia… não podia se fazer… alguma falha em sua maquiagem… incapaz de enganar… ou a máquina… mais provavelmente a máquina… tão desconectada… nunca recebeu a mensagem… ou incapaz de responder… como anestesiada… não podia fazer o som… nenhum som… som de espécie alguma… nenhum grito de socorro por exemplo… caso estivesse tão propensa a… gritar… [grita] então escutar… [silêncio] gritar novamente… [grita de novo] e então escutar novamente… [silêncio] não… poupada disso… tudo silencioso como túmulo… nenhuma parte -… o quê?… o zumbido?… sim… tudo silencioso exceto pelo zumbido… assim chamado… nenhuma parte dela se movia… que ela pudesse sentir… somente as pálpebras… presumivelmente… abrem e fecham… desligar a luz… chamam isso de reflexo… nenhum sentimento de espécie alguma… mas as pálpebras… mesmo nos melhores momentos… quem as sente?… abrindo… fechando… toda aquela umidade… mas o cérebro ainda… suficientemente ainda… oh tanto então!… naquele estágio… . no controle… sob controle… para questionar mesmo isso… pois naquela manhã de abril… assim pareceu… naquela manhã de abril… ela fixando com seu olho… um sino distante… enquanto ela se apressava em sua direção… fixando com seu olho… para que ele não escapasse… nem tudo tinha se ido… toda aquela luz… de si… sem nada… nada… sobre ela… . e assim por diante… assim por diante pareceu… questionamentos vãos… e tudo completamente imóvel… doce silêncio de túmulo… quando subitamente… gradualmente… ela perceb-… o quê?… o zumbido?… sim… tudo completamente imóvel exceto pelo zumbido… quando subitamente ela percebeu… palavras estavam… o quê?… quem?… não!… ela! [pausa e segundo movimento]… percebeu… palavras estavam vindo… imagine! palavras estavam vindo… uma voz que ela não reconheceu… a princípio… tanto tempo fazia desde que ela soara… então finalmente teve que admitir… não podia ser outra… senão a sua própria… certos sons de vogais… que ela nunca ouvira… em outro lugar… de modo que as pessoas a olhavam… nas raras ocasiões… uma ou duas vezes ao ano… sempre no inverno estranho motivo… olhavam para ela sem compreender… e agora esse fluxo… contínuo fluxo… ela que nunca… ao contrário… praticamente muda… todos os dias… como pôde sobreviver!… mesmo nas compras… fazendo compras… supermercado… só entregava a lista… com a sacola… velha sacola preta de compras… então ficava ali, esperando… pelo tempo que fosse… no meio da multidão… imóvel… olhando o nada… boca semiaberta como sempre… até que ela estava de volta em sua mão… a sacola de volta em sua mão… então pagava e ia… nem mesmo um tchau… como pôde sobreviver!… e agora esse fluxo… sem entender metade dele… nem a quarta parte… sem noção… do que estava dizendo… imagine!… sem noção do que estava dizendo!… até que começou a tentar… se iludir… não era sua absolutamente… não era sua voz absolutamente… e sem dúvida teria… vital ela deveria… estava no ponto… após longos esforços… quando subitamente ela sentiu… gradualmente ela sentiu… seus lábios se moverem… imagine!… seus lábios se moverem!… enquanto é claro até então ela não tinha… e não somente os lábios… as bochechas… a mandíbula… o rosto inteiro… todas aquelas -… o quê?… a língua?… sim… a língua na boca… todas aquelas contorções sem as quais… nenhuma fala é possível… e ainda da maneira mais comum… não sentiu absolutamente… tão concentrado se está… naquilo que se diz… o ser completo… escutando atentamente suas palavras… de forma que não só ela tinha… tivesse ela… não só tivesse ela… que desistir… admitir que estava só… sua voz sozinha… mas este outro terrível pensamento… oh muito tempo depois… súbito lampejo… ainda mais terrível, se possível… aquele sentimento voltava… imagine!… o sentimento voltando!… começando no alto… e descendo… a máquina inteira… mas não… poupada daquilo… somente a boca… por enquanto… ha!… por enquanto… então pensando… oh muito tempo depois… súbito lampejo… isso não pode continuar… tudo isto… tudo aquilo… fluxo constante… esforçando-se para ouvir… para fazer algo daquilo… e seus próprios pensamentos… fazer algo deles… todo… o quê?… o zumbido?… sim… todo o tempo o zumbido… assim chamado… tudo aquilo ao mesmo tempo… imagine!… todo o corpo, como se esvaindo… somente a boca… lábios… bochechas… mandíbula… nunca-… o quê?… língua?… sim… lábios… bochechas… mandíbula… língua… sem parar um segundo… a boca flamejando… fluxo de palavras… em seu ouvido… praticamente em seu ouvido… sem entender a metade… nem um quarto… nenhuma ideia do que está dizendo… imagine!… nenhuma ideia do que está dizendo… e não consegue parar… sem parar… .ela que um momento antes… um momento… não conseguia fazer um som… som de espécie alguma… agora não consegue parar… imagine!… não consegue interromper o fluxo… e o cérebro inteiro implorando… algo implorando no cérebro… implorando que a boca pare… que pause um momento… um momento que seja… e resposta alguma… como se não tivesse ouvido… ou não pudesse… não pudesse parar um segundo… como enlouquecida… tudo aquilo junto… esforçando-se para ouvir… juntar as partes… e o cérebro… delirante… tentando encontrar sentido… ou fazê-la parar… ou no passado… desenterrando o passado… flashes de todos os lugares… caminhadas principalmente… caminhando todos os dias… dia após dia… alguns passos e então para… olha para o nada… e então continua… mais alguns… para e olha novamente… e continua… à deriva… dia após dia… ou daquela vez em que chorou… a única vez que consegue lembrar… desde que era um bebê… deve ter chorado quando bebê… talvez não… não é essencial para a vida… somente o choro do nascimento para começar… respirando… e então nada até ali… um velho trapo… sentada olhando a mão… onde foi?… na fazenda… uma noite a caminho de casa… casa!… um pequeno aterro na fazenda… crepúsculo… sentada olhando a mão… ali em seu colo… palma voltada para cima… subitamente molhada… a palma… lágrimas presumivelmente… dela presumivelmente… ninguém mais por quilômetros… nenhum som… somente as lágrimas… sentada e vendo-as se secarem… tudo acabado em um segundo… ou agarrando-se em algo… o cérebro… pulsando por si só… pega algo e continua… nada ali… segue em frente… ruim como a voz… pior… pouco sentido… tudo aquilo junto… não pode -… o quê?… o zumbido?… sim… o tempo todo o zumbido… fraco rugido como cachoeiras… e o facho de luz… . pulsando… começando a se mover… como o luar, mas não… todas as partes do mesmo… fica de olho naquilo também… o canto do olho… tudo aquilo junto… não pode continuar… Deus é amor… ela será purificada… de volta ao campo… sol da manhã… abril… o rosto afundado na grama… nada exceto as cotovias… e continua… agarrando-se em algo… esforçando-se para escutar… a incomum palavra… tirar dela algum sentido… o corpo inteiro anestesiado… somente a boca… ensandecida… e não pode parar… sem parar… algo que ela -… algo que ela tinha que… o quê?… quem?… não!… ela! [pausa e terceiro movimento]… algo que ela tinha que-… o quê?… o zumbido?… sim… o tempo todo o zumbido… fraco rugido… no crânio… e o facho de luz… procurando por algo… sem dor… por enquanto… ha!… por enquanto… então pensando… oh muito tempo depois… súbito lampejo… talvez algo que ela tinha que… tinha que… dizer… seria isso?… algo que ela tinha que… dizer… coisinha de nada… antes de seu tempo… em um buraco esquecido por Deus… sem amor… poupada disto… sem falar por toda a vida… praticamente sem falar… como pudera sobreviver!… daquela vez no tribunal… o que tinha ela a dizer por si mesma… culpada ou inocente… levante-se mulher… fale mulher… lá ficou olhando o vazio… boca semiaberta como sempre… esperando ser levada dali… feliz pela mão em seu braço… agora isto… algo que ela tinha que dizer… seria isso?… algo que diria… como era… como ela-… o que?… tinha sido?… sim… algo que diria como tinha sido… como ela viveu… viveu sem parar… culpada ou não… sem parar… até os sessenta… algo que ela… o quê?… setenta?… bom Deus!… sem parar até os setenta… algo que ela mesma não sabia… não saberia caso ouvisse… então perdoada… Deus é amor… doce misericórdia… nova a cada manhã… de volta ao campo… manhã de abril… rosto na grama… nada exceto as cotovias… pegue aquilo… tire isto daí… mais alguns-… o quê?… não é isso?… nada a ver com isso?… nada que ela pudesse dizer?… tudo bem… nada que ela pudesse saber… tente outra coisa… pense em outra coisa… oh muito tempo depois… súbito lampejo… também não é isto… tudo bem… outra coisa novamente… e assim por diante… acerto isto no final… pense em tudo continue por tempo suficiente… e então perdoada… de volta a-… o quê?… também não é isso?… nada a ver com isto também… nada que ela pudesse pensar?… tudo bem… nada que ela pudesse saber… nada que ela pudesse pensar… nada que ela-… o quê?… quem?… não!… ela! [pausa e quarto movimento]… coisinha de nada… solta antes de seu tempo… buraco esquecido por Deus… sem amor… poupada disso… sem falar por toda a vida… praticamente sem falar… mesmo sozinha… nunca em voz alta… mas não completamente… às vezes repentino desejo… uma ou duas vezes ao ano… sempre no inverno estranho motivo… as longas noites…… horas de escuridão… repentino desejo de… contar… então pra fora e para o primeiro que vê… o banheiro mais próximo… começa a colocar tudo para fora… contínuo fluxo… coisa insana… metade das vogais erradas… ninguém consegue acompanhar… até que ela viu o olhar que lhe lançavam… então morre de vergonha… rasteja de volta para dentro… uma ou duas vezes por ano… sempre no inverno estranho motivo… longas horas de escuridão… agora isso… isso… mais e mais rápido… as palavras… o cérebro… pulsando como louco… pega algo rapidamente e segue… nada ali… em algum outro lugar… tenta em algum outro lugar… o tempo todo algo implorando… algo nela implorando… implorando para parar… não atendida… preces não atendidas… ou não ouvidas… fraca demais… e assim por diante… continua… tentando… sem saber o quê… o que estava tentando… o que tentar… o corpo inteiro anestesiado… somente a boca… como ensandecida… e assim por diante… continua-… o quê?… o zumbido?… sim… o tempo todo o zumbido… fraco rugido como cachoeiras… no crânio… e o facho de luz… aqui e ali… sem dor… por enquanto… ha!… por enquanto… tudo aquilo… continua… sem saber o quê… o que ela estava-… o quê?… quem?… não!… ela!… ela! [pausa]… o que ela estava tentando… o que tentar… não importa… continuar… [cortina começa a descer] no final se acerta… e então de novo… Deus é amor… doce misericórdia… nova a cada manhã… de volta ao campo… manhã de abril… rosto na grama… nada exceto as cotovias… pegar isto…

 

[Cortina se fecha. Luzes apagadas. Voz continua por detrás da cortina, ininteligível, por 10 segundos, até que as luzes se acendam.]

 

Movimento: consiste no simples levantar de braços de ambos os lados e sua queda, num gesto de compaixão impotente. O movimento diminui a cada reincidência até se tornar quase imperceptível na terceira vez. A pausa é apenas o suficiente para conter o movimento enquanto BOCA se recupera da recusa veemente de abandonar a terceira pessoa.