O CAPITALISMO É (TAMBÉM) NONSENSE – Lewis Carroll – Tradução de Sérgio Medeiros
O CAPITALISMO É (TAMBÉM) NONSENSE
Sérgio Medeiros*
Relendo agora a versão final da minha tradução integral do romance infantojuvenil Sylvie and Bruno/Sylvie and Bruno Concluded, de Lewis Carroll, me deparei novamente com a história do capitalismo nonsense, imaginada por esse escritor. Escrita em versos, essa história visa explicar a diferença entre as palavras “conveniente” e “inconveniente”…
O capitalismo funciona, mas é conveniente para uns e inconveniente para outros!
PEDRO E PAULO
“Pedro é tão pobre”, disse o nobre Paulo,
“Mas eu fui sempre seu melhor amigo:
E embora de pouco eu possa dispor,
Ao menos algo devo lhe emprestar.
São raros os que compartilham bens,
Exceto por motivos egoístas!
Mas eu me solidarizo com Pedro,
E CINQUENTA LIBRAS EU LHE OFEREÇO!”
Pedro se sentiu feliz ao saber
Da generosidade do seu amigo!
Assinou com alegria o contrato
Prometendo um dia saldar sua dívida!
“Não vamos”, disse Paulo, “exagerar:
Mas é melhor marcarmos uma data:
Assim, seguindo o conselho de um sábio,
Às doze, do dia quatro de maio.”
“Mas agora é abril!”, Pedro protestou.
“Dia primeiro, para ser sincero.
Cinco semaninhas passarão logo,
Nem terei tempo para me coçar!
Dê-me doze meses para comprar
E vender e especular à vontade.”
Disse Paulo: “Não posso mais mudar:
Às doze, do dia quatro de maio.”
“Sim, sim!”, disse Pedro com um suspiro.
“Passe-me o dinheiro, que já me vou.
Eu fundo uma Sociedade Anônima
E ganho logo umas libras honestas.”
“Mortifica-me”, disse Paulo, “parecer cruel,
O dinheiro lhe será emprestado:
Porém, antes de uma semana ou duas,
Não será deveras conveniente.”
Semana após semana o pobre Pedro
Veio e retornou cheio de aflição;
Pois ouvia sempre a mesma resposta:
“Não poderemos resolver isso hoje.”
E então as chuvas de abril cessaram…
E cinco breves semanas voaram.
E a reposta que ele ouvia era a mesma:
“Não me parece a hora conveniente!”
Em maio o pontual amigo Paulo
Veio ao meio-dia com o advogado.
“Achei melhor convocá-lo”, ele disse,
“Nunca é cedo demais para essas coisas.”
Pedro tremeu feito uma vara verde:
Arrancou suas madeixas graciosas:
E em pouco tempo seu cabelo louro
Havia se espalhado no assoalho.
O advogado estava perto dele,
Sentia pena, mas nada dizia:
As lágrimas tremiam nos seus olhos,
E segurava o contrato assinado:
Mas então o dever falou mais alto,
Reassumiu sua postura habitual.
“Eis o que a lei determina”, ele disse:
“Pague ou o processo seguirá seu curso!”
Comentou Paulo: “Como eu me arrependo
De tê-lo intimado nesta manhã!
Considere, Pedro, seu modo de agir.
Careca você não será mais rico!
Acredita que arrancado os cabelos
Suas dívidas vão desaparecer?
Eu lhe imploro: evite essa violência,
Ela só aumentará meu sofrimento!”
“Como seria eu capaz de infligir”,
Disse Pedro, “a esse nobre coração
Uma dor desnecessária? Contudo,
Por que o rigor na aplicação da lei?
Embora possa ser legal pagar
O empréstimo que nunca recebi,
Esse tipo de negócio parece-me
Hoje extremamente inconveniente!”
“Minha nobreza de alma é quase nada,
Comparada com a de outros aqui!”
(Paulo enrubesceu, e bastante humilde
Não tirou os seus olhos do assoalho.)
“Essa dívida vai devorar tudo
E tornar esta vida uma desgraça!”
“Não, Pedro!”, respondeu logo seu amigo,
“Não deve amaldiçoar o destino!”
“Você tem o que comer e beber:
É respeitado na sociedade:
E em uma barbearia, suponho,
Costuma frisar suas belas suíças.
Embora não vá alcançar a nobreza –
— No seu maior grau, devo esclarecer –,
O caminho da honestidade é simples,
Mas ele é bem pouco conveniente!”
“É verdade”, disse Pedro, “estou vivo:
Mantenho a minha posição no mundo:
Uma vez por semana ainda posso
Untar e frisar as minhas suíças.
Mas o meu patrimônio é reduzido:
Meus rendimentos estão exauridos:
E mexer no capital, convenhamos,
É neste momento inconveniente!”
“Mas pague seus débitos!”, bradou Paulo.
“Pague agora seus débitos, meu caro!
O que importa se devorará todo
O seu denominado ‘patrimônio’?
Você já está uma hora atrasado:
Mas cederei à generosidade.
Sairei perdendo, mas e daí?
NÃO VOU MAIS COBRAR DE VOCÊ OS JUROS!
“Que bom! Que legal!”, Pedro então gritou.
“Contudo, venderei minha peruca…
O alfinete da gravata também…
E o piano de cauda e o meu leitão!”
Todos os seus bens ganharam asas:
E enquanto cada tesouro sumia,
Suspirava ao ver a situação
Cada dia menos conveniente.
Semanas, meses, anos passaram:
Pedro não era mais do que pele e osso:
E certa vez ele disse chorando:
“Paulo, e aquele empréstimo prometido?”
Paulo disse: “Vou lhe emprestar um dia
Todo o dinheiro que tenho poupado…
Ah, Pedro, você é um homem feliz!
Tem deveras uma sorte invejável.”
“Estou ficando obeso, como vê:
Porém raramente me sinto bem:
Hoje já não me alegro tanto ao ouvir
O sino anunciar o meu jantar:
Mas você saltita como um menino,
Tornou-se muito esbelto e desenvolto:
O sino do jantar é uma alegria
Para esse seu apetite tão sadio!”
Disse Pedro: “De fato, estou ciente
Desse meu estado de felicidade:
Contudo, eu poderia dispensar
Esse bem-estar que agora possuo!
O que você chama de meu apetite
É apenas o sofrimento da fome:
E, quando nenhum prato está à vista,
O som da sineta é só de pesar!”
“Meu paletó nem espantalho quer:
E você não verá botas como estas.
Ah, Paulo, uma nota de cinco libras
Bastaria para me dar alento!”
Disse Paulo: “Estou bastante surpreso
De ouvi-lo hoje expressar-se nesse tom:
Temo que não tenha compreendido
Os benefícios da situação!”
“Você não come nunca além da conta:
E está pitoresco nesses farrapos:
Desconhece a triste dor de cabeça
Que acompanha um maço qualquer de cédulas:
E sobra-lhe tempo para o cultivo
Da satisfação, que é o que lhe interessa…
Você não percebe quão confortável
É atualmente o seu padrão de vida!”
Disse Pedro: “Não poderei sondar
A fundo essa sua personalidade,
Porém no seu caráter descobri
Ao menos uma grave inconsistência.
Você costuma poupar longamente
Quando existe uma promessa a cumprir:
No entanto, quanta pontualidade
Na sua cobrança implacável da dívida!”
“Nunca somos cautelosos demais”,
Disse Paulo, “ao dispormos das riquezas.
Com as contas, como você comentou,
Sou mesmo a própria pontualidade.
Devemos cobrar sim o que nos devem:
Porém, quando se trata de emprestar,
Devemos decerto refletir bem
E escolher a hora mais conveniente!”
Aconteceu um dia, quando Pedro
Roía sentado a crosta de um pão,
Paulo vir animado lhe falar,
Agarrando-lhe a mão amavelmente.
“Sua mesa”, ele disse, “é muito frugal:
Assim, meu caro, para não ferir
Seu orgulho trazendo aqui um estranho,
Deixei meu advogado à espera lá fora!”
“Você com certeza deve lembrar-se
De quando sua riqueza foi sumindo:
Todos caçoaram da sua pobreza,
Menos eu, que não agi como os outros!
E quando você, Pedro, perdeu tudo
E foi reduzido a algo desprezível,
Eu não preciso pedir que recorde
Que fui então solidário com o amigo!”
“O conselho que lhe dei naquela época,
Cheio de sabedoria e finura:
Dado de graça, embora eu na verdade
Pudesse ter tirado disso um ganho!
Mas me abstenho de mencionar
Os feitos que poderia citar…
Pois me gabar, Pedro, é o tipo de coisa
Que eu não aprecio nunca fazer.”
“Porém, como é vasta a soma total
De todas as gentilezas que fiz,
Desde os dias já longínquos da infância
Até aquele empréstimo em abril!
As cinquenta libras! Fique sabendo
Que elas consumiram minha poupança:
Mas tenho neste peito um coração,
E VOU LHE EMPRESTAR MAIS CINQUENTA LIBRAS!”
“Nada disso”, Pedro disse com lágrimas
de gratidão em ambas as bochechas:
“Ninguém se lembra melhor dos seus feitos,
Passados e recentes, do que o seu amigo:
E essa nova oferta, devo admitir,
É verdadeiramente generosa…
Contudo, aproveitar-me agora dela
Seria bem pouco conveniente!”
*Em tradução de Sérgio Medeiros, o romance de Carroll será publicado, na sua versão integral, pela editora Iluminuras.