Lendo Mitológicas, de Lévi-Strauss, na cia. de Viveiros de Castro – Maria Aparecida Barbosa
Lendo Mitológicas, de Lévi-Strauss, na cia. de Viveiros de Castro
Maria Aparecida Barbosa
UFSC
PESQUISA DE CAMPO
Reprodução do livro Lévi-Strauss, Antropologia e Arte, Minúsculo – Incomensurável
Introdução
Parto do objetivo de compreender a formulação estruturalista e ao mesmo tempo repensar o instrumental teórico que serve de base aos estudos das literaturas estrangeiras modernas. Nessa perspectiva específica que é necessariamente da literatura comparada se lida com o objeto constituído por textos de diferentes culturas, o que representa trunfo legítimo ante à filologia de uma única língua ou nação isolada. A confrontação uni-dimensional focada numa literatura estrangeira específica, todavia, está no mais das vezes fadada a simplificações, por isso requer a escolha de metodologias que possam proporcionar uma radicularidade mais complexa tanto nos processos investigatórios, como nos resultados esperados. Para efeito de delinear o percurso deste artigo, ressalvadas as distinções características das disciplinas, indago de que maneira a problemática que se coloca sobre a mitologia gemelar, em Lévi-Strauss e em Viveiros de Castro, pode oferecer suporte à reflexão teórico-metodológica em nosso âmbito dos estudos literários comparativos.
Passo, na sequência do introito, às leituras antropológicas.
A importante aproximação entre a Linguística e a Antropologia no período entre 1942 bis 1945 acontece quando os exilados Lévi-Strauss e Roman Jakobson, respectivamente belga e russo, trabalham juntos e fundam uma espécie de centro de estudos, a “École livre des hautes études de New York”. Jakobson que fundara o Círculo Línguístico de Moscou (19165), depois o Círculo Linguístico de Praga (1926) e mais tarde o Círculo Linguístico de New York (1944), propicia ao estudioso das relações etnológicas e culturais de parentesco ameríndias a confluência com as pesquisas que vinham sendo realizadas por formalistas russos e tchecos sobre estruturas fonológicas. Lévi-Strauss postula o emprego desses construtos linguísticos a suas investigações, e a partir daí a disseminação dessas proposições a outras disciplinas, entre elas aos estudos literários, virá constituir o estruturalismo francês. Para tratar da análise estrutural em linguística e antropologia, ele desenvolve o propósito e formula as questões iniciais:
Novas perspectivas então se descortinam. Já não se trata mais de uma colaboração apenas ocasional, em que lingüistas e sociólogos, cada qual trabalhando em seu canto, lançam-se mutuamente, de tempos em tempos, o que crêem poder ser de interesse para o outro. No estudo dos problemas de parentesco (e certamente também no estudo de outros problemas), os sociólogos se vêem numa situação formalmente análoga à dos lingüistas fonólogos: como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação […] Poderiam os sociólogos, utilizando um método análogo quanto à forma (senão quanto ao conteúdo) ao que é utilizado pela fonologia, levar sua ciência a um progresso análogo ao que acaba de se dar nas ciências lingüísticas? (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 46)
Com todas as cautelas que suscitam as analogias, e tendo em vista o esforço suplementar de constituir aqui o ensaio de uma conexão, interessa a clave relacionada à mitologia gemelar ameríndia – objeto de pesquisa nos volumes Mitológicas e sobretudo revista (conforme SZTUTMAN 2001, MEDEIROS 2008, CASTRO 2013) em História de Lince – que constitui modos de uma arqueologia que, mais que opor ou aproximar, engendra analogias com pares assimétricos, desiguais.
O estruturalismo é costumeiramente associado a uma dileção imoderada por classificações dicotômicas e a uma propensão a enxergar dualidades em toda parte. Isso é como tantos clichês: não está completamente longe da verdade, mas também não chega nem perto dela. Pois é justamente na obra de Lévi-Strauss que se acham alguns dos instrumentos mais eficazes, dentre os hoje disponíveis, para se problematizar radicalmente – e fundamentar etnograficamente essa problematização – os esquemas dicotômicos que formam como as muralhas de nossa cidadela intelectual. (CASTRO, 2013, p. 17)
Ao indicar Lévi-Strauss como fundador do pós-estruturalismo, Viveiros de Castro introduz enfatizando a condição dos povos ameríndios brasileiros como sujeitos cujo pensamento contribuiu para irrigar a tradição filosófica ocidental. E chama a atenção para o fato de que finalmente, após cinco séculos, o ocidente tenha se dado conta do terrível equívoco antropológico.
Um sinal que o estimula a refletir essa refração, essa pronúncia, essa complicação das oposições binárias que vão então se multiplicar literalmente ao infinito é a recorrente expressão usada por Lévi-Strauss “ce n’est pas tout” (Castro, 2008, p. 1). A interminibilidade marcada pela insistente expressão ou por similares na mesma acepção constitui a possibilidade que potencia a passagem da proposição do estruturalismo para a pós-estruturalista.
O Velho Mundo teria tido uma propensão a apresentar soluções extremas aos problemas da gemelaridade, ao passo que o Mundo Ameríndio primou pelas soluções intermediárias (Lévi-Strauss, 1993, p. 206). Por isso as pesquisas sobre a mitologia ameríndia se estendem num plano horizontal de comparações sempre mostrando vieses e variações dos mesmos mitos segundo as diferentes nações indígenas. O “M1” chamado “mito de referência” que nas Mitológicas introduz a série de outros mitos subsequentes não tem primazia, é somente um modo de se adentrar a trama complexa que se enreda cada vez mais.
Lévi-Strauss aventa exemplos de indícios dessas formas intermediárias nos mitos europeus. Seria o caso dos irmãos titãs da mitologia grega, Prometeu e Epimeteu, afinados com o espírito dos gêmeos ameríndios brasileiros. Com efeito, mesmo nas versões literatizadas desses mitos europeus, que surgem posteriormente, eles continuam se apresentando muito diversos. A figura de “Prometheus” da poesia (1772-1774) de Goethe é o humanista que afronta o deus pai Zeus num desafio em favor do homem. Ao passo que seu irmão, Epimeteu, se faz presente na literatura como o protagonista da peça “Epimeteu, o que pensa depois”, de Jorge de Sena (1970-1971), e traz a causa dos malefícios que lega ao homem inerente à etimologia do antropônimo epi-depois meteus-pensava, que no subtítulo se repete.
O antropólogo Lévi-Strauss examina uma tendência constante a dirimir essas diferenças gemelares que outrora, portanto, teriam sido mais marcadas no pensamento indo-europeu. Reminiscências dessas distinções ele assinala nos talentos diferenciados dos gêmeos Castor e Pólux, considerando que o primeiro era especialista em equitação e o segundo perito em lutas. Ambos teriam nascido da mãe Leda, sendo Castor filho de Tíndaro, e Pólux, do divino Zeus. As tradições divergem quanto a isso, alguns os identificam como dois filhos do deus, outras os remetem a filhos de um progenitor de natureza dupla, divina e humana, segundo Lévi-Strauss (1993, 207). Mas o mito grego rejeita a diferença entre a mortalidade de um que deveria habitar uma sepultura e a imortalidade do segundo que residiria imortalizado no firmamento celeste e os transforma, a ambos, nos astros Gêmeos da constelação estelar e do signo zodíaco.
Castro localiza nos estudos da mitologia ameríndia os pontos de inflexão entre “dialética da abertura e do fechamento” segundo os chamava Lévi-Strauss que no curso da análise se deparava com o inusitado, por exemplo em O Homem Nu, e se via obrigado a sair do círculo traçado e a incluir na investigação as quatro tensões: “necessidade ou contingência, completude ou inacabamento, estrutura ou multiplicidade, transcendência da regra ou imanência do sentido” (2008, p. 2).
Igualmente na Aula inaugural do Collège de France, ele teria marcado sua preferência antes por uma concepção combinatória que diferencial de estrutura, e esses parâmetros metodológicos de estudo se transformam paulatinamente, cada vez mais afinados com “fluxos dinâmicos que com permutações algébricas”, atribuindo então, com as pesquisas mitológicas prenhes de inovações semânticas e fronteiras porosas de alterações sintáticas, fronteiras mais fractais às analogias.
História de Lince
Esse é o livro de Lévi-Strauss que se desenvolve em vias paralelas durante todo o tempo: uma das vias acompanha questões concernentes à relação entre brancos e índios, a outra se volta às movimentações do nevoeiro diante da ação dos ventos. Numa região costeira chuvosa, formada por estreitos fiordes e golfos que se inserem montanhas adentro o nevoeiro é um fenômeno real. São razões objetivas e empíricas que promovem a relevância dessas intuições.
O livro destaca os siameses Lince e Coiote que originariamente teriam sido idênticos no pensamento ameríndio. Não obstante as distâncias geográficas que separam os estados norte-americanos Montana do Novo México, ou Oklahoma do Texas, e nos entremeios escalonadas diversificações, os povos de línguas e culturas várias, Kutenai, Wichita e os Sia contam o mito de modo bem parecido, segundo a pesquisa. É que devido às desavenças surgidas entre os irmãos, Lince puxou o focinho, as orelhas e as patas de seu inimigo Coiote. Na desforra, Coiote aplainou o focinho, as orelhas e o rabo de Lince. Isso explica a razão pela qual esses irmãos gêmeos, um canídeo e outro felíno, são hoje em dia tão desiguais. A similaridade que teve lugar em algum momento dessa metamorfose advinda da contenda foi uma condição provisória. A simetria pode assumir um valor inclusive maléfico. Uma das ponderações advindas dessas sucessivas variações dos mitos gemelares em descontínuas formatações aponta para uma espécie de desvio, clinâmen filosófico no pensamento ameríndio, que conduz “em todo e qualquer lugar do cosmo ou da sociedade” as coisas que um dia tenham sido instáveis a necessariamente resultarem perpetuamente em dualismo instável.
Com nuanças que caracterizam os nevoeiros conforme as estações do ano, as altitudes e pressões e densidades, eles podem adquirir as mais distintas proporções e riscos, conforme os estudos meteorológicos. Com um nevoeiro de inverno Lince pode prejudicar a caça e provocar forme. São os irmãos cães ou coiotes os capazes de elevar a cerrada bruma aos elevados picos, promovendo com o cálido aquecimento a fartura dos vales cheios de cervos. Assim como em seus atributos físicos apresentam correlações sempre diferenciadas, também, por conseguinte, as mudanças do tempo se revezarão, se alternarão, à mercê dos dois protagonistas, ora promovendo o frio ou as temperaturas amenas.
Em outros registros, a luta contra o vento frio, dependendo da região denominado Chinook, passa a ser o embate dos terráqueos contra povos de céu, como na versão shuswap. Num tempo quando os animais sofriam de frio, Lebre e Raposa partiram em expedição para o Sul, onde viviam os senhores do Chinook e das brisas mornas. Lá furaram o saco que guardava o vento, mas foram castigados pelos povos do Sul que para lhes impedir a fuga causaram um calor terrível. Desde então os ventes quentes adentram até as terras do norte, atenuando o rigor invernal e com isso o sofrimento dos homens: é o que conta o mito (Lévi-Straus 1993, p. 211).
Nesse livro escrito já na velhice, o antropólogo se evade das eventuais acusações de rigidez em seu pensamento estruturalista, com a seguinte afirmação:
Essa noção fundamental de um dualismo em perpétuo desequilíbrio não transparece apenas na ideologia. Seja na América do Norte (onde a evidenciei entre os Winnebago) ou na América do Sul, reflete-se também na organização sociai de vastos grupos de população. As tribos da família linguística Jê e outras, suas vizinhas no Brasil Central e oriental, ilustram-no. (LÉVI-STRAUS, 1993, p. 213)
Nas Mitológicas estão sempre presentes essas redes de analogias arrastando através de um novo mito uma ou mais adventícias e miúdas diferenciações que produzem dualismos em desequilíbrio, ora na mitologia, ora na organização social, ora em ambas.
Essa natureza intrínseca e deliberadamente inacabada das dualidades conceituais indígenas da antropologia cultural é o que importa examinar no sentido de que venha a contaminar objetivos, vieses da pesquisa em literaturas estrangeiras modernas.
Referências bibliográficas:
CASTRO, Viveiros de. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
________. “Lévi-Strauss fundador do pós-estruturalismo”, Museu Nacional de Antropologia, México, 2008.
LÉVI-STRAUS, Claude. Mitológicas. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify volume 1, 2010.
________. História de Lince. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
________. Antropologia estrutural 1. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
MEDEIROS, Sérgio. “A história de Lince, mito dos gêmeos desiguais”. Caderno Cultura do Estadão, 22 de novembro de 2008.
SZTUTMAN Renato. “Lévi-Strauss e o Desafio Americanista”. In: Novos Estudos CEBRAP. no. 61, novembro 2001, pp. 57-75.