Inspeção Geral: Farda, Comédia ou Sátira? – Magda Jacqueline M. Kremer

Florianópolis, 06 de junho de 2011

INSPEÇÃO GERAL: FARSA, COMÉDIA OU SÁTIRA?

Por Magda Jacqueline M. Kremer*

Peça escrita em algumas semanas, tempo recorde, “O Inspetor Geral”, cujo tema foi considerado inadequado por uma grande parte do público, os conservadores, já os liberais viram, através dela, uma encenação da realidade russa,onde o governo exercia censura e outros tipos de controle sobre a educação, a imprensa e a vida pública, tempos turbulentos do reinado absolutista do Czar Nicolau I.
Apesar da repressão neste período, a Rússia viu florescer a literatura e as artes. Iniciou-se a internacionalização e reconhecimento dos artistas russos, através dos trabalhos de Aleksander Pushkin, Nikolai Gógol, entre outros.
Pushkin foi pioneiro no uso do discurso vernacular em seus poemas e peças teatrais, criou um estilo de narrativa que misturava drama, romance e sátira associada com a literatura russa e influenciou fortemente os escritores russos seguintes, como seu amigo Gógol.
O próprio Gógol costumava atribuir o tema da peça a Pushkin, que lhe havia narrado a história de um aventureiro que se apresentara, na região de Nóvgorod, como inspetor geral, para explorar os funcionários. De acordo com Arlete Cavaliere, o próprio Pushkin foi tomado, em Nóvgorod, por um inspetor viajando incógnito em missão secreta!
Na verdade não é o tema que me intriga… creio que preciso deixar claro que ler O Inspetor  é muito divertido, apresenta situações inusitadas e muito possíveis para qualquer um, independente do continente em que vive. Mas quando você leitor for buscar mais informações sobre a peça “O Inspetor Geral”, vai encontrar três palavras usadas pelos críticos: comédia, farsa e sátira. Bem, Gógol escolheu a palavra “anedota” para explicar a gênese de seus contos e peças teatrais. O efeito profundo desta “anedota” nos aproxima até hoje de maneira atemporal da exposição do ser humano, sua ironia, desejos, fraudes e possíveis “concessões” para obter o que quer, lícitas ou não. E que maneira o autor encontra para abordar em seu “O Inspetor Geral” temas que na época jamais passariam pela censura do Czar? Voltamos a alma humana… amigos de Gógol,  influentes  e conhecedores da vaidade de Nicolau I, comparam-no a Luís XIV (absolutista e culto), como o supremo árbitro da questão, como fora o rei francês no caso de Tartufo, de Molière,e… touché!! Voltando a peça, ela é encenada em Moscou e apresentada pela primeira vez em 19 de abril de 1836, na presença do Czar Nicolau I e sua família, como escreveu Cavaliere.
Acredito que, nesse momento, devo compartilhar contigo o que alguns críticos escreveram sobre a peça: Ánnenkov, «havia na farsa, momentos e cenas de tamanha vida (…)»; Carpeaux, «A interpretação mais comum do Inspetor é de uma sátira contra a corrupção da burocracia russa sob o governo do czar Nicolau I.» e depois ele comenta, «O Inspetor é porém uma ‘grande’ comédia» e mais adiante «O Inspetor, seria a tragédia das consciências enganadas, tragédia disfarçada de comédia.»; Bulgárin, declarou que O Inspetor não era uma comédia e que se tratava de uma farsa e de um conjuto de caricaturas; Viázemski, príncipe e crítico literário do jornal O Contemporâneo, «É uma verdadeira comédia. Mesmo que se apresentem caricaturas, não se trata de modo algum de uma farsa.» Vejam, não  só o tema é polêmico! Quando terminamos de ler a peça, podemos apontar, aqui e ali, traços farsescos, cômicos e até sátiros.
Agora possivelmente você deve estar pensando e aristotélicamente buscando nos seus arquivos as definições de comédia, sátira e farsa. Vamos lá, Aristóteles, em sua “Arte Poética”, diz que a tragédia  trata essencialmente de homens superiores (heróis) e a comédia fala sobre os homens inferiores (pessoas comuns da pólis). Vamos lá, farsa é uma modalidade burlesca (cômica) que se caracteriza por personagens e situações caricatas, as quais têm por objetivo principal divertir o público. A farsa difere da comédia e da sátira por não se preocupar com a verossimilhança nem pretender o questionamento de valores. Se distingue da sátira por não estar preocupada com uma mensagem moral, busca apenas o humor e, para isso, vale-se de todos os recursos, como: assuntos introduzidos rapidamente ou análises psicológicas mais profundas, ações exageradas e situações inverossímeis. Recorre a estereótipos (a alcoviteira, o amante, o pai feroz, a donzela ingênua) ou situações conhecidas (o amante no armário, gêmeos trocados, reconhecimentos inesperados). O objetivo da sátira é atacar os males da sociedade, o que deu origem à expressão latina: “castigat ridendo moris”, que se pode traduzir livremente como “castigar os costumes pelo riso”. Por seu caráter denunciador, a sátira é essencialmente paródica, pois se constrói através do rebaixamento de personalidades (reais ou fictícias), instituições e temas que, segundo as convenções clássicas, deveriam ser tratados em estilo elevado.
Começamos com Aristóteles e não nos desvencilhamos mais! Essa mania de classificar e nomear gêneros e épocas datando-os parece ser uma necessidade “clássica”, que nos obriga a elegermos um ou outro, classificá-los aqui ou lá. Esse caráter normativo e prescritivo aristotélico que se importava em diferenciar cada gênero e natureza e que buscava as essências de cada um para discriminar as diferenças. Por outro lado, e aqui cito René Wellek e Austin Warren, em sua obra “Teoria da Literatura”, (que apresentam duas definições sobre o gênero: do pensamento clássico e do pensamento moderno) graças (!) a teoria moderna que admite misturas e o hibridismo entre elas, preocupando-se mais em buscar pontos em comum entre os gêneros, sem limitar ou definir com regras taxativas, afinal gênero teatral sempre é uma definição questionável quando classificamos obras que permeiam vários gêneros e muitas vezes criam, para os adeptos da classificação, um novo gênero. Vale à pena lembrar que toda definição sempre será marcada por questões e pontos de vista culturais, momentos e interesses dominantes.

*Professora de espanhol, aluna do Curso de Artes Cênicas da UFSC