Satie: dramaturgia de Jarry à Ionesco – Marina Veshagem

Satie: dramaturgia de Jarry à Ionesco

Marina Veshagem*

Considero importante pensarmos em que contexto se insere a peça “Le Piège de Méduse”. Ela foi escrita em 1913, período de vanguarda na Europa, mas estabelece relação dialógica com outras concepções e estéticas anteriores e até mesmo posteriores a ela. A partir de meados do século XIX, intensificou-se no continente europeu um processo de modernização, que começou com a prosperidade social nos Estados em fase de industrialização e urbanização.  Paris, cidade onde Satie viveu e produziu, com o tempo se tornou “a capital cultural de um território muito maior do que a França”. Esse processo foi indispensável para a produção e consumo em massa de bens como as belas-artes. Foram construídas salas de concertos, que eram lotadas de espectadores, e se fundaram conservatórios e orquestras. Era o público burguês que se formava.

Além de permitir o desenvolvimento de um público, essas mudanças foram muito importantes para desencadear alterações significativas no fazer teatral. Dois fatores foram essenciais nesse contexto, a partir de 1860: a utilização da iluminação elétrica, que permitiu o uso de novos recursos em cena, e o apagamento das fronteiras e das distâncias entre os países, que resultou em que as teorias e práticas teatrais não estavam mais limitadas geograficamente, mas podiam circular e se difundir. A partir disso, duas mudanças centrais acontecem no teatro: surge a noção de encenação e a figura do encenador teatral e criam-se estéticas de rompimento do ilusionismo no teatro.

Agora, o encenador pode ser soberano na constituição de um espetáculo: ele coordena a composição dos elementos em cena (cenário, figurino, adereços, música, texto, etc) que são colocados em perspectiva, em um espaço e tempo determinados, para um público. O texto escrito deixar de ser o componente mais importante do espetáculo, a encenação traz diversos elementos tão importantes quanto o texto a ser oralizado. Sobretudo quando não há mais o objetivo único de criar ilusão, ou seja, de levar o espectador que assiste à peça a se identificar, acreditar que tudo o que se passa no palco é realidade. Assim, o teatro se admite festa, jogo, dança, disfarce. Essas noções são importantes para entender que um texto dramatúrgico escrito a partir do início do século XX pode ainda mais ser pensado enquanto jogo e permite diversas possibilidades de leitura e concepções de montagem.

Alfred Jarry foi um dos autores que se destacaram nessa fase de transição. Ele é considerado indispensável para pensar o teatro do absurdo e, por isso, guarda grandes afinidades com a dramaturgia de Erik Satie. Ele é o autor do afrontoso “Ubu Rei”, que quando estreou em 1896, causou grandes constrangimentos. A cortina se abriu e a primeira palavra proferida foi “Merdre!” – que traduzida ao português seria “merdra” –, e as manifestações foram diversas. A peça conta a história de Ubu Rei, um burguês comilão que resolve dar um golpe de estado arbitrário para poder comer todo o patê de fígado que quisesse. A peça retrata as aventuras dos novos-ricos, a superficialidade e a moralização fácil, mas sua insolência descarada contestava o teatro corrente, sendo engraçado demais para ser ignorado. Estudiosos apontam que Ubu Rei mudou radicalmente o teatro, pois a partir de então se abriu uma brecha: dramaturgos poderiam dizer o que quisessem.

Essa é uma das produções que possibilitou que, depois de pouco mais de 20 anos, Erik Satie pudesse escrever sua única peça de teatro. “Le Piège de Méduse”, de 1913, transita nesse mesmo espaço, a especulação financeira, a superficialidade e as aventuras dos novos-ricos, da burguesia emergente. O personagem central da peça, o barão Méduse é um investidor muito rico e quer casar sua filha Frisette com um jovem recomendado pelo general, o Astolfo. O barão possui um empregado, com o qual estabelece uma relação dúbia, é íntima por vezes e eles se tratam por “tu” – resquício de um acordo feito anos atrás -, mas o empregado é um tanto insolente, então em outros momentos o barão precisa manter as aparências e coloca rapidamente o servo em seu lugar. O barão, sujeito desconfiado, resolve testar a lealdade do pretendente de sua filha, com uma armadilha. Ele quer dar uma oportunidade para que o futuro genro possa provar que o ama (o sogro, e não a menina). Uma série de acontecimentos sem propósito se segue, sempre gerados pela tentativa de controle da situação por Méduse.

Contrariamente à dramaturgia clássica, “Le Piège de Méduse” possui apenas um ato dividido em nove cenas, sempre intercaladas por partituras para piano com músicas de diversos gêneros (valsa, quadrilha, mazurca e polca), todas compostas por Erik Satie, que era conhecido como músico e pianista. Essas canções intercalam as cenas e são dançadas por um macaco mecânico empalhado chamado Jonas, criado para a distração pessoal do barão. O macaco é, ao final da peça, descrito pelo barão como “o melhor de todos nós”.

A armadilha que o barão propõe ao seu futuro genro no final da peça é a pergunta: “Você sabe dançar sobre um olho, sobre o olho esquerdo?”. À qual, o pretendente responde, sem nada entender, que não, não sabe. O barão fica muito feliz e o acolhe imediatamente a sua família.

O estudioso Michel Leiris acredita que a verdadeira armadilha (piège) proposta por Satie está justamente na linguagem. Os procedimentos da peça, que muitas vezes são os mais prosaicos e reconhecidos pelo leitor, enganam o pensamento, deixando-o num terreno pouco seguro e estável. Quando o leitor sente, finalmente, que está prestes a encontrar um sentido, acontece a disjunção, e ele é lançado novamente ao universo da busca, frustrado e inseguro.

Roland Barthes cita três formas principais de subversão da linguagem, e a que é mais utilizada em “Le Piège de Méduse” é a que consiste em respeitar a sintaxe e deslocar a racionalidade da mensagem, o que atinge a própria forma da racionalidade, a lógica. A primeira cena da peça Le Piège de Méduse já é exemplo disso (em minha primeira tradução):

CENA I

Medusa e, em seguida, Policarpo

Medusa

Estou sozinho? …. Bem sozinho? .. Ele olha embaixo de todos os móveis e vai sentar-se na escrivaninha  Eu adoro a solidão, a tranquilidade. Nada me incomoda. Os formigamentos nas tíbias me são energicamente insuportáveis; o soluço me incomoda o suficiente; as meias elásticas demasiado curtas obstruem facilmente meu cérebro e me deixam afônico – moralmente, é claro…..

O que eu tenho então sobre o nariz? … sou tonto: estes são meus óculos!….. meus óculos de ouro….

Não há nada de errado com a sintaxe neste trecho, porém, a cada frase, há um afastamento da racionalidade. Nada o incomoda, mas ínfimas coisas o aborrecem; meias elásticas curtas obstruem o órgão no extremo oposto do corpo, da razão, o cérebro; isso o deixa afônico, mas não privado de sua voz, e sim de sua moral. Em Satie, as palavras viajam ao encontro de sentidos que podem ser montados pelo autor e pelo leitor, numa de constelação de universos possíveis. Em “Le Piège de Méduse”, um dos recursos que multiplica os sentidos e universos é a linguagem nonsense. Esse tipo de linguagem, em linhas gerais, é um gênero de literatura narrativa que alterna uma multiplicidade de significados com uma simultânea ausência de sentido. Esse balanço é efetivo pelo jogo com as regras da linguagem, lógica, prosódia e representação, ou uma combinação delas.

Diversos dispositivos fazem isso em “Le Piège de Méduse”, eles propõem um jogo de busca pelo significado, o que dificulta a atribuição unívoca de sentido a uma palavra. Por exemplo, em um trecho, uma mesma palavra, “coupez” – cortar – assume diferentes significados em uma ligação telefônica que o barão faz para o general e é uma mulher quem atende. O barão pergunta se é o general quem fala e em seguida implora: “Não senhorita. Não desligue, não corte (a ligação com) o general”. O primeiro “coupez” tem como sentido mais próximo “desligar”, mas o segundo inicia um afastamento deste primeiro, podendo significar “cortar”. A confusão fica mais clara no decorrer dessa fala, quando a palavra continua a ser repetida e, ao fim, o barão acaba afirmando: “Vous avez coupé le cheval, aí mais uma vez com o sentido de “cortar”. Ele completa com: “Je ne reconnais pas la voix du cheval!”sendo que havia solicitado falar com o general. O sentido escapa a cada repetição da palavra, quando a narrativa parecia se aproximar de uma definição.

Um último exemplo que trarei aqui é quando, ao final da peça, o barão anuncia que seu genro entrará para a antiga família que deu seu nome a um animal invertebrado da classe dos “acéphales” e ainda diz que este animal vive no mar. Méduse, o barão, é também o nome do animal invertebrado medusa, em português também conhecido como água-viva, da família dos cnidários. Cnidário, em francês, se diz “acalèphe”. Na peça, o barão estabeleceria um jogo de palavras quando, por um “lapso”, declara que sua família é “acéphale”, que significa acéfalo, sem cérebro – novamente o órgão da razão é lembrado -, em vez de “acalèphe”.

Satie tangenciou os movimentos de vanguarda: o termo surrealismo foi utilizado pela primeira vez no balé acompanhado de sua música e, em 1920, ele foi convidado para escrever para o suplemento ilustrado dadaísta “Le Pilhaou-Thibaou. Entretanto, em maio do ano seguinte, no Téâtre Michel, Pierre Bertin encenou “Le Piège de Méduse” e ela nunca figurou nas antologias de Dada ou compilações de teatro Surrealista. Vemos, então, que oficialmente Erik Satie não é identificado como integrante de nenhum movimento de vanguarda específico.

Por outro lado, ele é apontado como precursor de diversos movimentos e estilos, como o minimalismo, a música repetitiva e a “musique d’ameublement” – nossa música ambiente -, além do teatro do absurdo, que viria a se desenvolver após a segunda guerra mundial. O termo teatro do absurdo foi desenvolvido para o teatro produzido a partir dos anos 50 por dramaturgos como Beckett, Ionesco, Arrabal, Adamov e outros. Eles tinham como características comuns utilizar a linguagem de uma forma a escancarar o fato de que a comunicação não é eficiente e para expressar estados psicológicos, também utilizavam nonsense verbal e as peças não contavam uma a história, mas apresentam a situação básica de um indivíduo: comunicavam uma configuração de imagens poéticas, dentre outras características.

Passando por Jarry, que com sua ciência chamada Patafísica, antecipou tendências do teatro do absurdo, posso aproximar agora Satie, principalmente, do absurdista Eugène Ionesco. As características que os aproximam são temáticas, como o mundo superficial e as convenções burguesas (a peça “A Cantora Careca”, por exemplo, foi descrita por Ionesco como um ataque à “pequena burguesia universal… a personificação da ideia concebida e dos adágios, o conformista ubíquo”), e culminam na linguagem, como o uso de frases feitas, banais, e do nonsense verbal. Em Ionesco, o palco é invadido por uma quantidade crescente de pessoas e coisas, como em “As Cadeiras”, e em “Le Maître”, o grande homem tão aguardado é um corpo sem cabeça (“acéphale”). O dramaturgo, assim como Satie (que chamou “Le Piège de Méduse” de comédia lírica), tinha apreço pelas classificações inusitadas de suas peças: “As Cadeiras” é farsa trágica, “Jacques ou A Submissão” é comédia naturalista e “Vítimas do Dever” é pseudodrama. Ionesco também preferia as peças curtas, de um ato, achava que em três atos se insere muita coisa supérflua. Por isso, diversas de suas peças também tinham ar de sketches de cabaré.

Assim, a dramaturgia de Satie pode ser vista numa linha de desenvolvimento do teatro, mas que não é necessariamente sucessiva. O movimento diacrônico permite que as relações com o antes e o depois aconteçam de maneira mais livre.

 

*Jornalista. Mestranda na UFSC