Maria Firmina: o centenário da morte da primeira romancista negra do Brasil – Bruna Meneguetti

Maria Firmina: o centenário da morte da primeira romancista negra do Brasil

 

Bruna Meneguetti*

 

Maria Firmina dos Reis

 

Em 2017 completa-se o centenário da morte da primeira romancista negra do Brasil e primeira autora de romance abolicionista em toda a língua portuguesa. Maria Firmina dos Reis publicou Úrsula em 1859, livro que estava fora de catálogo, mas em setembro desse ano ganha nova edição pela Editora PUC Minas. Eduardo de Assis Duarte, pesquisador da literatura afro-brasileira, autor de livros sobre o assunto e doutor em letras, assina o posfácio e escreve sobre a contextualização histórica da obra no conjunto de escritos de escravizados no Ocidente.

 

Filha de mãe branca e pai negro, provavelmente escravo, Firmina adquiriu, dentro das possibilidades, referências culturais e o domínio da norma culta através da família da mãe, composta de músicos e um primo estudioso. É possível que tal fato proporcionou que escrevesse músicas, sendo a primeira mulher aprovada num concurso público para o magistério em sua terra natal, o Maranhão, e também para que fundasse, mais tarde, a primeira escola mista — com alunos brancos e negros — gratuita do estado, algo ainda inovador naquele tempo.

 

Ao contar a história de Úrsula, protagonista branca; Túlio, escravo que se torna livre; Tancredo, que se apaixona por Úrsula; Fernando, o grande vilão; e Susana, que narra suas vivências antes de ter sido trazida como escrava, Firmina busca humanizar o negro através da valorização da memória, algo pouco comum na época. Diferente delas, “os autores defendiam a abolição por esta causar a corrupção da família branca brasileira, como acontece em Vítimas-algozes (1869), de Joaquim Manuel de Macedo e A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães”, explica Duarte. Ainda que muito importante, Firmina é pouco citada e conhecida. De acordo com Duarte, no posfácio de uma edição de Úrsula de 2004, os elementos determinantes para o silenciamento foram a indicação de autoria feminina, a distante localização geográfica, o tratamento inovador dado ao tema da escravidão e a ausência de assinatura.

 

Firmina omitiu seu nome assinando as obras como “Uma Maranhense”. No prólogo, ainda diz: “Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor”, falando logo em seguida que o mesmo não tem valor por ser de uma mulher. Antigamente, era comum esse “recato literário”, pois a escrita não costumava ser feita por mulheres. “Evidências confirmam que escritoras do século 19 e primeiras décadas do século 20, na produção hispano-americana, apresentaram-se com uma escrita ‘menor’ como estratégia de veiculação e aceitação de suas obras”, explica Luciana Martins Diogo, mestra em Culturas e Identidades Brasileiras pela USP.

 

Embora existisse o “recato”, Firmina não só publicou como antecedeu diversas questões atuais. Para o professor Duarte, “a autora maranhense, pela primeira vez, constrói a crítica do patriarcado escravista do duplo ponto de vista da vítima – mulher e negra”. Para Luciana, um dos grandes legados da obra firminiana foram “seus questionamentos em relação ao lugar e ao papel da mulher na sociedade”, algo que se percebe, por exemplo, quando a protagonista diz: “Nunca pude dedicar a meu pai amor filial que rivalizasse com aquele que sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher, e ela, triste vítima, chorava em silêncio”.
Em questão histórica, Firmina, no entanto, não foi quem inaugurou a literatura afro-brasileira. Segundo Luciana, essa literatura pode ser entendida como uma interação dinâmica de cinco componentes: temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público. Já para Oswaldo de Camargo, jornalista, estudioso da literatura negra e autor dos livros como Carro do Êxito (1972), A Descoberta do Frio (1979), O Negro Escrito (1987), é fundamental que “o escritor negro se veja como negro, tire as consequências e escreva seu texto. Por isso que um branco não pode fazer literatura negra”.  Maria Nilda de Carvalho Mota, a Dinha, poeta e doutoranda de estudos comparados nas Letras, que atua nos campos de literatura afro-brasileiras e africanas, no entanto, acha que é possível, teoricamente, escrever da perspectiva de um negro, mas diz que não tem encontrado isso. “Noto que as pessoas que não vivem na pele tendem a ser sensacionalistas porque passou pelo estômago, que é a indignação, mas tem que passar pelo coração e pela cabeça”.

 

Assim, para entender como a história da literatura negra se desenvolveu, é preciso voltar antes mesmo de Firmina. O negro apareceu primeiramente nos poemas (que antecedem os romances na maior parte das literaturas). Oswaldo explica que o primeiro escritor mulato que vai dar “relances de uma literatura voltada para a questão racial” é Domingos Caldas Barbosa, com o livro Viola de Lereno (1798). Oswaldo cita o verso em que se lê: “Ai Céu! / Ela é minha iaiá / O seu moleque sou eu”.

 

“Manuel Bandeira fala que nossa poesia vai começar com Domingos Barbosa, porque sua linguagem usa pela primeira vez palavras brasileiras. Quando ele fala moleque, isso tem uma conotação porque moleque era sempre preto. Muito tenuamente, está insinuando também uma condição racial”. Mas, segundo Oswaldo, o primeiro autor que usa o eu negro para escrever foi Luiz Gama, com o livro Primeiras Trovas de Getulino, de 1859. Um dos poemas, conhecido como Bodarrada, diz: “Se negro sou, ou sou bode, / pouco importa. O que isso pode? / Bodes há de toda a casta, / pois que a espécie é muito vasta… “.

 

Ou seja, no mesmo ano em que Gama torna-se o primeiro negro a se dizer como tal em São Paulo, Maria Firmina, anonimamente, torna-se a primeira mulher a fazer literatura negra no Maranhão. “Bode quer dizer mulato. Então é um passo grande entre Caldas Barbosa e Luiz Gama, que vai responder à sociedade da paulicéia mostrando que ela está cheia de bodes, mas todos tentando esconder a sua parte negra. Alguns conseguiram”, explica Oswaldo.

 

Para o escritor e estudioso, não é à toa que o negro não costumava ser visto ou citado sequer pelos mulatos. “A primeira coisa que um pardo ou mulato fazia era passar a linha de cor porque ser negro era sinônimo de escravo. A partir daí há um embranquecimento social muito sério. Então, o próprio branco, quando uma pessoa escura ascendia, queria tirá-lo do hall de pessoas negras”. Não é à toa que até hoje o rosto verdadeiro de Maria Firmina é desconhecido. O branqueamento da imagem foi sendo construído ao longo desses anos com base em um equívoco. Um retrato existente na Câmara dos Vereadores de Guimarães foi inspirado na imagem de uma escritora branca Gaúcha, que acreditava-se ser Firmina. O Busto que está no Museu Histórico do Maranhão também reproduz a imagem de uma mulher branca.

 

Apesar das tentativas de se ocultar o negro da história, muitos outros nomes surgiram, como o mulato Francisco de Paula Brito, o primeiro editor do Brasil. Considerado um dos precursores do conto, além disso, editou O Filho do Pescador (1843), primeiro romance do país, escrito pelo mulato Antônio Gonçalves Teixeira e Souza. Outros nomes são Cruz e Souza, filho de ex-escravos e que fez literatura negra; Lima Barreto, que se assume como mulato; Lino Guedes, que é o primeiro autor negro a escrever mirando o público da mesma cor; isso sem citar Machado de Assis e Mario de Andrade. Paralelamente a eles, outros escritores surgem colocando o negro em suas obras, nem sempre de modo positivo.

 

Segundo estudos da pesquisadora Maria Nazareth Soares Fonseca (2011), os negros na literatura podem ser agrupados do seguinte modo quando são vistos como objetos: escravos e ex-escravos, como em Gregório de Matos (século XVII); branqueamento do negro, como em O Mulato, Aluísio de Azevedo (1881); vítima, como em O navio negreiro (1869), de Castro Alves; negro ruim, como em O bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha; negro como depravado, em A carne (1888), de Júlio Ribeiro; negro como inferioridade, como em O demônio familiar (1857), de José de Alencar.

 

A partir de 1870, o negro é tema constante na pena de quase todos os poetas do Brasil e, desde o início da década de 1980, há um aumento da produção de escritores que “vinculam a noção de sujeito à de etnia afrodescendente”, como explica Eduardo. Com o primeiro Cadernos Negros, em 25 de novembro de 1978, publicação editada pelo grupo Quilombhoje, que proporcionou a autores negros a possibilidade de terem textos publicados,, de preferência com a temática negra, as mulheres finalmente voltam a aparecer. “Os escritores e escritoras negras existiam, mas não tinham meios de publicar”, informa Maria Nilda. A iniciativa ainda existe e já revelou diversos autores e autoras consagradas, como Conceição Evaristo, que publicou seu primeiro poema em uma edição dos Cadernos e hoje é uma das principais expoentes da literatura afro-brasileira.

 

Outros nomes atuais ou recentes na nossa literatura são Carolina Maria de Jesus, que publicou Quarto de Despejo (1960), um diário onde a escritora registrava o dia a dia como catadora de latas na favela do Canindé, em São Paulo;  Joel Rufino dos Santos, escritor, historiador e ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura (1979 e 2008); Ana Maria Gonçalves, com Um defeito de cor, Prêmio Casa de las Américas de 2007; Cuti (Luiz Silva), com mais de 20 títulos publicados abrangendo poesia, contos, dramaturgia e crítica, além de ser um dos fundadores da ONG Quilombhoje Literatura. Para Maria Nilda, que também escreve, “a gente é mais comercializável do que no passado. Mas ainda falta muito, né?”.

 

Para termos uma dimensão melhor dos tempos atuais, há a pesquisa de Regina Dalcastagnè, presente no livro Literatura Brasileira Contemporânea: Um Território Contestado (2012), que analisou 258 romances publicados no período de 1990 a 2004 pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco. De acordo com os dados, no romance brasileiro atual, apenas 7,9% das personagens são negras. Desse pequeno universo, 20,4% são bandidos, 12,2% empregados e 9,2% são escravos. Entre as causas de morte, 61,1% das personagens negras são assassinadas pelos escritores em seus romances, enquanto apenas 28,1% das personagens brancas são vítimas de assassinatos.

 

Para Oswaldo, a dificuldade do autor negro hoje em dia é apostar em uma temática que não é conhecida. “O importante não é, de fato, ser lembrado como um grande autor. Não são citados tanto agora? Não importa. O benefício que estão fazendo com seus textos, não dá para mensurar. A literatura não é feita só com grandes autores, é feita com arroz e feijão também”. Já para Maria Nilda, a literatura atual vive um momento “revolucionário”, que está mudando as formas, linguagens, conteúdos e sujeitos. “Escritoras novas são impulsionadas pelas mais velhas, mas a gente também as promove. É dialético esse movimento. Elas nos dão referência e a gente lhes dá sustentabilidade”.

 

Assim, cem anos depois da morte de Firmina, a história mudou muito, mas a voz da escritora e de tantas outros que vieram depois ainda ecoa em um país que pouco conhece a história e cor de seus escritores e escritoras do passado e presente. Como diria Firmina em seu livro: “Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!… Aquele que também era livre no seu país… Aquele que é seu irmão?”.

 

* Jornalista e escritora, autora do romance histórico O Céu de Clarice (Amazon).