Petulante e Supérflua Introdução à peça de Karl Kraus: Os Últimos Dias da Humanidade – Maria Aparecida Barbosa

Petulante e Supérflua Introdução à peça de Karl Kraus: Os Últimos Dias da Humanidade

 

Maria Aparecida Barbosa*

 

Dificilmente alguém se atreveria a querer fazer uma introdução a

Os últimos dias da humanidade.

Seria tão petulante quanto supérflua. Cada um dos que nasceram neste século

e foram condenados a nele viver carrega dentro de si tal introdução.

O monstruoso pós-parto da Primeira Guerra –

justamente aquele movimento que levou à Segunda e a seu desenlace –

paira ainda diante de nossos olhos e

da ameaça com que se encerrou temos todos plena consciência […]

Elias Canetti, A consciência das palavras, p. 256.

 

Karl Kraus

 

Se, desde 2007, se conhece em tradução brasileira Karl Kraus (1874-1936) pelos Aforismos, a literatura de Elias Canetti o apresenta por via indireta há mais tempo. Os depoimentos a seu respeito estão disseminados, por exemplo em Massa e Poder, nos ensaios “Karl Kraus, Escola da Resistência” (um dos meus ídolos, que se tornou um deus que, apesar disso, após cinco anos de reinado solitário, foi desalojado) e “O Novo Karl Kraus” (donde a epígrafe), de A consciência das palavras. É no título do segundo volume da trilogia autobiográfica que Canetti sela com mais evidência seu parentesco – na tradução brasileira Uma luz em meu ouvido, do alemão Die Fackel im Ohr/Uma tocha no ouvido. Die Fackel [A Tocha] era o jornal que Kraus escrevia e publicava sozinho na cidade de Viena. Ademais, nesse livro, o capítulo “Karl Kraus e Veza” empreende uma apresentação com o foco na presença, na voz literal e figurada dessa personalidade, a partir de uma análise descritiva da primeira das mais de cem leituras públicas de Kraus que viria a presenciar.

À maneira do seu autor Kraus, também a peça Os últimos dias da humanidade – Tragédia em cinco atos com prólogo e epílogo faz jus a designações superlativas. Publicada pela primeira vez em 1922 num volume de 792 páginas e apelidada pelo próprio dramaturgo de “teatro de Marte”, considerando que somente naquele planeta poderia ser encenada, ressurge numa versão adaptada para o palco no ano de 1929. É esse texto mais sintético que serve de base para a hodierna publicação da Balão Editorial, tradução ao português brasileiro por Mariana Ribeiro de Souza.

Ainda sobre o autor, uma imagem. Walter Benjamin inicia seu artigo “Karl Kraus” com uma evocação: Velhas gravuras mostram o mensageiro apressado que anuncia com os cabelos arrepiados, erguendo com as mãos e vibrando ao alto um jornal cheio de guerra e pestilência, assassinatos e sofrimentos, catástrofes de fogo e água, toda a sorte de “Últimas Notícias”. Quanto à restrição relativa à linguagem informativa em seu caráter público, coletivo, ambos os pensadores, contemporâneos, estavam de acordo. Benjamin deplorava os efeitos maléficos da imprensa à faculdade de elaboração da própria experiência pelo público leitor, e a responsabiliza pela crise da forma épica, da narrativa e do gênero romance. Por sua vez, Kraus profetizava que “o jornalismo serve apenas aparentemente ao tempo atual. Na verdade, ele destrói a sensibilidade intelectual da posteridade”.

Kraus via com desprezo o domínio das opiniões e das inferências das notícias jornalísticas nas circunstâncias mais corriqueiras da vida cotidiana; seu ódio e sua luta contra essas arbitrariedades mantiveram-se inabaláveis. Vários trechos da peça testemunham essa discussão que exaustivamente desenvolvia em artigos de seu jornal. Por um lado, o papel dos jornalistas: “Temos que despertar o apetite do público pela guerra e pelo jornal, as duas coisas caminham juntas. Por isso os detalhes são muito importantes”. Outra passagem zomba do poeta que escrevinha versos medíocres na redação do jornal. Por outro lado, dois diálogos entre pai e filho denunciam a vã tentativa de recepção e processamento das ambíguas estatísticas dos noticiários.

A frase submetida à técnica, três ou mais edições diárias levam consequentemente à famigerada linguagem. Além disso, o jornalismo se pauta pela exigência de abarcar diversos âmbitos e rubricas. A submissão ao vínculo técnico redunda no jornalismo que é expressão de uma função modificada da linguagem no mundo capitalista. Na interpretação diacrônica, o ensaio “Karl Kraus” não renunciou à indicação dessas mesmas fórmulas de composição no jornal Die Fackel. “Aglutinando em equilíbrio os tons de lamentação, discórdia e euforia dessas vozes correntes, a obra efêmera de Kraus as reproduz.”

As críticas de Kraus vão se somando subliminar ou explicitamente na longa peça Os últimos dias da humanidade para constituir finalmente um mordaz balanço de sua época. Condensadas no drama satírico – e em seu conjunto se contrapondo ao misto de ignorância e crueldade que durante as primeiras décadas do século XX o autor detecta nas relações humanas, cujo caráter de humanidade paulatinamente se atrofia como sinaliza o título da obra – essas críticas se apresentam em forma de dezenas de sketches dramáticos. Os diálogos são protagonizados por epítetos, quase nunca são atribuídos nomes próprios a esses personagens em interlocução: o soldado, o cavalheiro, a prostituta, o psiquiatra, a moça da esquerda, a moça da direita, o professor, um cliente, um garçom, o assinante, o patriota e assim por diante. A condição de anonimato lhes outorga uma categoria abstrata e atemporal que possibilita remissões e um diálogo evidente com figuras atuantes nos dias atuais.

 

Os últimos dias da humanidade

Karl Kraus

Tradução:

Mariana Ribeiro de Souza

Ato V, cena 9

 

Uma rua deserta. Anoitece. De repente, precipitam-se figuras por todos os lados, cada uma delas com um maço de papel impresso. Ofegantes, correm para cima e para baixo pela rua, esbravejando. Parecem apregoar um assassinato. Os gritos são ininteligíveis. Algumas parecem dar a notícia literalmente com um gemido. Soa como se estivessem arrancando a dor da humanidade do fundo do poço.

 

… peciaal…! ção speciaal…! dição ciaal…! cobertura compleeeta…! tuuura…! pleeta…! extraaa…! ex traaa…! traaa…! ciaaal… aal…!

(Desaparecem. A rua fica deserta.)

(Muda a cena.)

 

cena 10

 

Resmungão à escrivaninha. Ouve-se lá fora, bem ao longe, o grito:… ciaaal!

 

São cinco horas. A resposta é esta. O que me chega da criação devastada nada mais é do que o eco da minha sangrenta loucura, um som com que dez milhões de mortos me acusam de eu ainda estar vivo; eu, que tive olhos para ver assim o mundo, eu, cujo olhar acertou nele de tal modo que se converteu naquilo que via. Não foi por terem tido de morrer… não, terem tido de viver assim transforma em pecado todo o sono e toda a morte na cama do futuro. Não é a morte de vocês… mas a sua vida que quero vingar naqueles que lhes impuseram este fardo! Dei-lhes a forma de sombras que eles são e que mentindo quiseram transformar em aparência! Arranquei-lhes a carne! Mas dei corpo aos pensamentos da sua estupidez, aos sentimentos da sua maldade, ao ritmo terrível da sua insignificância, e deixo-os se moverem. Se a voz desta época tivesse sido gravada por um fonógrafo, a verdade exterior teria desmentido a interior, e o ouvido não teria reconhecido nem uma nem outra. Assim, o tempo torna irreconhecível a essência e concederia anistia ao maior dos crimes jamais cometido sob o sol, sob as estrelas. Preservei essa essência, e meu ouvido descobriu o som dos feitos, meus olhos, o gesto dos discursos, a minha voz, limitando-se a repetir, citou-os de tal modo que a tônica dominante ficou registrada para todo sempre.

E deixem que eu conte ao mundo, ainda ignorante,

Como tudo isto aconteceu. Ouvirão

Atos cruéis, sangrentos, monstruosos,

Juízos de acaso, cegos assassinatos,

Mortes pela astúcia e pela violência

E planos falidos, que por descuido

Caíram sobre a cabeça de seus autores. Isto tudo eu posso

Narrar com verdade.

E se os tempos já não ouvissem mais, um ser que está acima deles seria capaz de ouvir! Nada mais fiz do que abreviar esta quantidade mortífera que, em sua incomensurabilidade, invocaria a vicissitude da época e dos jornais. Todo seu sangue afinal não era mais do que tinta… pois agora se escreverá com sangue! Esta é a guerra mundial. Este é o meu manifesto. Ponderei sobre tudo detidamente. Assumi a tragédia que se desdobra nas cenas da humanidade em decomposição, para que a escutasse o espírito disposto a apiedar-se das vítimas, mesmo que ele próprio tivesse renunciado para sempre à ligação com o ouvido humano. Ele que receba a tônica dominante desta época, o eco da minha loucura sangrenta, que me torna cúmplice destes ruídos. Ele que a aceite como redenção!

(Muda a cena.)

 

*Professora de Literatura na UFSC, tradutora.