A Teoria da Transcriação de Haroldo de Campos: O Tradutor como Recriador – Vanessa Geronimo

A Teoria da Transcriação de Haroldo de Campos: O Tradutor como Recriador

 

Vanessa Geronimo*

 

Neste breve ensaio serão apresentadas as concepções que envolvem a teoria da transcriação, elaborada por Haroldo de Campos, e os pensamentos de autores que complementam a teoria haroldiana. Serão apresentadas, respectivamente, a teoria da transcriação de Haroldo de Campos; a concepção musical e a tradução como crítica na teoria da transcriação. Por fim, serão apresentadas as considerações finais e referências bibliográficas.                                                                                                                                   Ao elaborar a teoria da transcriação, Haroldo de Campos inspirou-se principalmente na ideia de tradutor como recriador, de Ezra Pound; na ideia da influência da língua-fonte sobre a língua-alvo, de Walter Benjamin; na ideia de traduzir a forma da língua-fonte na língua-alvo, de Roman Jakobson; e inspirou-se também na teoria dos signos de Peirce, seus intérpretes Morris e Bense, e em autores como T. S. Eliot e Paul Valéry. De acordo com a teoria haroldiana, o texto será recriado. Isso significa que a tradução não pode considerar apenas o conteúdo, pois a maneira como o texto é construído está ligada ao conteúdo. Uma poesia, por exemplo, tem o significado representado pelo todo do texto.

 

A Teoria da Transcriação de Haroldo de Campos

A teoria haroldiana vê a tradução como criação e como crítica. Um texto criativo, como por exemplo a poesia, torna-se impossível de traduzir levando em consideração todos os seus recursos. Com isso, pode-se dizer que a teoria haroldiana é uma teoria de tradução de textos estéticos, mais especificamente, de textos estéticos que mais apresentam desafios para o tradutor. Esses desafios fazem surgir a tese da impossibilidade da tradução e, com isso, também surge a ideia da recriação, como afirma Campos: “admitida a tese da impossibilidade em princípio da tradução de textos criativos, parece-nos que esta engendra o corolário da possibilidade, também em princípio, da recriação desses textos” (CAMPOS, 2010a, p. 34).

Na tradução transcriadora a forma como o conteúdo está colocado é de extrema importância. Segundo Campos, “na tradução de um poema, o essencial não é a reconstituição da mensagem, mas a reconstituição do sistema de signos em que está incorporada esta mensagem, da informação estética, não da informação meramente semântica” (Campos, 2010b, p.100). Isso significa que na tradução transcriadora é necessário levar em consideração o texto como um todo, pois a forma como ele está constituído também implica na constituição do sentido.

Haroldo de Campos (2010a) utiliza o conceito de “Informação estética” (do filósofo e crítico Max Bense), que seria a maneira como os signos estão ordenados na construção de um conteúdo semântico. E afirma que não se pode separar a informação estética de sua realização. Marx Bense também fala de “informação documentária” e de “informação semântica”. Campos (2010a) explica que a documentária reproduz algo empírico, algo que é observável. A semântica transcende a documentária, indo além desta, introduzindo o conceito de falso e verdadeiro, como, por exemplo, na frase “a aranha tece a teia”, temos uma informação verdadeira. Já a “informação estética” transcende a semântica, no que diz respeito à ordenação improvável de signos, pois é possível passar a mesma “informação semântica” com diferentes ordens de signos, como vemos na citação que Campos (2010a, p. 32) faz de João Cabral de Melo Neto: “a aranha passa a vida / tecendo cortinados / com o fio que fia / de seu cuspe privado.” É a mesma informação documentária e semântica que temos em “a aranha tece a teia”, porém com uma diferente informação estética. Sendo assim, Campos (2010a) explica que, para Bense, em outra língua será “uma outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema.” (Campos, 2010a, p. 34)

Para melhor explicar a importância da forma na constituição do sentido, Haroldo de Campos fala da tradução de poesia e da sua complexidade no momento da tradução. De acordo com Campos (2010a):

A tradução de poesia (ou prosa que a ela equivalha em problematicidade) é antes de tudo uma vivencia interior do mundo e da técnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a máquina da criação, aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente a luz num corpo linguístico diverso. Por isso mesmo a tradução é critica. (CAMPOS, 2010a, p. 43)

Diante disso, vemos a necessidade de um olhar crítico sob o texto original para poder recriá-lo. O autor cita como exemplo a poesia, mas também destaca exemplos de prosa, que, para ele, também têm problematicidade impossíveis de traduzir. É por isso que se faz necessária a recriação, a aplicação da teoria da transcriação, em obras como “Memórias Sentimentais de João Miramar e o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade; o Macunaíma, de Mário de Andrade; O Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa” (CAMPOS, 2010a, p. 34)

A Concepção Musical e a Tradução como Crítica na Teoria da Transcriação

Na teoria haroldiana foi desenvolvida uma concepção musical da tradução, no que diz respeito à leitura do original a ser traduzido, que deve ser lido como uma partitura, principalmente quando estamos diante de um texto poético. De acordo com Santaella (2005),

Quando o tradutor ingenuamente confunde a complexa e sutil dinâmica da função poética, em sua multiplicidade configuradora, com os aspectos mais óbvios e mais exteriores do exercício desta (a métrica e o rimário), ele leva ao obscurecimento a “intrincada teia de som e sentido que percorre o texto como um todo, qual disseminado jogo paranomásico, só acessícel à leitura partitural própria da tradução radicalmente criativa. (SANTAELLA, 2005, p. 12)

 

O procedimento transcriador, portanto, despreza o sentido pontual de uma palavra isolada, para remobilizar o texto, levando em consideração o sentido no efeito de um todo. A tradução transcriadora não se contenta apenas com a “imagem do significado”, mas para além disso, acende a “imagem do seu significante” , da sua “forma significante”.  Tendo em vista a tradução de textos criativos, Campos (2010a) afirma que

não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele “que é de certa maneira similar àquilo que ele denota”). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois no avesso da chamada Tradução Literal. (CAMPOS, 2010a, p. 35)

É no avesso da chamada “Tradução Literal”, pois na teoria haroldiana é possível considerar, por exemplo, que ora os elementos fônicos são mais importantes de se manter na tradução do que os elementos semânticos; exatamente para poder recriar a obra original em outra língua. É por isso que o autor afirma ser necessário traduzir o próprio signo e não apenas o significado. Santaella (2005, p.10) afirma isso em outras palavras: “o tradutor transcriador tem de reconhecer o desenho geral da poética do original, redesenhando-a e disseminando-a no espaço da sua própria língua.” E esse desenho geral da poética não é formado apenas pelos elementos semânticos, mas por todos os elementos do texto (fônicos, semânticos, sintáticos). Para redesenhar a obra, é necessário levar em consideração o texto como um todo e, na tradução, como cita Campos (2010a), ter o “olho criativo”, de que trata Eliot, e ter um olhar crítico para a dosagem dos elementos mais importantes no momento da tradução. Em relação a isso, Benjamin (2008) afirma:

a sua língua tem mesmo de descuidar-se com o sentido, para que a sua “intentio” [a do sentido] ressoe não como restituição, mas como harmonia, como complemento para a língua na qual esta [a intentio] se comunica, para que possa ressoar o seu próprio modo de intentio (BENJAMIN, 2008, p. 10).

Diante disso, percebe-se que em determinado momento é necessário descuidar-se do sentido, até mesmo para a obra não perder o sentido como um todo, pois este não é apenas o que se considera na chamada “Tradução Literal”, é, contudo, formado pelo todo do texto. É por isso que no processo transcriador a obra é recriada. Ela é desmontada e remontada em outra língua, no seu próprio “modo de intentio”. Uma tradução literal do sentido não recriaria um texto criativo, poético, uma vez que o texto é considerado impossível de se traduzir.  É por esse motivo que se faz necessária a recriação do texto, conforme propõe Haroldo de Campos. Dentro deste viés, Paulo Rónai (2012), considerando a impossibilidade de traduzir, afirma que o processo de tradução é uma arte.

Paulo Rónai (2012, p. 157) cita uma tradução de um rubai (“quadras”), de Omar Kaiam (1050-1132), realizada por Augusto de Campos, o qual “manteve-se atento não apenas ao significado e às qualidades formais das quadras, mas também à microestrutura que nelas descobriu”, como vemos na quadra de nº XXV:

Ah, make the most of what we yet may spend

before we too into the dust descend;

dust into dust, and under dust, to lie,

suns wine, sans song, sans singer and – sans end!

(Rubai XXV – Omar Kaiam)

Ah, vem, vivamos mais que a Vida, vem,

Antes que em pó nos deponham também,

Pó sobre pó, e sob o pó, pousados,

Sem cor, sem Sol, sem Som, sem Sonho – sem!

(Rubai XXV – Omar Kaiam – tradução: Augusto de Campos)

Segundo Rónai (2012), Augusto de Campos conseguiu recriar a quadra acima citada, mantendo todas as características originais possíveis. O autor manteve “o sentido geral, a inspiração melancólica, o ritmo, o esquema rímico, as aliterações e até a preponderância de palavras monossilábicas” (RÓNAI, 2012, p. 158). Essa é a linha proposta pela teoria haroldiana, com a intenção de recriar a obra mantendo o máximo de características possíveis do texto original, através de um processo de negociação, no qual é escolhido o elemento mais importante para se manter em determinado momento da tradução, fazendo da obra algo novo, mas, ao mesmo tempo, ela mesma em outra língua.

Considerações Finais

Na tradução transcriadora busca-se corresponder ao original em relação às suas características fônicas, sintáticas e semânticas mais importantes, sempre num processo de negociação. É o que afirma Benjamin (2008):

a tradução, em vez de se tornar igual ao sentido do original, tem, antes, de configurar-se amorosamente na própria língua até ao ínfimo pormenor do seu modo de querer dizer, a fim de as tornar a ambas, tomadas como cacos, reconhecíveis enquanto fragmentos de um vaso, enquanto fragmentos de uma língua mais ampla (BENJAMIN, 2008, p.10).

 

Esse “configurar-se amorosamente na própria língua” faz parte do processo de negociação dos elementos mais importantes a serem mantidos no momento da tradução. Vimos que na tradução do rubai, de Augusto de Campos, o autor ora privilegiou o sentido e ora o som. Dessa forma, conseguiu transmitir em língua portuguesa o que Omar Kaiam teve a intenção de transmitir em sua obra, onde a forma é de extrema importância.                          Sendo assim, a teoria da transcriação possibilitou uma tradução em que foi possível recriar o texto original, dosando as características fônicas, sintáticas e semânticas mais importantes, através do olhar crítico da teoria haroldiana, que possibilita analisar qual é o elemento mais importante para manter em determinado momento e, assim, possibilitou fazer ressoar em língua portuguesa o fragmento em língua inglesa.

 

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. A Tarefa do Tradutor. Belo Horizonte, Fale/UFMG, 2008.

CAMPOS, Augusto de. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2010a.

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010b.

RÓNAI, Paulo. A tradução Vivida. – 4ªed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

SANTAELLA, Lucia. Transcriar, transluzir, transluciferar: a teoria da tradução de Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da. Céu acima: para um tombeau de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005.

*Mestranda na UFSC