Algum lugar em nosso universo – Alencar Schueroff

Algum lugar em nosso universo

Alencar Schueroff*

 

poesia

não

compra

sapato

mas

como

andar

sem

poesia

(Emmanuel Marinho)

 

O menininho

O menininho está em algum lugar do nosso universo. Qual universo? “A poesia consiste na visão de um particular inadvertido, fora e dentro de nós”, nos diz Giovanni Pascoli (1855-1912), em um excerto destacado também pela tradutora de O menininho: pensamentos sobre arte (Rafael Zamperetti Editor, 2015, 96 páginas), Patricia Peterle, no posfácio da obra. Em princípio, ele está – sempre esteve – dentro de todos os indivíduos, apesar de muitos não se darem conta da sua presença. A existência desse ser é perceptível, ainda, no mundo das coisas. Das conchinhas da praia, dos pássaros, das flores do campo. Em verdade o “dentro” e o “fora” são um só, mas não sós. E nem estanques. Consistem em duas potências que dependem uma da outra, buscam-se, identificam-se, constroem-se.

É mais fácil ouvirmos a voz do menininho que carregamos quando somos crianças: os sons internos e externos se confundem; somos, neste período, como os primeiros homens, sensíveis ao mundo, a qualquer pluma levada pelo vento, mesmo porque se trata de um período em que tudo ainda precisa ser nomeado, por uma voz que pode mais do que apenas grunhir. Durante a juventude e a fase adulta, preocupados que estamos em ganhar a vida, não ouvimos “a tênue vibração do sino”. Na velhice, estamos disponíveis, novamente, e dispostos a parar e escutar – unimos uma ponta da vida à outra, no estilo de Bentinho, em Dom Casmurro.

Um dos nomes que Pascoli cita é Homero, um velho que, tocado pelo seu menininho, narra grandes aventuras, “as hastes de bronze e os carros de guerra, as longas viagens e as grandes travessias”, em detrimento da beleza de Helena, desinteressante para a voz, avessa a sentimentalismos fugazes, afinada que é com o simples, o concreto. Ser “poeta da mediocridade” sem ser “poeta medíocre”. O encantamento imediato que o leitor pode obter com as “flores das agaves americanas” rapidamente se converte em enfado. “Então, intenso é o sentimento poético em quem encontra poesia no que está ao seu redor e no que os outros tendem a descartar”. Giorgio Caproni parece ter aprendido com seu conterrâneo:

Aos mais “sábios”

Um conselho, se me permitem

Não repitam sempre

aquelas mesmas coisas

que nunca foram ditas.

 

Dizer o que todo mundo diz, com simplicidade. É preciso deixar o menininho conduzir as palavras, a partir do que ele tem vontade de expressar. Não à toa o poeta de Livorno combateu na Segunda Guerra Mundial e, mesmo assim, tal tema nem sempre é tão evidente em seus versos.

Naturalmente, a guerra não é poética, o que a torna desinteressante, ao menininho, como era a escravidão nos tempos do poeta romano Virgílio, que procura não realçar o tema. Às vezes, no entanto, um evento pode gravar marcas tão profundas em um indivíduo que alcançam o pequeno habitante, o qual parece ter para sempre sua expressão influenciada. Em Caproni, tem-se a impressão de que as experiências no referido conflito se transformam em um modo particular de olhar e ver o mundo: sua atitude de abandono de Deus, que pode ser observada em obras como O muro de terra e Res amissa, é um exemplo dos reflexos dos quais tratamos.

Assim, a espontaneidade do poeta italiano do século XX o aproxima da ideia de seu antecessor, Pascoli, que arremata, a esse respeito:

“Porque a poesia, obrigada a ser poesia social, poesia cível, poesia patriótica, entristece sobre os livros, murcha no ar fechado da escola e, finalmente, enferma de retórica, morre. (…) É preciso que o fato histórico, se dele se quer fazer poesia, seja filtrado pela maravilha e ingenuidade da nossa alma de menino, se ainda a conservamos”.

Em terras brasileiras é comum encontrar autores interessados em tratar das mazelas sociais se fazem presentes há tempos. O nordeste é dos mais abordados, sob tal aspecto. Mas em se tratando de João Cabral de Melo Neto não há denúncia convencional. O sol ganha um força bélica, de fuzil, ou vira “luz balão”; é posta na ribalta a fala do sertanejo, com suas palavras de pedra; aliás, a pedra do sertão ensina lição de dureza e concisão, aprendidas muito bem pelo autor de O cão sem plumas. Sobre isso, Pascoli professa: “a arte do poeta é sempre renúncia. Já disse que deve tirar e não acrescentar, e isso significa renunciar”. Ele complementa que não deve haver rodeios nem plágios, apesar de tais práticas serem bastante apreciadas por escritores e leitores. “Para uma grande parte parece que o belo está nos ornamentos e o poético no ímpeto da oratória”.

E se acaso o poeta conseguir tudo isso? Se ele ouvir a voz – a muitas pessoas ela é inaudível, apesar de ser a todas inerente –, enxergar o ínfimo, à maneira de Manoel de Barros, e se expressar de modo sincero e temperado, sem pretextos, originalmente? Qual será a recompensa? Não há que se esperar por contrapartida. Nem gloriazinhas, nem glórias. Primeiramente, não deve estar nos planos de quem escreve elogiar-se ou buscar adulação para si, em outros. Citando Leopardi, Pascoli adverte: “Rara, no nosso século, é (…) aquela pessoa elogiada, cujos elogios não saíram da própria boca… Quem quer se elevar, apesar da virtude verdadeira, que dê bola para a modéstia”. Até porque “a verdadeira poesia faz bater, quando faz, o coração e não as mãos”. Compensação financeira também não cabe nesse caso, tendo em vista que o poeta é humilde.

No fim das contas, o poeta deve

“se confundir novamente com a natureza, de onde saiu, deixando nela um sinal, um raio, uma palpitação nova, eterna, sua. (…) Quando florescia a verdadeira poesia, quero dizer, a que se encontra e não se faz, se descobre e não se inventa. (…) Recompensa reputada grande por você, pois, mesmo que não nomeados, os verdadeiros poetas vivem nas coisas que eles fizeram para nós”.

Fazendo lembrar Bataille, da imanência à realidade e vice-versa.

Perenes são a voz, o verso, a natureza. Infindáveis são as reflexões do menininho de Giovanni Pascoli que, agora tão fluentemente vertidas para o português, tentam alcançar as nossas.

*Doutorando em Teoria Literária na UFSC